"Marighella", por Mário Magalhães
Biógrafos são tão importantes para o país que deveriam
desfilar em carro aberto pela cidade. Falo dos bons. Mário Magalhães joga nesse
time. Trocou anos de conforto pela ingrata tarefa de Hércules em um país sem
oráculos. Fez de toneladas de material esparso, oculto e heterogêneo um quilo
de História do Brasil. Lapida a pedra bruta e nos extasia com um meticuloso trabalho
de ourives. Ele sabe: biografias são jóias únicas, são a projeção eterna da
figura finita. Há que se ter cautela na sua confecção. Nelas, a pressa e a
superficialidade do artesão transformam o trigo em joio. Mário não: faz broa
saborosa. Cuida dos pequenos detalhes. Pra falar de Carlos Marighella, foi
buscar a história do pai imigrante. E da sua chegada à São Paulo. Do fascínio
pela morena recatada, mal desembarcado na Bahia. Do lar na Fonte Nova, endereço
antigo também dos meus avós. Simpática coincidência. O autor conta muito, mas
fala pouco. Seu texto é exato. Não libera um mínimo par de linhas à pieguice.
É óleo de motor derramado. Não
deixa lacunas: tudo é preenchido com um caldo
negro e viscoso. Pena que, sob ele, os personagens vão morrendo. São muitos – e Magalhães acompanha cada
um deles. Poucas vezes se viu um biógrafo tão carinhoso com os personagens
periféricos do seu tema. Em sua
obra, cada coadjuvante tem ares de
protagonista (mesmo os bandidos a soldo do Estado, como Borer e Fleury, têm sua
mini-retrospectiva); e o seu herói deriva de Ulisses a Dom Quixote. Quanto mais
lemos, mais nos afeiçoamos ao seu texto
justo. Vejo nele um pouco do estilo de Dines, biógrafo de Stefan Zweig no ótimo “Morte no
Paraíso”. Mário é um esteta das frases. Gosta-as concisas, ricas e irônicas.
Escreve com uma régua. Às vezes,
com um cinzel. Inconformado, o autor não se contentou em terminar sua obra com
a morte do inimigo público número 1 e desbastou as versões. Perscrutou as alegações da ditadura sobre
sua execução. Peneirou cada versão
insidiosa, em busca da verdade – que redime uns e incrimina outros. Sua
descrição nos larga a pensar sobre como teria sido se Carlos Marighella
tivesse, como tantos outros, optado pelo exílio e retornasse, com a “anistia”,
para ocupar espaço na política brasileira. Aí talvez as atitudes assumidas
nessa sua hipotética sobrevivência ao regime militar não justificassem o
empenho em sua biografia, mais um que seria. Curioso cogitar - mas desperdício de conjectura. Ele não sobreviveu. Nos ficou dele a biografia tardia. Brilhante, porém. Como o autor. Bem vindo, Mário. A História do Brasil
precisa de craques.
Companhia das Letras , 732 páginas
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