"Por mares nunca dantes navegados", por Ronald J. Watkins

segunda-feira, maio 08, 2017 Sidney Puterman

Nos estertores do Século XV, os habitantes muçulmanos de ricas e bem construídas cidades às margens do Oceano Índico viram surgir navios gigantescos, armados de canhões que eles desconheciam, com marinheiros envergando carapaças. Eram os portugueses. Liderados por Vasco da Gama, um jovem capitão de 28 anos ao zarpar do Rio Tejo, um ano antes, aqueles eram os primeiros europeus a singrar aquelas águas. A partir dele, o mundo mudaria. É a história destes navios e de como, ao longo de todo um século, Portugal trabalhou para chegar onde chegou que Ronald Watkins nos oferece. Seu livro é quase sempre generoso com o esforço português. Alça a trajetória lusitana a uma prodigiosa epopeia, enquadrando a descoberta do caminho para as Índias como o evento mais importante da história ocidental. Sua fluente descrição dos fatos tem duas metades, e seu coração pulsa na segunda, a épica viagem de Vasco da Gama. O texto, aí, é todo apoiado no Roteiro, livro de bordo, cuja íntegra está em "A Journal of the First Voyage of Vasco da Gama", publicada em 1898. É um relato absolutamente apaixonante. Enquanto isso, a metade inicial deslinda 100 anos de significativos avanços portugueses na arte da navegação - e porque eles conseguiram o que os demais países da Europa tentaram em vão. O autor revela, a princípio, o enorme temor e superstição que havia, entre os europeus, em navegar além das Ilhas Canárias. Até então, os mapas predominantemente utilizados eram os dos Cresques de Maiorca, uma família de cartógrafos financiada pelo rei de Aragão, cujo mappa mundi era item obrigatório nas embarcações reais. Suas informações, no entanto, mesclavam conhecimento e lenda. O Atlântico era tido como sem fim, o "Verde Mar da Escuridão", como ressaltavam os geógrafos árabes Aboulfeda e Idrisia: "Ninguém sabe o que fica mais além do Atlântico, por conta das dificuldades de navegação devidas à escuridão, à altura das ondas, à frequência das tempestades e à violência dos ventos." Os seus pares europeus seguiam na mesma toada: "Aqui termina o mundo conhecido." Se um comandante teimava em seguir além da linha imaginária entre o Cabo Bojador, na África, e as Ilhas Canárias, corria risco de enfrentar um motim. Os marujos sabiam que era morte certa, pois estimava-se, à época, haver ocorrido 12 mil tentativas mal sucedidas de ir além (não me pergunte como chegaram a este número). Durante séculos, este foi o limiar marítimo da civilização. Falava-se em uma peste estacionada sobre o mar, de redemoinhos e de monstros marinhos - mas, fosse o que fosse, era um fosso tido por intransponível. Impressiona como a hoje relativa curta distância entre Gibraltar e o Bojador fosse o mais longe que o Ocidente ousava navegar - o que tornava inimaginável dobrar o chifre da África e alcançar as Índias. A barreira rompida pelos portugueses assombrou o mundo. Não foi casual, porém, e tomou tempo, como se dedica a estabelecer Watkins. Foi fruto de um trabalho planejado, que persistiu por décadas e que avançou palmo a palmo, baía a baía. A humanidade não escapou ilesa de um avanço pontual que nada tinha de filantrópico: o autor atribui a este desbravador português a disseminação da escravidão em escala global. O tráfico negreiro financiou o primeiro meio século de avanço rumo ao sul da África. Na logística de além-mar, ir avante para terras desconhecidas cobrava um alto preço em navios deteriorados e perdidos, tripulação doente e morta, projetos de exploração frustrados pela força do oceano, pelo excesso ou pela ausência dos ventos, pela falta de onde aportar e pelos ataques sofridos nos locais onde se ancorava para buscar suprimentos e proteção (água, vegetais, animais e pela necessidade constante de terra segura para se reparar as embarcações, cujos cascos sofriam pelo tempo no mar e pelas águas mais danosas do Atlântico). A captura de escravos, resultado de trocas com reinos não hostis à aproximação portuguesa, gerava dividendos no uso da mão de obra africana nos canaviais da Ilha da Madeira, nos Açores e no continente - e, principalmente, viabilizava o esforço econômico de se lançar dezenas de navios ao mar, ano após ano, atrás de dois grandes objetivos: o ansiado (mas inexistente) reino de Preste João e o caminho marítimo para as Índias. Após décadas de tentativas sucessivas, Bartolomeu Dias foi muito além dos demais e se tornou um precursor fundamental da conquista: dobrou o Cabo da Boa Esperança e chegou a subir parcialmente a costa africana, até o Canal de Moçambique. Enfrentou a recusa dos marujos e toda sorte de perigos. O que ele fez foi não só heroico como imprescindível para o sucesso de Vasco da Gama - ao lado da ação de espiões portugueses que a história esqueceu, como Pero de Covilhão e Afonso de Paiva, que consolidaram, por terra, o conhecimento sobre a região. Apoiado em vasto cabedal de informações, Vasco se lançou ao mar, em 1497, já pretendendo fazer o que fez. Os preparativos foram colossais e as cerimônias da partida reverenciaram a frota. A alta expectativa e o conhecimento prévio, entretanto, não diminuem sua grandeza; apenas a fazem mais lógica e menos fantasiosa. É a dimensão deste feito que Watkins esmiúça. Os potentados indianos receberam os portugueses com desconfiança, sempre sob intriga dos comerciantes árabes, que já anteviam uma importante perda no volume de negócios com a chegada dos europeus por mar (já que eles detinham a exclusividade do comércio de especiarias por terra). Os árabes iam além de impor cláusulas mais rigorosas: tentativas de sequestro e assassinato integraram o leque de obstáculos postos em prática, mas que não foram bem sucedidos pela atuação sempre firme e sábia do comandante das naus, Vasco da Gama. Em compasso com os árabes, as artimanhas do samorim de Calicute não foram suficientes para frustrar a tenacidade e o armamento dos portugueses - que conquistaram e registraram o feito, relato que hoje nos revela como se deu esta primeira aproximação entre dois mundos. A Índia que nos é descrita no Roteiro impressiona pela semelhança com a que conhecemos hoje, a despeito dos 500 anos que separam os dois momentos: antes, como agora, governantes ricos e um povo miserável. Minha expectativa com o livro era morna, mas fui fisgado por sua condução e conteúdo. É um calhamaço que auxilia os brasileiros a conhecerem um pouco mais sobre a cepa lusitana - em um relato farto de elogios, mas que não ignora as zonas de sombra. A tendência ao acochambramento na discussão política, à hipocrisia, à sensualidade e à corrupção são verbetes gordos nesta enciclopédia do descobrimento. Portugal está inteiro no livro e nós, queiramos ou não, somos parte indissociável deste Portucale matreiro, ganancioso e desassossegado. Duvida? Abra os jornais, leia as manchetes. Somos nós, os portugueses. É sempre bom saber de onde viemos. No mínimo, nos poupa da inocência e do histerismo.

José Olympio Editora, 390 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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