"Celso Daniel", por Silvio Navarro

quarta-feira, novembro 09, 2016 Sidney Puterman

Não se deixe enganar pela capa do livro, escandalosa. Ela atende ao mercado. Mas, para os de fato interessados na estória, importa o que há por trás da capa - que é material de primeira linha. Silvio Navarro entrega jornalismo em ritmo de romance policial. A narrativa do sequestro, que abre a edição, já antecipa que o livro não é aquilo que você esperava - ou temia. Natural. Casos de repercussão, volta e meia resgatados da bacia das almas, tendem ao sensacionalismo. Não é o caso deste livro. Silvio não é o primeiro a enveredar pelo tema. Ao menos outros dois livros já dedicaram dezenas de páginas ao crime, ainda que não o tendo por mote principal: "Assassinato de Reputações", de Romeu Tuma Jr., e "O que sei de Lula", de José Nêumanne (resenhados aqui neste blog). Ambos tecem hipóteses e arriscam conclusões sobre a morte de Celso Daniel. Um deles é bom, outro nem tanto, mas nenhum dos dois se assemelha ao de Navarro, seja em estilo ou conteúdo. Se Nêumanne trouxe o tema à tona por inevitável, para Tuma Jr. a tragédia é estofo para legitimar o narrador (como delegado responsável pela região, Tuma foi o primeiro a chegar à cena do crime, e se vale disso). Mas a abordagem de Silvio Navarro é outra - e, melhor, sem o viés auto-apologético de Tuma. Diferentemente das demais narrativas, que partem do contexto político, Navarro, para contar sua versão, preferiu ir atrás da parte mais hardcore: os sequestradores. Um bando de criminosos comuns, por apelido "Meninos da Pantanal", ou ainda "Timinho da Diadema" (nomes derivados da favela Pantanal, na divisa da Zona Sul de São Paulo com o município de Diadema). Armavam festas, peladas e sequestros. Seguindo seus rastros, o autor se distancia do Rubaiyat e vai atrás dos criminosos, por um terreno onde sobram pistas e falta quem as investigue. Relata a sequência de mortes das testemunhas do crime, após o cadáver alugar a primeira página dos jornais. Aponta as inúmeras deficiências de uma investigação picotada: arrola falhas amadoras, inobservâncias suspeitas e incongruências inaceitáveis. Conta a vida dos principais bandidos, entre eles o provável elo de ligação cúpula-bandidagem, Dionísio Aquino Severo, cuja fuga cinematográfica da penitenciária de Guarulhos, via helicóptero, na véspera do sequestro, teve dinheiro graúdo: segundo Feitosa (ladrão que pegou inesperada carona na viagem, pela desistência de um outro), foi beneficiada pelo "entupimento" dos fuzis dos guardas penitenciários, o qual teria sido encomendado por módicos R$ 150 mil. Biografa de forma sucinta a trajetória promissora do deputado e prefeito Celso Daniel: profissional estudioso, atleta veterano, leitor voraz. Por ironia, especialista em transporte público, onde se deu o imbróglio que o sentenciaria à morte. Neste instante, filosofo que a imagem pública de Celso, por três vezes prefeito de Santo André, representava as expectativas depositadas no PT. Divago. Sigamos. A etapa final do livro abre a tampa do bueiro político. Demonstra a pressa em ocultar vestígios, unificar versões, burlar a imprensa e fechar o caixão. Navarro registra a reação dos irmãos de Celso Daniel, João Francisco e Bruno. Inconformados com a forma como se deu sua morte, revelaram o que viram: a participação de José Dirceu e Gilberto Carvalho, junto ao próprio irmão, no recebimento da propina paga pelos empresários de ônibus. Os dois políticos negaram. Não obstante, a declaração destoou da versão não-sei-de-nada dos demais envolvidos e logo os dois irmãos, ameaçados, deixaram o país. Mas não somente eles botaram a boca no trombone: outros, como os próprios empresários das companhias de ônibus, que pagavam a propina, denunciaram a extorsão da qual eram vítimas no governo petista de Daniel. As confissões, contudo, não foram suficientes para a investigação avançar. Eram outros tempos, outros juízes. Assim, tudo foi jogado cova adentro: o sequestro, a tortura, o assassinato, a extorsão, a propina, o favorecimento de empresas, o caixa 2, as contradições. Não por acaso, como candidamente revelaria, na CPI dos Bingos, em 2006, o delegado da Polícia Federal José Pinto de Luna, ele e o colega Marcelo Sabadin Baltazar foram indicados pelo próprio PT (para muitos, o principal suspeito) para acompanhar as investigações do assassinato de Celso Daniel. Silvio Navarro exumou as versões e mostrou que aquele que poderia ter sido um divisor de águas na história do partido era apenas a rede de esgoto, que já há muito irrigava sua estrutura de poder. Santo André, município que reelegeu o prefeito Celso Daniel, era mais uma das cidades em que o organograma petista de coleta de recursos "não contabilizados" estava implantado. Os boatos e denúncias foram varridos para baixo do tapete e não macularam a campanha presidencial, que teve curso no pressagioso ano de 2002. O ano começou com o assassinato do talentoso político, dublê de jogador de basquete, Celso Daniel, e culminou com a eleição do metarlúgico, precocemente aposentado, Luís Inácio. Doravante, os esquemas de arrecadação de dinheiro ilícito iriam prosperar e modificar a fisionomia do país. Isto, entretanto, era o futuro, que ainda não havia acontecido (no pós-futuro, o caso foi reaberto ontem, 8/11/16, quando o procurador do Ministério Público de São Paulo, Edilson Mougenot Bonfim, pediu a retomada das investigações). Mas nada foi mais profético do que Lula - como bem finaliza Navarro -, ainda em 2002, ao inaugurar o Memorial em homenagem a Celso Daniel, capitalizando em cima da morte do amigo: "Estou convencido de que você, Celso Daniel, não foi vítima do acaso e que não foi um acidente. Possivelmente, sua morte foi planejada, possivelmente tem gente graúda por trás disso." Tinha mesmo.

Editora Record, 227 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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