"A Ditadura Acabada", por Elio Gaspari

quarta-feira, novembro 23, 2016 Sidney Puterman

A tetralogia de Elio Gaspari, "As Ilusões Armadas", é obra fundamental para se saber como se deu a ditadura militar, instaurada com o golpe de 1964. Seu quarto e último livro termina com as tratativas para a passagem de poder de Ernesto Geisel a João Figueiredo. Já não mais, porém. Em 2016 Gaspari resolveu ampliar sua obra enciclopédica, com um quinto volume dedicado ao governo Figueiredo - e a sua transição democrática para a chapa da oposição, formada pelo inusitado duo Tancredo Neves e José Sarney. O estilo de Gaspari permanece incisivo; o período, porém, foi engastalhado. Modorrento. Não obstante, mesmo sendo o terço inicial do livro dedicado à maçante política de caserna, há com que se divertir na leitura dos primeiros capítulos. Um deles é o projeto de Geisel propondo a cláusula de barreira, pois, como o general gaúcho antecipava, "para evitar que, amanhã, o Brasil tenha 10, 12, 14 partidos e aí, através da corrupção, ele começasse a vender legendas". Pois é. Hilário também é ver Paulo Maluf, pitoresca figura ainda hoje com mandato no Congresso (ah, os brasileiros), se abraçar à urna. Era 1984, os votos eram em papel e ele temia que a urna fosse sequestrada, impedindo sua vitória na convenção que indicaria o candidato da Arena à eleição indireta. Vale frisar que Maluf venceu e se impôs à candidatura preferida do Exército, a do General Euler Bentes, articulada pela esquerda brasileira, com Saturnino Braga e Paulo Brossard. É isso mesmo que você leu: Maluf era o candidato do governo militar, contra a vontade do governo militar, cuja candidatura orgânica vinha sendo arquitetada por expoentes da esquerda. Incongruente, não? Mas isso é Brasil. Até mesmo a propalada retidão do Exército Brasileiro, hoje em dia bandeira contra os tempos de corrupção deslavada, vira troça com o apelido dado pelos quartéis ao general Golbery: "Genedau" (por seu trabalho para a multinacional farmacêutica Dow Chemical, de 1968 a 1974). Pouco tempo depois, em 1978, a manchete do semanário "Movimento" era a metafórica "GEISEL NUM MAR DE LAMA". O general Hugo Abreu se manifestaria: "A verdade é que temos institucionalizado o arbítrio e, com ele, a corrupção mais desenfreada." Como se percebe, a coisa tinha tal monta que o próprio pessoal de farda se auto-acusava (o que de vez em quando dava cadeia). No conjunto, como já tinha antecipado, o livro vinha chôcho. Mas aí, quando a coisa narrada entra nos anos 80, a obra se dedica àquilo que foi determinante para a política brasileira nas quatro décadas seguintes: o desarranjo da economia e o boom inflacionário. Gaspari descreve a confusão em que se derreteu o país, tragicomédia que não só elegeu alguns dos presidentes seguintes, como influenciou na escolha de todos eles.  É aqui, historiando a inflação, que o livro cresce em pertinência histórica (falar dela, para quem não a viveu, é falar de um odor nauseabundo para quem não o cheirou). A inflação oficial bateu em 77,25%, em 1979, e em desagradáveis 110,24%, em 1980. Foi aplicada a panacéia da correção monetária à economia brasileira, medida que se revelou uma bóia de cimento. Tanto que, em 1983, a inflação anual atingiu 211%, e estapafúrdios 224% no ano seguinte. Outro fato picaresco trazido por Elio é que o governo militar fez uma triangulação com o FMI e o banco Morgan para transferência da riqueza extraída em Serra Pelada: o ouro voava das profundezas da Amazônia até o Rio de Janeiro, onde fazia escala para Nova York. Um agente do banco, no Rio, avaliava no aeroporto a carga embarcada e nos EUA era feito o depósito de 85% do valor na conta do Banco do Brasil. Um caso sob medida para os discursos de entreguismo da riqueza nacional, quiçá da soberania, aqui coordenado pelo pessoal de farda. Bem, vamos em frente - sem aludir ao clássico musical do governo militar, "Este é um país que vai pra frente", que, súbito, me veio à cabeça. Artistas. Uma coisa não se pode negar: o autor é reverente à coragem dos que enfrentaram a ditadura. Este sentimento atravessa o livro; e temo que o respeito à coragem tenha redundado em conivência intelectual. Receio. Gaspari encerra sua pentalogia com o meritório desenlace de 500 trajetórias dos que estiveram dos 2 lados do confronto entre governo e resistência. Bela, e útil, pesquisa. No capítulo dedicado aos que participaram da luta contra a ditadura e sua biografia posterior, salta aos olhos como a maioria dos sobreviventes seguiu sua vida ocupando cargos públicos. É um paradoxo: os que tentaram derrubar o governo se tornaram em seguida sustentados pelo governo (a conta vem sendo paga por um terceiro, que não aderiu nem a este, nem àqueles: o brasileiro comum). Como disse, li os quatro livros anteriores da série "Ilusões Armadas" - todos iniciando por "A Ditadura" e sendo organizados em "Envergonhada", "Escancarada", "Encurralada" e "Derrotada". Elio Gaspari é um mestre do texto sintético e da boa chamada. Os títulos estão aí para provar. Este, o quinto da série, inicia mais enlodaçado, mas tem também seus bons momentos. Entretanto, seja porque razão for, eu, o Leitor, acho que fica a dever aos demais. Não sei se é fastio ou ojeriza aos personagens, ao tema ou à retórica. Mas acho que já deu.

Editora Intrínseca, 447 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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