"Viagens com o Presidente", por Eduardo Scolese e Leonencio Nossa

quinta-feira, novembro 20, 2014 Sidney Puterman

Li o livro em meio à turbulência da última semana das eleições. Me sentia refém de um país conturbado. Por isso, logo comecei a leitura, me pareceu seria tempo perdido: pelo menos meia dúzia de afirmações já apontavam um livro tendencioso, que trilhava o manjado caminho de colocar azeitonas na empada alheia. Ainda assim, respirei fundo e segui. Vamos ler do que se trata, pensei - o que se revelou uma sábia decisão. A obra é uma saborosa volta no tempo, com o suporte do texto competente de Eduardo Scolese e Leonencio Nossa. É patente o carinho, nos capítulos iniciais, com a figura do ex-sindicalista que chegou a presidente - como salta aos olhos certa má vontade com o seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso. Mas em um texto bem escrito sempre algo se aproveita. O livro se pretende um almanaque das incontáveis viagens de Luís Inácio Lula da Silva quando do seu primeiro mandato como Presidente da República, de 2003 a 2006. É interessante, em meio ao Brasil conflagrado de agora, essa viagem no tempo ao Brasil de ontem, ainda ignorante dos conturbados anos que porviriam. Mas que ninguém se engane - os ingredientes hoje diariamente servidos no governo petista já estavam estocados na despensa. Em seu primeiro dia do mandato, Lula convidou para o café da manhã o presidente da Venezuela, Chávez, e jantou na Granja do Torto com o presidente de Cuba, Fidel (a agenda inaugural, descrita na página 23, é uma dose concentrada do container ideológico que seria pulverizado sobre a sociedade brasileira nos 12 anos seguintes). O Lula que é retratado é um Lula idealizado ("Eu não trabalho com o senhor se não tiver certeza de que respeita todos os princípios morais e éticos", disse ao presidente o candidato a chefe de segurança, coronel Gonçalves Dias, pouco antes de assumir o cargo), que os autores consideram "não dar muita importância à política" (pg 43) e que, em 2005, diante das três páginas de informações reunidas por um assessor para uso em um discurso, debochou do funcionário: "Você acha que eu sou babaca de ler tudo isso? " Já eu não achei "babacas" os autores e apreciei a leitura das 272 páginas da sua obra. Simpático ao pernambucano, o livro oferece ricos ângulos do personagem mais importante da política brasileira na última década e meia (com frases como a que ele cunhou sobre o povo - que esperou horas, sob o sol do sertão, para vê-lo discursar -, enquanto ele, indiferente ao próprio atraso, minimizava: "As pessoas têm amanhã o dia inteiro para descansar.") Nas páginas de 61 a 63 os autores comparam o temperamento do ex e do então presidente em exercício, exemplificando com uma descompostura que Lula passara em um assessor que esquecera um documento ("Como é que não trouxe as cartilhas? Seu incompetente!") e com a admiração que os seguranças sentiam por ambos, ressalvando, com mordacidade, a inalterável elegância de FH. Já Lula ia muito além, como quando seu ajudante-de-ordens, afobado, corria para pegar no avião mais toalhas brancas e felpudas para que o presidente se enxugasse enquanto caminhava: "Olha lá o bundão, olha lá. Olha o bundão correndo pra pegar minha toalha." As referências que o presidente Luís Inácio fazia aos funcionários revelavam seu pensamento (pg 68): "Eu não tenho curso superior, mas quem carrega papel pra mim tem." Suas análises da política econômica dos países vizinhos não raro surpreendiam os presentes. Em uma reunião com políticos brasileiros ocorrida em maio de 2005 (pg 271), numa viagem ao Japão, Lula se serviu de uma quantidade exagerada de uísque e não controlou a língua: "O Chile é uma merda. O Chile é uma piada, com aqueles acordos lá deles com os americanos." (Vale frisar que a economia chilena é a mais forte e bem-sucedida da América do Sul nessa década; já a brasileira, uma das três de pior resultado.) Nada descreve melhor, porém, sua prosódia do que o comentário feito publicamente para sua então Ministra do Meio Ambiente, Marina Silva (no futuro duas vezes candidata a presidente, com mais de 20 milhões votos recebidos em cada eleição que participou), quando reunidos com os técnicos responsáveis pela transposição do rio São Francisco: "Marina, essa coisa de meio ambiente é igual a um exame de próstata, não dá pra ficar virgem toda a vida. Uma hora eles vão ter que enfiar o dedo no cu da gente. Então, companheira..." Lula sempre teve gosto pelas metáforas. O roteiro das incontáveis viagens internacionais desse Lula peregrino também expõe seu interesse pelo continente negro: nos dois primeiros anos de governo ele visitou 18 países da África (João Havelange também demonstrou a mesma preferência "turística" na década de 70, quando subornou os dirigentes africanos e tomou a presidência da FIFA de Sir Stanley Rous, como bem relatam os autores Barbara Smit, em seu livro "Invasão de campo", e Andrew Jennings, em seu livro "Jogo sujo", ambas as obras resenhadas nesse blog). Suas viagens pelo Nordeste são frequentes: só em Pernambuco o então presidente esteve 20 vezes. Nas páginas finais os autores rememoram uma delas, a passagem de Lula por sua cidade natal, Caetés, pobre município no interior pernambucano. Destacam que, na eleição de 1989, quando Lula concorreu pela primeira vez à presidência, ele foi derrotado por Fernando Collor, o "caçador de marajás", em Caetés. Nas duas eleições seguintes, em 1994 e 1998, Caetés também não deu a vitória à Luís Inácio da Silva, seu conterrâneo mais ilustre: a cidade escolheu Fernando Henrique Cardoso como vencedor em ambas as eleições (nada poderia ilustrar melhor a tese dos cientistas políticos que afirmam que as regiões pobres do país tendem sempre a votar com o governo, seja ele qual for). Nossa e Scolesi registram ainda as diferentes versões dadas por Lula para o Mensalão, indo da negação peremptória à tese do Caixa 2 ("O PT fez o que os outros partidos também fazem"), terminando com a versão difusa de uma traição ("Fui traído"), mas sem que nomeasse um único traidor (em tempo: por oportuno, registro que Márcio Thomaz Bastos, ex-Ministro da Justiça idealizador da citada tese do Caixa 2, faleceu ontem). O livro também destaca uma frase recorrente de Luís Inácio, que revela ao bom entendedor a essência desse cidadão incomum: "Sou filho de pai e mãe analfabetos. E minha mãe me dizia: 'Meu filho, a única coisa que você não pode perder é o direito de andar de cabeça erguida.' Por isso eu sempre digo que vergonha na cara a gente aprende dentro de casa."

Record, 272 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Para um comentarista de livros vc não consegue disfarçar sua má vontade com tudo q tenha a ver com Lula, o Pt, Fidel, Cuba e tudo q for de esquerda em geral, um pena, pq estraga a ideia mais proxima do real de q se quer ter de um livro q se qer ler....assim perde muito o valor pra quem gosta de ler pq seu comentarista não consegue segurar sua parcialidade e interfere na análise das obras.....q tal ser crítico com outras figuras da historia da politica nacional, muitas ainda vivas e atuantes como um FHC e o Aético Cheira Pó Neves, ein???

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    1. Caro Anônimo: 1) Não estou aqui para disfarçar; amorfo é o idiota apócrifo, que nem nome ou disfarce tem; 2) A vontade é minha, se boa ou má, é problema meu, não lhe convidei; 3) Quanto aos citados, lamba quem quiser, a língua é sua e cada um senta com a própria bunda - faça da sua o uso que lhe convier.

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