"Tempos vividos, sonhados e perdidos", por Tostão

quarta-feira, junho 07, 2017 Sidney Puterman

7 de junho de 1970. Estádio Jalisco, Guadalajara. Meio-dia de domingo. Hora marcada para o duelo entre a Inglaterra, então campeã do mundo, e o Brasil, então uma incógnita. Há quem repute o que veio a seguir como o maior jogo de futebol da história das Copas. Não pelos gols - o placar foi um magro 1x0 -, mas porque tudo neste confronto ganhou uma aura de "a mãe de todas as partidas". Não importa se pareciam lentos (também, ao meio-dia...) e se o Brasil não era a perfeição futebolística que hoje juramos de pés juntos. Apesar do vídeo-tape, apesar de trocentos vídeos no iutúbi, uma religiosa repetição oral se impôs. A defesa de Banks. A covardia contra Felix. A porrada do Capita. O gol. A comemoração ensandecida, com os jogadores de amarelo, aos saltos, atrás do número 7. Trinta segundos antes desse pique, o lance que resultou no tento veio da jogada encapetada de um mineiro tímido. Que, reza a lenda, valeu meio gol. E olha que seu passe não foi sequer a tal da "assistência" - Tostão meramente assistiu ao assistente. Isso já deu muito pano pra manga: milhares de apaixonados por 70 já testemunharam a ligação sobrenatural entre Tostão e Pelé, na jogada que culminou no tirambaço do Furacão. Como, driblando de costas, de frente para a linha lateral, mais próximo das placas de Martini & Rossi do que da marca do pênalti, a no mínimo 25 metros dos protagonistas, ele soube onde estava o negão e pôde colocar a bola no seu pé? O elegeram o supra sumo da noção de espaço, a prova cabal de quão bem ensaiado era aquele time. Porém, este tipo de apologia não cola com Tostão, o cara do passe. Ao contrário do auto-engrandecimento comum aos ex-jogadores, ele minimiza. Faz do mítico, banal. Seu texto opta sempre por simplificar. "No meio do segundo tempo, percebi que Roberto, que era meu reserva, se aquecia para entrar. Só podia ser em meu lugar. Aí, surgiu uma bola, e eu, influenciado pelo fato de que sairia, tentei a última jogada. Primeiro, chutei de fora da área. A bola bateu no zagueiro e voltou. Recuperei a bola. Com o cotovelo, evitei que o defensor tomasse a minha frente, o que hoje provavelmente seria interpretado como falta, uma cotovelada. Joguei a bola por baixo das pernas de Bobby Moore, considerado um dos maiores zagueiros da história. Avancei pela meia esquerda, fui bloqueado e perdi a chance de seguir em direção ao gol, Dei uma volta e, com a perna direita, joguei a bola para o outro lado, sem ver. Ela caiu nos pés de Pelé, que dominou, sem deixá-la escapar um centímetro sequer, e tocou para Jairzinho, que estufou as redes, marcando o gol da vitória. Todos me perguntam se vi Pelé. Não vi." Ou seja: onde tantos viram telepatia e genialidade, houve intuição e sorte. Em seguida reitera que não estava errado quanto à substituição: "Como Roberto já havia assinado a súmula, ele entrou em meu lugar, antes de a Inglaterra dar a saída de bola. Se não tivesse saído o gol, eu corria o risco de ir para a reserva no próximo jogo." A despeito desta narrativa minuciosa - que destaquei pelo que ela tem de desmistificadora, tanto da jogada, como do autor -, seu tema não sintetiza a obra. O livro de Tostão tem muito futebol. Mas não só. "Gosto do silêncio, do meu canto, de estar próximo de pessoas que amo e também de descobrir o mundo. Quero estar longe e perto de tudo. A vida e o futebol continuam." Seu texto revela que o menino-prodígio do Cruzeiro, o craque da Copa e o professor de medicina foram substituídos por um atípico comentarista esportivo. Com uma prosa simultaneamente doce e aguda, Tostão assina uma biografia que não é uma biografia. É um apanhadão que reúne alguns tópicos da sua vida de atleta - culminando com sua lesão e sua aposentadoria precoce - e suas ponderações sobre o futebol brasileiro e mundial, com fundamentadas opiniões sobre jogadores, técnicos, táticas de jogo, imprensa e política. Algumas opiniões são sui generis, como a sobre o maior de todos: "Por causa da anatomia de seu globo ocular, com os olhos expressivos e para fora, Pelé literalmente enxergava mais que os outros." Reclama de o terem comparado a Pelé, no início da carreira: "No máximo, o que já era exagero, eu imaginava as mesmas coisas que Pelé, com a diferença que ele as executava". Da razão inusitada Tostão vai à falta de razões, cita Stefan Zweig, o gênio austríaco que veio se matar em Petrópolis, e fala que as pessoas "mais racionais relutam em aceitar o acaso como fator importante em nossas vidas e têm descaso pelo acaso". Tostão, o inesquecível craque da 9 da Copa de 70, fala desta e da de 66, ambas as que participou. "Em 66 disseram que perdemos porque caçaram o Pelé, mas na verdade Portugal era muito melhor do que o Brasil, além de ter o segundo melhor jogador do mundo, Eusébio." O livro atesta ainda que Tostão não tem papas na língua sobre os bastidores do esporte ("há médicos que ajudam os treinadores, quando estes querem tirar um jogador e não sabem como fazê-lo") e confidências, como a feita a ele por Saldanha, após o técnico ter sido entrevistado elogiando o time da Romênia ("desses aí não dá pra perder"). Tostão ressalta que a célebre cotovelada de Pelé no zagueiro uruguaio poderia ter rendido uma expulsão, enquanto o jogo ainda estava 1x1: "Com um a menos, aumentariam as chances do Uruguai vencer e assim o Brasil seria eliminado, eu não estaria aqui contando esta história e o mundo não falaria tanto da seleção brasileira de 1970." Após a conquista, cogitou não participar da cerimônia com o ditador Médici, mas foi, por respeito aos companheiros. Sobre o caso, cita Freud citando Shakespeare: "A consciência faz de todos nós covardes." Tusta é insuperável na análise dos outros craques, como a que faz do meu ídolo de guri, o Furacão, pai do atual técnico alvinegro. "Jairzinho foi muito mais do que um atacante veloz, de muita força física e artilheiro. Era um craque artilheiro, na Seleção, no Botafogo e, depois, no Cruzeiro. Jairzinho merece ser mais lembrado como um dos grandes da história do futebol brasileiro." Sua avaliação de Zico bate com a minha: "Zico era quase um Messi, com menos repertório e sem a mesma velocidade do argentino em conduzir a bola colada aos pés. Driblava, dava excepcionais passes e fazia muitos gols. Nas cobranças de falta, Zico era superior a Messi." Mas, muito mais do que a Zico, coloca Romário no pedestal. Considera a atuação do Baixinho contra o Uruguai "uma das maiores partidas de um jogador na seleção brasileira". Eu vi. Assino embaixo. Entrega também a zoada do Gerson, o Canhota, em cima do rei. Estavam todos em Dallas, na Copa de 94, e se reuniram para um jantar promovido pela TV Bandeirantes. Pelé chegou atrasado, todo de branco (o que incluía terno, gravata e sapatos), numa limusine branca. Gerson pegou de prima: "Crioulo, você está ridículo, todo engessado." Confesso que Gerson, meu parceiraço na Tupi, também me sacaneia, dizendo que eu joguei em 18 clubes e não fiquei em nenhum. Tudo bem. Levo na esportiva. Mas a verdade é que ele não me viu jogando... A propósito do Canhota, Tostão não economiza no elogio: "Cruyff, Gerson e Xavi foram os três jogadores mais lúcidos e de maior talento coletivo que eu vi atuar. Eram treinadores em campo. Jogavam como se estivessem vendo a partida da arquibancada." Por falar em treinador, Tostão elogia também Zagalo pelos treinos táticos detalhados em 70. Mas, em seguida, dá no tornozelo: "Em 98, vinte anos depois, os treinos eram idênticos, para situações bem diferentes. Não sei se Zagalo desconhecia a evolução do futebol." Compara também o futebol brasileiro dos anos 60 ao futebol mundial de hoje: "O confronto entre Santos e Botafogo era tão espetacular quanto o atual Barcelona e Real Madrid." Afora estas aspas catadas a dedo, mesmo se as fossem a esmo, mudaria pouco a minha resenha. O autor Tostão é agradável, inteligente e pertinente todo o tempo. Os que tiveram a oportunidade de ver ao menos parte do futebol que ele comenta terão prazer redobrado na leitura. Sobre sua negação da atmosfera de sonhos que envolve o futebol do passado ("É preciso separar a nostalgia do saudosismo de achar que tudo no passado era melhor. Os saudosistas possuem o hábito de idealizar um passado que nunca existiu."), prefiro ignorar sua lucidez. Na boa, Tostão pode negar quanto quiser. Para mim, que moleque de nove anos assisti à Copa em preto e branco, grudado na TV, com uma bandeira feita de figurinhas coladas num pano de prato esfarrapado, ele e a seleção canarinho vão morar para sempre no Olimpo do futebol da minha memória afetiva, jogando uma Copa de 70 que não termina nunca - e onde o Brasil vence todas. Que time, mermão. Que time.

Companhia das Letras, 194 páginas

Obs.: Só para constar: na narrativa de Tostão, vale recordar que o ataque da Seleção, nos últimos 30 minutos do seu segundo jogo na Copa de 70, era o do Botafogo: Jairzinho, Roberto Miranda e Paulo Cezar Lima. Na defesa, estavam Carlos Alberto Torres e Brito, que iriam no ano seguinte também para o Botafogo, num time que ficou conhecido como "Selefogo". Como eu disse, só para constar.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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