"Gabriela, cravo e canela", por Jorge Amado

quarta-feira, setembro 07, 2016 Sidney Puterman

Um dos títulos mais celebrados da história do romance brasileiro, fonte profícua de inúmeros filmes, novelas e que tais, obra que marcou época e hoje quase sexagenária, "Gabriela, cravo e canela" não decepciona o leitor temporão. Nele, a prosa do laureado escritor Jorge Amado justifica amplamente a reverência recebida. Craque com domínio absoluto dos meneios, avanços e retrocessos da trama, com parágrafos migrando ritmicamente de um personagem para outro, a transitar entre os vários quadrantes do tempo a seu bel prazer, seu romance é incontestável aula magna do bom texto. Se suas soluções, vez por outra, soam um tanto folgazãs, presepeiras, são exceção na escrita medida à régua e compasso de um dos maiores vendedores de livro da literatura nacional. Jorge Amado não merece o atual ostracismo - justo ele, demasiadamente festejado até poucas décadas atrás. Eu não decidi relê-lo por mero acaso; viajava no dia seguinte para Ilhéus, na expectativa de conhecer a terra natal de minha amada avó Leopoldina. Nunca levo menos de três livros na bagagem, e procuro sempre encontrar afinidade entre obra e destino. Bahia? Ilhéus? O autor naturalmente se impunha, não poderia ser outro que não Jorge Amado. Peguei a escada e, com minha mulher temendo que eu despencasse, comecei a fuçar a fornida coleção que tenho em uma das últimas prateleiras da biblioteca. São para mais de uma dúzia de títulos do escritor baiano, todos eles herdados do meu tio Felipe Mayer. Meu finado tio, um gigantesco ex-pracinha, morava em uma casa na curva, tomada por estantes de metal, por onde se esgueiravam 16 gatos e 3 cachorros, sendo um cego. Com ele tomei gosto em anotar nas margens dos livros e a tomar suco de tomate - mania herdada por meus filhos. Tinha os dedos amarelados pelo cigarro de palha, que, junto com o cheiro acre do mijo dos gatos, largava uma catinga dos infernos (mas a seda que ele usava eu acabei por me tornar consumidor, anos depois, para conteúdos outros). Nada disso vem ao caso, apesar de serem todas velharias. Voltando ao Amado, eu tinha como alternativa à feição do meu passeio o "São Jorge dos Ilhéus", que nunca havia lido; constatando, porém, que fazia parte da primeira fase do autor, ainda engajada, temi uma besteirada intragável e optei pelo já lido, na minha juventude, "Gabriela". Também se passava em Ilhéus e foi já no período que o autor desistira da militância comunista, desiludido com o stalinismo. Sábia e deliciosa decisão (minha e dele). Minha viagem não seria a mesma sem a companhia da Ilhéus do romance, de quase um século atrás, com seu povo e suas manhas. A Catedral, o Vesúvio, o Pontal, a avenida da Praia, Olivença, Itabuna, o Bataclan, a barra, o porto, o Morro de Pernambuco e o Morro do Unhão, tudo se misturou, nas páginas velhas e na cidade confusa, onde os restaurantes fecham para almoço. A descrição da política local, e suas intricações com a estadual, é soberba. Amado sabia do que escrevia. O povo brasileiro, um tipo cheio dos por-baixo-dos-panos, está ali, um prato e tanto para os antropologistas da História. "Gabriela" parece já ter sido escrita para o que se tornou, década e meia depois, sucesso editorial em França, Oropa e Bahia. Merece as dezenas de traduções que teve. Me surpreendi, ao final, com a assinatura com que o escritor encerra o texto: "Rio-Petrópolis, maio de 1958". Uau. Fui à Ilhéus, a cidade dele, reler a obra do bom baiano e ele a terminou bem aqui, debaixo das minhas narinas (então não nascidas), fazendo ponte entre as duas cidades da minha vida. Era pra ser. Confesso que não sei se ainda outra vez, nesta vida, pego a escada e cato na prateleira lá do alto mais um livro de Jorge Amado. Mas este fez minha viagem ainda mais deliciosa. A benção, meu pai. Axé.

Martins Editora, 453 páginas


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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