"Guerra aérea e literatura", por W.G. Sebald

quarta-feira, fevereiro 24, 2016 Sidney Puterman

Existem livros que pelo resto da vida nos acompanham, com a memória dos lugares em que foram lidos. Este é um deles. Ele tem a cara do batente da janela do nosso apartamento no Soho. Sobre ele um lápis e do lado de fora fazia sol e frio*. Eram dias agradáveis. Já o tema do livro de Sebald era mais amargo. Contava o bombardeio das cidades alemãs na Segunda Guerra Mundial. O texto acusava a quase inexistência de registros literários sobre o assunto. Havia uns poucos, mas ele os considerava piegas, mal escritos e mistificadores - ou os três juntos. Esta omissão, que rescendia a negação, ele atribuía a uma mal-resolvida auto-estima alemã, que se recusava a digerir a derrota e a humilhação. Os que tentaram lidar com este cadáver insepulto se valeram de uma licença poética de mau gosto e do uso ilimitado de estereótipos, pensava. Nas circunavegações verbais dos escribas da Alemanha em chamas, ele via "bricolagem e ornamentação linguística". À medida em que as páginas avançam, seu desdém pela produção literária sobre o tema é substituído pela sua própria narrativa - ou, ao menos, como ele, Sebald, gostaria que esta narrativa houvesse sido elaborada. À página 78 ele fala da correspondência recebida de Harald Hollenstein, que, menino, via exposto em todas as mercearias: "Se entras aqui como um alemão, Heil Hitler deve ser a saudação". Picaresco e revelador. Mas o apogeu do pequeno livro de Sebald se situa entre as páginas 88 e 93. Nelas ele denuncia os logísticos da Wehrmatcht, "que, uma década antes de Hitler alcançar o poder, já previam o extermínio do Exército francês em solo alemão, a devastação de regiões inteiras do país e grandes perdas entre a população civil." Fala de como as fotos de cadáveres alemães carbonizados no bombardeio eram vendidas no pós-guerra com a clandestinidade de fotos pornográficas. Caçoa de Himmler, a quem trata de criador de galinhas. Escarnece da carta que recebeu décadas após o fim da guerra, chamando de "assombração" o missivista, um dr. H. que atribui os incêndios na Alemanha a uma conspiração internacional judaica - como se revivesse a pantomima de "Os protocolos de Sião" ("falsificação pseudo-documental", qualifica Sebald), mais de meio século depois da farsa ter sido engendrada e descoberta. Encerra com a sentença definitiva: "A maioria dos alemães de hoje sabe que nós mesmos provocamos a destruição das cidades em que vivíamos." A erudição e a verve do laureado escritor se debruçam, numa segunda parte do seu pequeno livro, a desmontar a trajetória de Alfred Andersch, autor alemão do qual nunca ouvi falar, mas que, parece, goza de certa fama por lá. Andersch, já falecido, deve ter dado umas quinze voltas na sepultura, tal é a acidez com que é retratado e espinafrado. Não tenho como dar razão por não conhecer o dito cujo, ainda que tenha me divertido com tamanha obstinação em fuzilar do cocoruto ao dedão do pé a memória pessoal e literária do cidadão. Eles, alemães, que se entendam. Vou passar essa.

Companhia das Letras, 124 páginas

* A foto acima foi tirada da referida janela, esquina de Houston com MacDougal. Em 99% dos dias, fazia sol e frio. Essa foto chuvosa aí foi tirada no 1% dos dias. Nem tudo é perfeito.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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