"A lebre com olhos de âmbar", por Edmund de Waal

domingo, maio 28, 2017 Sidney Puterman

Após as primeiras 75 páginas, concluo: "É mesmo um livro sobre netsuquês." Estou meio desapontado. "Vamos ver no que isso vai dar." As citações a obras de arte do passado são assíduas. Melhor ler com o google à mão. O autor é ceramista - pela orelha, parece que dos bons - e entende um bocado das nuances da arte manual. Então, haja parágrafos descrevendo as minúcias de objetos. Apesar da inquestionável maestria na exposição da matéria, o temor que tenha entrado numa fria me invade. Por pouco tempo, porém. Logo percebo que os 264 netsuquês, acompanhados de famílias ilustres, artistas imortais, cidades eternas e países em guerra são os ingredientes de um livro fenomenal. Mas sobre o que mesmo é o livro? Reconhece De Waal: "Já não sei mais se o livro é sobre minha família, sobre a memória ou sobre mim mesmo, ou ainda se é um livro sobre pequenos objetos japoneses." O livro é um passeio por 70 anos da história europeia e do planeta, do sensorial impressionismo ao nazismo bestial. Após um gordo preâmbulo, De Waal nos leva à França da belle époque. Os protagonistas são uma rica e empreendedora família russa judia, que emigra de São Petersburgo e Odessa para Viena e Paris. São os antepassados de Edmund de Waal, russos comerciantes de commodities, que, na expansão dos seus negócios e na ampliação dos seus domínios, vão de mercadores a banqueiros. A família exporta seus jovens herdeiros, versados em idiomas, como frisa o autor ("Aprendem línguas: latim, grego, alemão e inglês; em casa sempre falam francês, e podem falar russo entre eles, mas não devem ser pegos falando o iídiche que aprenderam nos pátios de Odessa; todos são capazes de começar um frase em uma  língua e terminar em outra. Com as línguas, você pode se mover de uma situação social para outra. Com as línguas, você se sente em casa em qualquer lugar.") Charles Ephrussi, tio tataravô do autor e então um jovem milionário, ocupa um palacete na capital francesa, à Rue de Monceau, e se torna um dândi e um mecenas na eclosão do Impressionismo. Sua rotina repleta de glamour e do convívio de pintores geniais, Degas entre eles, recrudesce a Paris "do passado do passado" do filme cult de Woody Allen, "Meia Noite em Paris", citado em dois dos recentes posts. A paixão pelo japonismo faz com que Charles arremate um lote caríssimo de 264 netsuquês - agora sei, são esculturas minúsculas, ilustrações táteis do cotidiano camponês nipônico - que, mais tarde, serão dados de presente (todos os 264) a um primo que casava em Viena. De Waal segue os bibelôs. A capital austríaca de então era certamente encantadora, como eu já havia percebido pelos olhos de Stefan Zweig e do seu biógrafo Alberto Dines, no ótimo "Morte no paraíso". A família é próxima do imperador, incentivadora da cultura e dínamo da economia. Os netsuquês moram no quarto de vestir da sra. Ephrussi, e se transformam no brinquedo dos seus filhos, em breve testemunhando a ruína dos Ephrussi com a derrota e dissolução do império Austro-Húngaro. Aí vemos o ovo da serpente, o antissemitismo crescente, em uma capital onde judaísmo e nacionalismo há séculos se misturavam . Como sabemos, a receita desandou (a escalada da rejeição aos judeus ganhou uma aceleração avassaladora após a Primeira Guerra). A despeito das frustradas tentativas de assimilação do milionário, a família desmorona e sua riqueza se esvai. Os amigos os roubam e os inimigos os matam. Por conta da fortuna excessiva, alguns conseguem comprar a fuga e cumprem a diáspora dos Ephrussi, que nunca mais retomam a glória d'outrora. Um dos meninos que brincava com os netsuquês, sobrinho-neto do comprador original, o bon vivant, é um dos primeiros a fugir. Luta no exército americano contra os nazistas. Sua irmã, que se evadira para a Inglaterra, retorna à Viena e constata que, da riqueza de antes, sobraram os netsuquês, escondidos em um colchão. O irmão resolve levar os pequenos brinquedos de osso e madeira para seu lar original, o Japão. Você pode se lixar para este meu descomunal spoiler - é que os netsuquês são um falso fio condutor. Um meigo pretexto para uma narrativa cortante. Porém, ainda que sujeita ao clima inóspito, a leitura da obra de Waal é um longo passeio de barco por ilhas melancólicas e perdidas. O leitor pode procurar um lugar protegido no convés e desfrutar da paisagem. O livro sobre netsuquês, garanto, é mesmo o tal.

Editora Intrínseca, 318 páginas

Obs.: A imagem que ilustra o post é o "Almoço dos remadores", de Renoir. Retrata o Maison Fournaise, um restaurante à beira do Sena. Entre os personagens estão as atrizes Ellen Andrée e Jeanne Samary, o barão Raoul Barbier, o artista Paul Lhote e Aline Charigot, amante do pintor e sua futura esposa. Ao fundo, de cartola e de costas, está Charles Ephrussi, tataravô do autor. O homem que comprou os netsuquês.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Excelente resenha, Sidney. Agradeço o presente e a oportunidade de ler essa obra fascinante. A narrativa é historicamente rica, poética e tocante.

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  2. Obrigado, Adilson, duplamente. Pela gentileza do comentário e pelas nossas conversas sempre divertidas sobre os bons livros. E concordo com você quando diz que faltou seguir a história da ama que escondeu os netsuquês dentro do colchão. Fica o mistério por desvendar e parte da beleza por contar. Nem tudo é perfeito kkkk Quanto à obra, este é um livro com a sua cara. Você, talentoso e minimalista, tinha que lê-lo, me lembrei de você ainda nas primeiras páginas. Abração.

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