"Celso Daniel", por Silvio Navarro
Não se deixe enganar pela capa do livro, escandalosa. Ela atende ao mercado. Mas, para os de fato interessados na estória, importa o que há por trás da capa - que é material de primeira linha. Silvio Navarro entrega jornalismo em ritmo de romance policial. A narrativa do sequestro, que abre a edição, já antecipa que o livro não é aquilo que você esperava - ou temia. Natural. Casos de repercussão, volta e meia resgatados da bacia das almas, tendem ao sensacionalismo. Não é o caso deste livro. Silvio não é o primeiro a enveredar pelo tema. Ao menos outros dois livros já dedicaram dezenas de páginas ao crime, ainda que não o tendo por mote principal: "Assassinato de Reputações", de Romeu Tuma Jr., e "O que sei de Lula", de José Nêumanne (resenhados aqui neste blog). Ambos tecem hipóteses e arriscam conclusões sobre a morte de Celso Daniel. Um deles é bom, outro nem tanto, mas nenhum dos dois se assemelha ao de Navarro, seja em estilo ou conteúdo. Se Nêumanne trouxe o tema à tona por inevitável, para Tuma Jr. a tragédia é estofo para legitimar o narrador (como delegado responsável pela região, Tuma foi o primeiro a chegar à cena do crime, e se vale disso). Mas a abordagem de Silvio Navarro é outra - e, melhor, sem o viés auto-apologético de Tuma. Diferentemente das demais narrativas, que partem do contexto político, Navarro, para contar sua versão, preferiu ir atrás da parte mais hardcore: os sequestradores. Um bando de criminosos comuns, por apelido "Meninos da Pantanal", ou ainda "Timinho da Diadema" (nomes derivados da favela Pantanal, na divisa da Zona Sul de São Paulo com o município de Diadema). Armavam festas, peladas e sequestros. Seguindo seus rastros, o autor se distancia do Rubaiyat e vai atrás dos criminosos, por um terreno onde sobram pistas e falta quem as investigue. Relata a sequência de mortes das testemunhas do crime, após o cadáver alugar a primeira página dos jornais. Aponta as inúmeras deficiências de uma investigação picotada: arrola falhas amadoras, inobservâncias suspeitas e incongruências inaceitáveis. Conta a vida dos principais bandidos, entre eles o provável elo de ligação cúpula-bandidagem, Dionísio Aquino Severo, cuja fuga cinematográfica da penitenciária de Guarulhos, via helicóptero, na véspera do sequestro, teve dinheiro graúdo: segundo Feitosa (ladrão que pegou inesperada carona na viagem, pela desistência de um outro), foi beneficiada pelo "entupimento" dos fuzis dos guardas penitenciários, o qual teria sido encomendado por módicos R$ 150 mil. Biografa de forma sucinta a trajetória promissora do deputado e prefeito Celso Daniel: profissional estudioso, atleta veterano, leitor voraz. Por ironia, especialista em transporte público, onde se deu o imbróglio que o sentenciaria à morte. Neste instante, filosofo que a imagem pública de Celso, por três vezes prefeito de Santo André, representava as expectativas depositadas no PT. Divago. Sigamos. A etapa final do livro abre a tampa do bueiro político. Demonstra a pressa em ocultar vestígios, unificar versões, burlar a imprensa e fechar o caixão. Navarro registra a reação dos irmãos de Celso Daniel, João Francisco e Bruno. Inconformados com a forma como se deu sua morte, revelaram o que viram: a participação de José Dirceu e Gilberto Carvalho, junto ao próprio irmão, no recebimento da propina paga pelos empresários de ônibus. Os dois políticos negaram. Não obstante, a declaração destoou da versão não-sei-de-nada dos demais envolvidos e logo os dois irmãos, ameaçados, deixaram o país. Mas não somente eles botaram a boca no trombone: outros, como os próprios empresários das companhias de ônibus, que pagavam a propina, denunciaram a extorsão da qual eram vítimas no governo petista de Daniel. As confissões, contudo, não foram suficientes para a investigação avançar. Eram outros tempos, outros juízes. Assim, tudo foi jogado cova adentro: o sequestro, a tortura, o assassinato, a extorsão, a propina, o favorecimento de empresas, o caixa 2, as contradições. Não por acaso, como candidamente revelaria, na CPI dos Bingos, em 2006, o delegado da Polícia Federal José Pinto de Luna, ele e o colega Marcelo Sabadin Baltazar foram indicados pelo próprio PT (para muitos, o principal suspeito) para acompanhar as investigações do assassinato de Celso Daniel. Silvio Navarro exumou as versões e mostrou que aquele que poderia ter sido um divisor de águas na história do partido era apenas a rede de esgoto, que já há muito irrigava sua estrutura de poder. Santo André, município que reelegeu o prefeito Celso Daniel, era mais uma das cidades em que o organograma petista de coleta de recursos "não contabilizados" estava implantado. Os boatos e denúncias foram varridos para baixo do tapete e não macularam a campanha presidencial, que teve curso no pressagioso ano de 2002. O ano começou com o assassinato do talentoso político, dublê de jogador de basquete, Celso Daniel, e culminou com a eleição do metarlúgico, precocemente aposentado, Luís Inácio. Doravante, os esquemas de arrecadação de dinheiro ilícito iriam prosperar e modificar a fisionomia do país. Isto, entretanto, era o futuro, que ainda não havia acontecido (no pós-futuro, o caso foi reaberto ontem, 8/11/16, quando o procurador do Ministério Público de São Paulo, Edilson Mougenot Bonfim, pediu a retomada das investigações). Mas nada foi mais profético do que Lula - como bem finaliza Navarro -, ainda em 2002, ao inaugurar o Memorial em homenagem a Celso Daniel, capitalizando em cima da morte do amigo: "Estou convencido de que você, Celso Daniel, não foi vítima do acaso e que não foi um acidente. Possivelmente, sua morte foi planejada, possivelmente tem gente graúda por trás disso." Tinha mesmo.Editora Record, 227 páginas
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