"O Futebol do Botafogo 1951-1960", por Carlos Ferreira Vilarinho


"O Futebol do Botafogo 1951-1960", assinado por Carlos Ferreira Vilarinho, dá continuidade ao trabalho de Alceu Mendes de Oliveira Castro, autor de "O Futebol no Botafogo 1904-1950". Alceu é chamado por Vilarinho como "pai da memorabilia botafoguense". 

Procurei o livro do Alceu, não encontrei (vou continuar procurando; um dia acho).

Este do Vilarinho também não foi fácil de achar. Edição esgotada nas livrarias - e bissexta nas lojas de livros usados. Apelei ao próprio autor, que me indicou um sebo de seu conhecimento, possuidor de um solitário exemplar (que, agora, já não possui mais). Agora é meu. É sobre ele que escrevo.

Vilarinho não é escritor de muitos circunlóquios. Vai direto ao ponto. Seu registro esmiuça o que acontece em campo. Nisso, é amplo, enfático, passional. Descreve todos os jogos, todos os gols, todos os torneios. A evolução do placar e a temperatura no gramado. Quem chutou quem. Não poupa sua excelência, o soprador de apito.

Não só. Estão presentes as filigranas políticas das federações. A disputa clandestina no tapetão. O esporte e a política nacional. Vilarinho não desperdiça oportunidades de vincular o que acontece nos estádios ao que acontece no país. Com direito a lado: ele é sempre veemente, sanguíneo.

Mas o grande barato mesmo é a maneira como o historiador nos oferece o andamento dos jogos e dos bastidores. Nos abre o passado como se este acontecesse agora. Vibramos com os lances, lamentamos os gols perdidos, celebramos as vitórias e xingamos o juiz.

Sem contar a "periferia" dos jogos em carretilha. De cara já vemos o imbroglio entre as transmissões de TV - recém inaugurada no país por Assis Chateaubriand - e os clubes. Embora quase ninguém tivesse um aparelho para ver o que era transmitido, o futebol já aparecia como conteúdo premium. Os clubes discordavam entre si sobre permitir ou não as transmissões. Se sim, se deviam ser cobradas; ou se o direito de transmissão deveria ser uma generosa benevolência dos clubes.

Na refrega, acabou sobrando para o rádio, acusado de lucrar por transmitir os jogos de graça. As emissoras retrucaram, acusando os clubes de se beneficiarem da popularidade que obtinham graças às transmissões de rádio, pelas quais não pagavam. Virou um quiprocó.

Ao mesmo tempo, a grande novidade no campeonato de futebol na Capital Federal era o novo equipamento público para disputa dos jogos - o Estádio Municipal, que àquela época ainda não era chamado de "Maracanã", o bairro onde o estádio se situava. Mas vinha dando rolo.

A reclamação principal dos clubes era quanto ao prejuízo provocado pelas taxas para uso do estádio. Pleitearam o aumento do ingresso, mas o prefeito foi contra, com o apoio do Flamengo. A entrada da geral custava o equivalente a um sanduba de mortadela, ou meia cerveja. Uma arquibancada custava quatro vezes mais: duas garrafas de cerveja. Ficou por isso.

Os clubes já conviviam com um problema crônico de caixa. O Maracanã influenciara na perda de sócios contribuintes, pois parte dos jogos já não era mais disputada nos estádios particulares. O Jornal dos Sports, do rubro-negro Mario Filho, estava ao lado do Flamengo e contra os demais clubes.

A propósito, os clubes locais nunca se acertaram. Continuam - como hoje - cada um por si.

Mas não esqueçamos que o livro é sobre o Botafogo de Futebol e Regatas. En passant, Vilarinho conta a história icônica da fusão do Clube de Regatas Botafogo, fundado em 1o de julho de 1894, e do Botafogo de Futebol Clube, fundado em 12 de agosto de 1904.

Os dois Botafogo coexistiram por 38 anos. Embora um fosse do remo e outro fosse do futebol, tinham outros esportes e competiam entre si, como no basquete. Em 1942, em um jogo entre ambos, um choque em quadra levou à morte o jogador Armando Albano. O evento trágico se tornou a senha para que não se enfrentassem nunca mais. Os dirigentes se reuniram, combinaram a fusão e em 8 de dezembro de 1942 os dois Botafogo passaram a ser um só: Botafogo de Futebol e Regatas.

Mas isso foi antes do que é, na verdade, o ponto de partida do livro - janeiro de 1951. Um período um tanto opaco na memória dos torcedores. A obra joga luz em um momento de sombra.

Já alerto os leitores que Vilarinho fala muito num tal de Santos, um jogador do Botafogo no início dos anos 50. É um dos mais citados nos primeiros capítulos, ao lado de Paraguaio, Pirilo, Osvaldo Baliza, Geninho etc. Toda hora ele fala no tal do Santos, que chegou inclusive a ser convocado para a seleção, desfalcando o time.

Demorei para descobrir que o primeiro nome do tal Santos era Nílton - sim, esse mesmo que hoje batiza o estádio do Botafogo, conhecido também como o maior lateral-esquerdo de todos os tempos. Mas, no que depende do autor, fiel aos registros de época, este é um mero pormenor.

Outra coisa que nem nos passa pela cabeça é que, na criação do clube, ainda não existiam os túneis ligando Copacabana a Botafogo (sob o Morro da Babilônia) e ligando a rua General Severiano à praia de Botafogo (sob o Morro do Pasmado). Com a perfuração dos túneis, iniciada em 1936, foi criada também a extensão da Avenida Princesa Isabel, desapropriando a sede de tênis do Botafogo, que tinha quatro quadras. A prefeitura prometeu um terreno de idêntico tamanho na Wenceslau Braz, mas nunca cumpriu o prometido.

Mas - utilizando só de implicância uma expressão que virou o clichê predileto dos comentaristas de tv - vamos falar de campo e bola. E que bola. Porque o primeiro grande fato do Botafogo nos anos 50 demorou dois anos e meio para acontecer. Você já sabe qual é. Tinha as pernas tortas.

No dia 19 de julho de 1953 o atleta Manuel Francisco dos Santos estreava no time do Botafogo. 

Natural que a futura estrela tivesse uma estreia tímida. Era a primeira partida de futebol profissional, à vera, do jogador. Tímida... será? Garrincha não aterrissou no planeta futebol para ser acanhado. 

O Botafogo perdia o jogo em casa para o modesto Bonsucesso. Tomou o um a zero logo aos cinco minutos. Mas, aos dez, Mané, o estreante, bateu um escanteio na cabeça de Vinicius, que empatou. O Bonsuça marcou e pulou de novo à frente do placar. Dino igualou, mas o bandeira deu impedimento. Aí foi a vez de Garrincha empatar, de bicicleta, aos 32. O juiz, sueco, anulou.

Ninguém entendeu. Aos 40, Garrincha (o estreante) promove um salseiro na área - é agarrado, puxado e empurrado pra fora de campo. O juiz não deu nada. Fim do 1o tempo. Bonsucesso 2x1.

Aos onze da segunda etapa, Garrincha bate novo escanteio na cabeça de Vinicius, que sofre cama de gato. Pênalti. Com o time perdendo o jogo e a torcida estressada, ninguém se entusiasma para bater a penalidade máxima. Garrincha pega a bola e põe na cal. O goleiro provoca o moleque: "Vai pra fora". Garrincha retruca: "Você vai ver ela morrer no barbante". Gol. Botafogo 2x2 Bonsucesso.

O jogo mudou de figura. Aos 28, Dino virou: 3x2. Aos 30, falta a favor do Botafogo. Quem bateu? Garrincha. Saco: 4x2. Aos 32, Garrincha deu o que hoje chamamos de "pré-assistência": acossado por dois marcadores, meteu para Ariosto, que tocou para Dino encobrir o goleiro. Botafogo 5x2.

O Bonsucesso fez o terceiro. A partida caminhava para ficar no 5x3 quando Garrincha, com o tempo regulamentar já estourado, recebeu na lateral. Passou pelo marcador, invadiu a área, driblou todo mundo que encontrou e fez o sexto. Placar final: Botafogo 6x3 Bonsucesso.

Na sua primeira partida como jogador profissional, Garrincha marcou um hat trick (um gol de pênalti, um gol de falta e um gol driblando geral). Mais: deu uma assistência pra gol, uma assistência pra pênalti, uma pré-assistência, sofreu um pênalti (não marcado) e fez um gol de bicicleta (anulado).

Apenas para efeito de comparação, resgatemos a estreia de alguns indiscutíveis fora-de-série: Pelé, em seu primeiro jogo profissional, marcou um mísero gol, na vitória do Santos por 7x1 contra um time de Santo André. E Zico, Maradona, Ronaldo Nazario, Messi, Cristiano Ronaldo, Neymar e Lamine Yamal passaram em branco na estreia. O menino Garrincha? Enfiou três logo de cara.

O impacto da chegada de Garrincha ao jogo foi o de uma colisão meteórica. Pena que não haja hoje quem dê o merecido destaque aos seus números. Homéricos. Inalcançáveis. Com o desembarque do extraterrestre de Pau Grande entre nós, o planeta futebol iria mudar para sempre.

O Brasil também. Para alegria de toda a nação, o tempo das vacas magras ia acabar.

Mas para que isso acontecesse ainda faltavam praticamente cinco anos. A conquista da Copa do Mundo de 1958 seria uma mudança de paradigma para a pátria. Humilhado em casa pelo Uruguai em 1950, o Brasil se sentia um país de "pipoqueiros". Sem auto-estima. Segundo Nelson Rodrigues, nos faltava pedigree na hora da verdade. Éramos todos vira-latas. Escorraçados.

Ainda não sabíamos que Garrincha, mestiço de fulniô, reescreveria essa história (escoltado por dois descendentes de escravos, Didi e Pelé). Foi ignorado na convocação de 1954 - o lobby paulista se impôs -, mas seria figurinha carimbada em todas as convocações a partir de 1955.

Antes de ser convocado para ajudar o Brasil, porém, Garrincha ainda iria fazer muito pelo Botafogo. Suas primeiras vinte e uma partidas oficiais, todas pelo Campeonato Carioca de 1953, foram do balacobaco. Anote aí: dezenove gols, nove assistências, dois hat tricks e dois gols olímpicos.

O maior jogador de futebol de todos os tempos fez, em seus primeiros vinte e um jogos, o que nunca ninguém fizera antes - nem ninguém faria depois. Um fenômeno. Um exagero. Um escracho.

Apesar da alta expectativa, os anos seguintes, com três dos maiores craques da sua história no elenco, não foram significativos nas disputas locais. O Botafogo iria concentrar suas grandes conquistas e performances no "estrangeiro" (como se dizia, à época). E não ia deixar barato.

(Não posso desconsiderar o torneio quadrangular celebrado em homenagem ao cinquentenário do Botafogo Futebol Clube. A competição, disputada em abril de 1954, foi um mini campeonato brasileiro - inexistente, à época, é bom frisar. O Botafogo foi o campeão. Bateu o Palmeiras por 4x3, empatou com o Internacional em 2x2 e venceu o Fluminense por 3x1. O caneco ficou em casa.)

A conquista local funcionou como um aperitivo para a disputa da Taça Rafael Larrea. Em 18 de julho (véspera do primeiro aniversário de Garrincha como jogador alvinegro), em Medellin, Colômbia, o Botafogo sapecou 4x1 no Independiente de Medellin, já abrindo os trabalhos. 

A vítima seguinte foi o lendário time do Millionarios, em Bogotá. O Botafogo venceu o esquadrão por 2x0. O time voltou para Medellin, desta feita para enfrentar o Atletico Nacional. Depois de fazer 2x0 com Quarentinha e Garrincha, o time colombiano diminuiu aos 43 do segundo tempo. BFR 2x1.

Houve uma revanche, uma semana depois, também em Medellin. O Botafogo sacramentou o placar em 3x1, passou a régua e o Atletico Nacional pediu a conta. E toma-lhe avião. O próximo adversário era o Santa Fe. Sentindo o tamanho da piaba, o time local se reforçou com três argentinos de ponta (Rossi, Moreno e Vilariño, homônimo hispânico do autor). Não foi suficiente. Botafogo 2x1.

Em Quito, o alvinegro enfrentou o vice-campeão colombiano, o Quidio. Foi também devidamente atropelado: 2x0. O resultado valeu a Taça Rafael Larrea. Antes de retornar para o Brasil, o Botafogo, de ressaca e sem Garrincha, lesionado, enfrentou o Valdez e ficou no empate. 2x2. 

O saldo da viagem à Colômbia e ao Equador ficou em sete jogos, seis vitórias e um empate. Foram 17 gols a favor e 6 gols sofridos. A pressão da torcida, a arbitragem caseira e altitude de Quito e de Bogotá, que tanto mal fazem aos times brasileiros, parece não terem surtido efeito sobre o Botafogo.

No ano seguinte a principal viagem foi à Europa. Adversários sem expressão. O vôo atrasou, o Botafogo desembarcou em Madrid, foi para o hotel trocar a roupa e seguiu para o estádio. O jogo, contra o Real Madrid, com o estádio lotado, terminou empatado em 2x2.

Quatro dias depois, o confronto era contra o mesmo Atletico de Madrid que o Botafogo enfrentará em 23 de junho agora, pelo Mundial de Clubes da FIFA, no Rose Bowl, em Los Angeles. O Glorioso vencia por 3x2 até os 44 minutos do segundo tempo, quando os espanhóis conseguiram o empate.

Parecia que a sina do empate nos perseguiria. O Botafogo encarou o Valencia, reforçado por jogadores do próprio Atletico. Um pênalti inventado ajudou o time local a arrancar um empate. O jogo terminou mais uma vez com o placar de 3x3.

O jogo seguinte - realizado em 8 de junho de 1955, há 70 anos atrás -, foi contra o campeão francês, em sua cidade. O Stade Reims foi esculachado em casa. Botafogo 5x1, com exibição de cinema de Garrincha (a propósito, o clube enfrentará o campeão francês dia 19 de junho agora, o PSG).

O grande time francês da época, entretanto, era o Racing de Paris. O Botafogo o derrotou em Lens, por 3x2. O time brasileiro foi ovacionado. A ponto de exigirem dos jogadores que dessem uma volta olímpica, para que fossem devidamente reverenciados pela torcida francesa.

O compromisso seguinte não era um clube. Era uma seleção. A da Holanda. Ainda faltavam 18 anos para os holandeses revolucionarem o futebol mundial com a sua Laranja Mecânica. O Botafogo ignorou o promissor porvir neerlandês e meteu um 6x1, em Amsterdam, sem dó nem piedade.

O próximo destino em que o passaporte alvinegro seria carimbado foi em Turim. O Botafogo encarou um combinado formado pelos melhores jogadores da Juventus e do Torino. Passou o carro: 4x0. Foi a Roma enfrentar o Roma: 3x2. Chega. Era hora de voltar para casa - e com os cofres cheios.

Além das gordas verbas pelas partidas, o Botafogo vendeu Dino e Vinicius para os italianos. Um alívio para as contas do clube, já bastante combalidas. A torcida foi receber os heróis na Praça Mauá. No desembarque, os jogadores se perfilaram para receber as medalhas.

Em 1955, quando não havia ainda uma Taça Libertadores e um Campeonato Brasileiro, o grande objetivo dos nossos clubes era o de serem convidados para disputar torneios no exterior - e, vencendo seus jogos, acabavam sendo convidados novamente, e por mais países, no ano seguinte.

Hoje, devido à TV, os patrocínios sustentam a disputa de longas competições, nacionais e internacionais. Nesta época de ouro do futebol brasileiro, porém, as transmissões esportivas pagavam uma ninharia. Para ganhar la plata, os principais clubes excursionavam como circos.

A precariedade de registro e de calendário, entretanto, não pode ocultar a verdade: nunca nossos grandes times foram tão vitoriosos e tiveram tanto impacto no futebol mundial como nos anos 50 e 60. O Botafogo era a principal "companhia" brasileira de futebol - mas não era a única. Viajar mundo afora para caçar tostões - que bancassem os clubes - envolvia até mesmo o Bangu e o Bonsucesso.

Assim, se alguém pensa que aquela tonelada de jogos na Europa disputados pelo Botafogo em 1955 eram uma exceção, pode ir tirando o cavalinho da chuva. Era a praxe. Em 1956, o Glorioso conquistou o Troféu Ciudad del Cordoba vencendo o Cordoba por 4x3, na Espanha. Bateu o então campeão alemão, o Rott Weiss Essen, na Alemanha, na casa dos caras, também por 4x3.

O campeão da Copa da França agora era o Sedan. O Botafogo foi lá e sapecou 4x0 nos campeões. Dali o time rumou para Barcelona, onde enfiou 2x0 no Barcelona. Os espanhóis, inconformados com o chocolate, transformaram o fim do jogo em batalha campal. O time do Botafogo era bom de porrada e acabou com os 22 jogadores expulsos - a pendenga terminou na delegacia.

Extenuado, o Botafogo voltou ao Brasil para jogar o Carioca. Meteu logo um 5x0 no Flamengo.

Mas o ritmo de viagens cobrava um preço da condição física dos atletas. Se Zagalo (humilhado pelos dribles de Garrincha) prometeu vingança no jogo do returno e não levou - o Flamengo perdeu de novo -, o Botafogo se viu sem forças para uma corrida pelo título. O clube teria que esperar por 1957.

O primeiro semestre teve por destaque as eliminatórias para a Copa do Mundo, no ano seguinte. Garrincha foi titular da seleção. Empatamos em Lima e vencemos no Maracanã.

Um dos técnicos mais lendários da história do Botafogo assumiu o time: João Saldanha. O clube foi para Caracas disputar o que era então chamada de "Pequena Copa do Mundo", contra os espanhóis Sevilla e Barcelona e o Nacional do Uruguai. Todos contra todos, em dois turnos.

O Glorioso despachou o Sevilla (2x0) e o Nacional (4x0). No terceiro jogo, porém, o Botafogo parou no goleiro do Barcelona. Apesar da pressão, o jogo acabou em 3x0 para os espanhóis, com um gol do brasileiro Evaristo. Para levantar a taça, era necessário ganhar todas no segundo turno.

O time passou de novo pelo Sevilla (2x0), mas tropeçou nos uruguaios (2x2). Como o Barcelona também tropeçou - só que contra o conterrâneo Sevilla (idênticos 2x2) -, restava ao Botafogo derrotar o Barcelona e decidir o caneco na prorrogação.

Evaristo, mais uma vez, abriu o placar: 1x0. Só dava Botafogo, mas quem marcou, já no fim do primeiro tempo, foi de novo o Barcelona: 2x0. O segundo tempo foi um massacre. Além das bolas na trave, o clube brasileiro vazou três vezes a meta espanhola, mas o árbitro venezuelano Isidro Tapote inventou um impedimento para anular o terceiro gol. O Glorioso teve que se contentar com o vice.

O segundo semestre foi dedicado ao Campeonato Carioca. O Botafogo queria o título, que já não conquistava desde 1948. O Fluminense, porém, era o favorito, e já estava com a mão na taça - bastava vencer o Vasco na penúltima rodada. Só que não. O Vasco venceu. O Flamengo empatou e foi ultrapassado pelo Botafogo, que venceu também. 

O último jogo do tricolor, que continuava dependendo apenas de si mesmo, era contra o Botafogo, que agora vinha em segundo lugar. Mas um empate era suficiente para o time das Laranjeiras esfregar o título na cara de Didi, que havia se bandeado para o alvinegro no ano anterior.

Vilarinho conta passo a passo, lance a lance, cada detalhe do jogo final: eletrizante.

Foi o maior sapeca-iaiá da história das decisões do Carioca. Algo semelhante aos 5x0 do PSG na decisão da Champions, duas semanas atrás. O Botafogo varejou um acachapante 6x2 pra cima do Fluminense. Telê, o craque tricolor, pediu para o alvinegro só tocar a bola - e parar de fazer gols.

Paulo Valentim, com o diabo no corpo, fez, só ele, cinco gols. O primeiro já saiu aos dois minutos de jogo. Garrincha só não fazia chover. As bolas ou estouravam na trave ou passavam rente ao travessão. O primeiro tempo terminou 3x0. O time tricolor perdidinho em campo. Também, pudera.

O Fluminense diminui, com Telê, no início do segundo tempo, mas logo o Botafogo mete o 4x1. A defesa botafoguense já começa a comemorar. Thomé e Nilton Santos rasgam as camisas, confiantes no título que batia à porta. Garrincha dribla até o presidente do clube e enfia o 5x1.

Não satisfeito, Garrincha se diverte enfileirando todo mundo vestido com a camisa do Fluminense, para lá e para cá. Aos 24 minutos do segundo tempo, dribla dois e serve Paulinho, que faz o 6x1. O time cansou de perder gols. A torcida, alucinada, cantava a música que retomaria três quartos de século depois, para homenagear Tiquinho Soares: "Ai, ai, ai, ai, ai, ai, ai, tá chegando a hora..."

O tricolor marcou mais um aos 40 minutos, quando o alvinegro já tinha desperdiçado uma saraivada de gols. Aos 45, Paulinho driblou Pinheiro e iria marcar o sétimo gol do jogo (o sexto dele), quando o juiz achou de bom-tom interromper a carnificina. 

O Botafogo humilha o rival e levanta o caneco de 1957. Didi, como prometido, foi a pé de General Severiano até em casa, passando em frente às Laranjeiras. Saiu ainda trajado com o uniforme do jogo, mas foi perdendo as peças ao longo do trajeto - camisa, meiões, chuteiras. Chegou só de calção.

O título, além de merecido, fazia justiça ao melhor time do país (em uma época em que quase todos os clubes ostentavam um onze de respeito). O problema era o que isso cobrava em termos de exaustão física. Para um time bom e campeão, a cota por jogo dobrava, e aí era um vôo atrás do outro, para poder fazer frente aos salários faraônicos que os craques do time recebiam.

Com isso, no afã de manter as contas em dia, no dia 29 de dezembro, uma semana depois de sagrado campeão carioca, o Botafogo iniciou um périplo que começou na Costa Rica, enfrentando o Alajuense (0x0), o Huracán (0x3), o Saprissa (2x1), o Atletico Nacional (2x1), o Independiente Medellin (0x0), a Seleção de Curaçao (duas vezes, 4x1 e 4x0), o Deportivo FAS (4x0), o Atletico Marte (3x1), o Independiente (1x1), o Guadalajara (0x2), o Zacatepec (3x1) e o River Plate (1x1). Ufa.

O Botafogo havia deixado o Brasil entre o Natal e o Ano Novo, voltando logo depois do Carnaval (o jogo contra o argentino River Plate fora em 20 de fevereiro). No fim de semana seguinte, 27 de fevereiro, o Glorioso encarava o Corinthians (3x2) e o Santos de Pelé (2x2), pelo Rio-São Paulo.

Aí a garotada nutella de rede social questiona o porquê desse Botafogo não ter mais títulos...

A ausência de calendários regulares, a falta de fontes de receita (basicamente bilheteria e cotas de jogos) e o endividamento crescente fazia com que os melhores times estivessem sempre na estrada, de pires na mão. Priorizava-se um amistoso bem pago a um jogo oficial. Exemplos não faltam.

Nos anos 50, muitos dos principais times brasileiros estavam celebrando seus cinquentenários e realizaram jogos comemorativos. O Botafogo foi bem pago para ir a Belo Horizonte enfrentar o Atlético Mineiro, em 23 de março de 1958. Dim-dim. Em dez minutos o time perdeu três gols. Em vinte minutos o Galo meteu quatro gols. O Glorioso foi para o vestiário levando um sacode de 4x0. 

Saldanha não fez nenhuma alteração. Aos 15 minutos, Edson diminuiu. Aos 25, Garrincha: 2x4. Aos 31, Paulinho Valentim: 3x4. Aos 39, Quarentinha empatou. Aos 44, o mesmo Quarentinha virou: 5x4. Cinco gols em meia hora. Garrincha, zoador, se além de gênio fosse vidente, poderia ter falado: "Contra esse Mineiro, a gente ganharia mesmo com um a menos..."

Mas o principal objetivo futebolístico no primeiro semestre de 1958 era a preparação para a Copa do Mundo. O Botafogo teve 5 convocados: Didi, Nilton Santos, Garrincha, Cacá e Pampolini. Os dois últimos foram cortados antes do embarque. Garrincha não foi escalado como titular nos 3 primeiros amistosos do escrete e resolveu abandonar a Seleção. Saldanha foi às Paineiras convencê-lo a ficar.

Enquanto no sábado, em São Januário, o clube tascava um 3x1 no Vasco, em Gotemburgo, no domingo, Garrincha estreava na Copa. Era um 15 de junho, há exatos 67 anos atrás (o Botafogo estrear hoje na Copa do Mundo de Clubes, em Seattle, é uma coincidência singular). Oxalá.

Naquele dia, Garrincha acabou com o jogo. Fez o badalado futebol científico dos soviéticos virar piada. Abismado com a atuação do ponta brasileiro, um jornalista sueco escreveu: "Garrincha é uma combinação de Jesse Owens com Nijinsky". Quem??? Rapaziada, não vou contar para vocês quem eram os dois. Posso adiantar que um era americano e o outro russo - e nenhum deles jogava bola. Pesquisem.

Vindo de um frustrante zero a zero com os ingleses, o Brasil arregaçou os russos e não parou mais de ganhar. Um a zero contra Wales, 5x2 nos franceses e 5x2, de novo, nos donos da casa, a suecada. Garrincha, Pelé e, principalmente, Didi, arrebentaram.

Vilarinho aponta que, na eleição promovida pela agência de notícias United Press International (UPI), 5 brasileiros formaram na seleção da Copa: Djalma Santos (da Portuguesa), Belini (do Vasco), Nilton Santos, Didi e Garrincha (os três do Botafogo). Sim, é isso que você está lendo. Pelé ficou fora.

Coube ao Press Club eleger os melhores da Copa. Didi, com 1.350 votos dos jornalistas esportivos, foi eleito o melhor jogador - e consagrado com o epíteto de Mr. Football. O artilheiro da Copa, Kopa (sem trocadilho), ficou em segundo (456 votos) e o sueco Skoglund (436 votos) em terceiro.

A Federação Sueca promoveu também uma votação entre 750 jornalistas, e igualmente elegeu cinco brasileiros, mas com Pelé no lugar de Djalma. Nílton Santos foi o mais votado, com 619 votos. Seu presidente, Gunnar Lange, afirmou: "Didi foi o maior jogador do mundo dos que já vi jogar. Pelé e Garrincha estão em plano inferior". O próprio Pelé discordou, em declaração ao jornal espanhol Marca, que perguntou não ser Pelé o maior: "O maior jogador do mundo não sou eu, é Garrincha".

Fato é que, após a conquista da Jules Rimet, os três jogadores do Botafogo garantiram seu lugar entre os maiores jogadores da história. Didi, como o melhor da Copa; Nilton Santos foi além, tido até hoje como o maior lateral esquerdo de todos os tempos; Garrincha, o maior de todos, se decisivo em 1958, é considerado o jogador que ganhou "sozinho" a Copa de 1962, quatro anos depois. Que façanha do clube de General Severiano.

O despeito encolerizado que o Botafogo passou a despertar desde então não é à toa. É merecido.

Os craques voltaram da Suécia valorizados. Coube ao Botafogo pagar a fatura, aumentando os ganhos do trio campeão do mundo. Segundo apurou Vilarinho, o clube se antecipou ao assédio europeu e já reajustou os salários de Nilton e Garrincha para 50 mil e 45 mil, respectivamente. 

Didi logo passou a ganhar mais de 100 mil por mês, o dobro do que recebia um ministro do TST. E Garrincha teve novo aumento para 80 mil mensais, em um contrato de três anos. Nilton Santos idem. Assim, para não vender suas estrelas (com inúmeras propostas dos gigantes europeus), o Botafogo precisava de bilheteria e de excursões - sacrificando a performance nos campeonatos locais.

Não fosse isso, o Campeonato Carioca de 1958 certamente teria sido conquistado pelo Botafogo - como também os seguintes. Mas o time estava depauperado e amargou o certame atrás dos rivais.

Mesmo assim, ficou na cola. O penúltimo jogo era justamente contra o Vasco, líder. O Botafogo venceu, e na rodada seguinte o Vasco perdeu de novo, desta feita para o Flamengo, o que levou a um empate triplo entre os três, no fim do campeonato. O título de 1958 seria decidido em 1959.

E a decisão ficou para um triangular final, batizado pela imprensa como "Super Campeonato". O Botafogo, que teve um gol mal anulado, perdeu para o Flamengo; mas depois venceu o Vasco, que venceu o Flamengo. Novo empate, provocando um novo triangular e o "Super-Super-Campeonato".

De novo o Botafogo ia vencendo o Vasco, com um belo gol de cobertura de Paulinho Valentim, mas o juiz Eunápio de Queiroz inventou uma falta no meio campo. Ignorou os pênaltis em Garrincha (aquele da Copa do Mundo) e deu a vitória ao time de São Januário. O mesmo Eunápio foi escalado para o jogo seguinte contra o Flamengo. Saíram dois gols para cada lado, até que Neivaldo, do Botafogo, desempatou no último minuto. Eunápio (rima com...) anulou. O jogo terminou 2x2.

O confronto entre Vasco e Flamengo definiria o campeão. Ao Vasco, bastava o empate. Segundo Vilarinho, "a maioria do time iria torcer pelo Flamengo, exceto Garrincha". O ponta declarou aos jornalistas sua indiferença: "Para mim, tanto faz que ganhe o Flamengo ou o Vasco".

Deu Vasco. O "super-super campeão" ficou doze anos em jejum depois desse título.

Uma paradinha para contextualizar. Voltemos somente um ano no tempo. Você viu. O Botafogo venceu o Carioca de 1957, goleando o Fluminense na véspera do Natal, viajou em seguida para a Europa, onde varou o Ano Novo e ficou dois meses jogando a cada três dias, retornou ao Brasil já indo para a capital paulista disputar o Rio-São Paulo, teve cinco jogadores convocados para os treinos da Seleção, três foram com o escrete para a Europa (de onde voltaram campeões e eleitos os melhores da Copa e do mundo), o elenco ficou rodando o Brasil realizando amistosos, na volta da Copa o time engrenou no Carioca de 1958, que teve dois triangulares extras, terminando em 1959... e, uma semana depois, o time partiu em excursão pelo Nordeste, e na volta, sob protesto, teve novamente cinco jogadores convocados para a Seleção que disputaria o Sul Americano em Buenos Aires - do qual o Brasil regressou invicto e vice-campeão -, com Didi sendo o único jogador que atuou os 90 minutos em todos os seis jogos. Aí o clube disputou o Rio-São Paulo e partiu em excursão para a Europa.

Vou voltar nesses jogos, que o historiador botafoguense, Carlos Vilarinho, diligentemente recuperou.

Mas, continuando o raciocínio sobre quão esfalfados ficavam os jogadores, é imprescindível lembrar que, na época, não eram permitidas substituições. Ou seja, quando alguém se machucava, o time jogava com um jogador a menos. E, não havendo substituições, os elencos eram naturalmente mais curtos; um clube como o Botafogo jogava de três em três dias, sempre com os mesmos atletas.

Alguns exemplos (bizarros, sob a ótica de hoje) são trazidos por Vilarinho. No clássico entre Botafogo e América, pelo turno do Campeonato Carioca, com um minuto de jogo, Garrincha dribla dois, entra na área e sofre pênalti (não marcado por José Gomes Sobrinho), se estabacando no gramado. Sofre luxação da clavícula e vai para o vestiário. Voltou a campo aos 28 minutos, ovacionado pela torcida.

Mesmo com um a menos e jogando no 4-3-2, o Botafogo tinha aberto o marcador, com Quarentinha. Enfaixado e com um braço preso, Garrincha continuou driblando e apanhando. O time faz dois a zero e, já no fim do jogo, Garrincha dribla os zagueiros, cruza (enquanto é jogado fora do campo sobre os fotógrafos e arrebenta de vez a clavícula) e vê Rossi fazer o terceiro gol. Só aí ele saiu de vez.

Outro exemplo non-sense é no jogo contra o Vasco. O goleiro Ernani saiu lesionado no fim do primeiro tempo e o atacante botafoguense Neivaldo foi para o gol. Fez duas defesaças no início do segundo tempo, até que Ernani foi devolvido ao jogo, aos dez minutos. De volta ao ataque, Neivaldo ainda cruzou para Amarildo fazer o gol da vitória: Botafogo 1x0 Vasco. É surreal ou não é?

Mas saí do roteiro para falar de excesso de jogos e da impossibilidade de substituições. Após os dois triangulares decisivos do Carioca, o Botafogo partiu em excursão, na segunda quinzena de janeiro. 

Foi a Goiás enfrentar o Goiânia (6x0), DOIS dias depois jogou em Belo Horizonte contra o Atlético Mineiro (3x1), seguiu para Salvador para pegar o Bahia (1x0), dali para Maceió contra o CSA (4x0), em seguida para Belém enfrentar os três maiores times locais - Tuna Luso (6x0), Remo (2x1) e Paysandu (1x1) -, fechando contra o Santa Cruz (2x3), em Recife. Tudo isso em trinta dias.

Descanso? zero. O Botafogo teve cinco convocados para disputar o Campeonato Sul-Americano (hoje rebatizado de Copa América) de 1959 em Buenos Aires. Já estropiados da sucessão infinita de jogos, Nilton Santos tomou um pau contra o Peru, Zagalo não rendeu, Garrincha chegou lesionado.

Depois das vitórias sobre Chile e Bolívia, já com Garrincha no time, Paulinho Valentim foi escalado para a guerra contra o Uruguai e meteu os três gols do jogo (3x1). Goleamos o Paraguai e empatamos com a Argentina, nos cabendo o vice-campeonato sei lá por quê.

Didi jogou os 90 minutos em todos os seis jogos e foi eleito o craque do campeonato. Fui checar os placares no site especializado ogol.com.br (https://www.ogol.com.br/equipe/brasil?edicao_id=5178) e, para minha surpresa, descobri que o site coloca Didi não como atleta do Botafogo, mas sim como jogador do Real Madrid. O torneio foi de 10 de março a 4 de abril. Vale destrinchar.

Cinco dias (!) após a final da Copa América, Didi entrou em campo pelo Botafogo, fora de casa, para enfrentar o Santos, pelo Rio-São Paulo, no dia 9 de março; e, na semana anterior à viagem para Buenos Aires pela Seleção, Didi jogara o amistoso contra o Santa Cruz, em Recife, no dia 24 de fevereiro. Ou seja, não dá margem à dúvida ou confusão. Como o site, tão acessado, comeu essa mosca? Didi era inequivocamente jogador do Botafogo, quando da disputa em Buenos Aires.

Veja: depois da Copa América, Didi ainda disputou 19 jogos pelo Botafogo, marcando inúmeros gols, e participando da excursão à Europa, onde foi novamente o principal destaque (lembremos: Didi era então o maior jogador do mundo) - incluindo o célebre jogo contra o Atletico de Madrid. Já falo nele.

É. Numa maratona interminável, os cinco craques do Botafogo voltaram de um mês de disputa da Copa América na Argentina, com o time todo estropiado, para disputar o Rio-São Paulo, ao mesmo tempo que revezava as datas com os amistosos, atrás de cotas nem sempre polpudas, mas irrecusáveis: jogava nos fins de semana e às quartas viajava, como para enfrentar o Goiás (3x0) e Internacional (4x4). Dureza.

Findo o certame, toca pro aeroporto. Quase metade da linha campeã do mundo em 1958 (Didi, Garrincha, Nilton Santos e Zagalo) voltava ao local do crime, desembarcando em solo sueco. Encarou AIK (0x1), Gimönas (3x1), Staevnet (1x2) e, pasme, a própria seleção sueca - derrotada pelo Brasil por 5x2. O Botafogo manteve a diferença: meteu 3x0 na seleção dos caras e 3x1 no Malmö-Norrköpping.

Aí foi um tal de subir e descer de avião, com um estádio entre cada vôo. Na Bélgica o Royal Liége (3x1), em Viena a Seleção da Áustria (2x2), de volta à Bélgica o Anderlecht (5x0), na Alemanha o Fortuna 54 (4x3), o Willem II (4x1) e o Saarbrücken (4x0) e aí na Itália o Milan (2x2).

Em seguida o Glorioso foi à Espanha enfrentar o Atletico de Madrid (com Vavá e reforçado por... Puskás!). Era um 24 de junho de 1959, uma simetria inacreditável com o confronto entre Botafogo e Atletico pelo Mundial de Clubes, no próximo dia 23 de junho. Exatos 66 anos antes, Didi e Zagalo abriram 2x0. Vavá e Hollaus empataram. Quarentinha mete dois: 4x2. Começa o segundo tempo e Puskás diminui: 4x3. Zagalo faz o 5x3, Puskás faz o Madrid encostar de novo, mas Didi dá números definitivos ao placar: Botafogo 6x4 Atlético de Madrid.

De Madri, o Botafogo voa para a Holanda, aterrissa em Roterdam, enfrenta o Feyenoord (1x3) em 26 de junho (dois dias depois do jogo contra o Atletico na Espanha), voa para Lisboa, pega um trem para Sevilla (Espanha) e, em 29 de junho, vence o Sevilla (2x1). Três jogos, dois vôos e um trem em 5 dias.

Depois, naturalmente, um mês de férias, não é? Nananinanão. Em julho começa o Campeonato Carioca de 1959, enfileirando um jogo atrás do outro. 5x1 Madureira, 2x0 Portuguesa, 0x0 Bangu, 6x0 Bonsucesso, amistoso 6x0 Sport, 4x0 Madureira , 3x1 América, 5x1 Olaria, 1x0 Vasco, 2x0 Canto do Rio, 1x2 Fluminense, 2x1 São Cristóvão, 2x1 Flamengo, 6x1 Portuguesa, 4x0 Olaria...

No segundo turno, o Botafogo cede o empate ao Fluminense (3x3) e fica com o vice-campeonato. Por conta de um regulamento esdrúxulo, coube ao Botafogo fazer dois jogos extras contra o Bangu, para definir quem ficaria com a vaga adicional para o Rio-São Paulo, se Bangu ou América.

Os dois jogos extras viraram três datas, por conta de um dilúvio que interrompeu o primeiro jogo. O Botafogo venceu o Bangu por 4x1 e 2x0, nos dias 23, 26 e 29 de dezembro. Supõem-se que no dia 24 celebraram o Natal. Extenuado, o Botafogo eliminou o Bangu e classificou o Mequinha.

Ressaltando que, numa época sem substituições, os reservas mantinham a forma disputando o campeonato de aspirantes, geralmente na preliminar dos jogos. O Botafogo, já campeão carioca de aspirantes em 1958, conquistou o bicampeonato em 1959, vencendo o Vasco por 2x1, em 2 de janeiro de 1960 - gols de Amoroso e Amarildo, que viria a ser O Possesso.

Dia 3 de janeiro o Botafogo embarcou em excursão, que duraria até 13 de março - pois em 16 de março começava o Rio-São Paulo. Depois de um amistoso com a LDU em Quito (perdeu, 1x2), foi para a Colômbia, disputar o Quadrangular Internacional de Bogotá. O clube bateu o Millionarios (1x0), o Santa Fe (5x4) e o Austria Wien (2x0). Mais um caneco na bagagem.

Dali o Botafogo seguiu, de aeroporto em estádio, de estádio em aeroporto: 2x0 Deportivo Cali, 2x2 Seleção da Costa Rica, 2x0 Comunicaciones, daí o time foi para o México fazer 3x2 Necaxa, 0x1 Leon, 3x1 e 2x1 na seleção mexicana, daí para o Peru meter 3x0 no Alianza e 3x0 no Universitario.

Voltou para o Rio-São Paulo, mas já com uma nova excursão acertada para a Europa. O embarque seria em 23 de abril e a volta em 3 de julho. A CBD estrilou. A Seleção também queria fazer uma tal "Excursão de Ouro", de 29 de abril a 15 de maio, e não abria mão dos jogadores do Botafogo. Nilton Santos, Quarentinha, Garrincha e Zagalo foram convocados e o clube ficou no prejuízo.

Que se revelaria maior: embora Quarentinha e Garrincha tivessem sido os destaques da excursão (Pelé não foi, pois o Santos se recusou a ceder seus jogadores), Garrincha foi "devolvido" em péssimas condições, tendo atuado no sacrifício; e Quarentinha voltou lesionado e extraiu o menisco.

A inviabilizada excursão à Europa foi trocada por um périplo sul-americano, com o time esbagaçado. Tanto que perdeu de 2x0 para o Alianza no primeiro jogo e empatou em 1x1 com o Sporting Cristal no segundo. No terceiro, contra o Universitario, o Botafogo foi à forra dos dois primeiros, vencendo por 6x2. Mas o jogo terminou em pancadaria, com todos os jogadores expulsos, à exceção de Zagalo.

Dali, a excursão deu chabu. O empresário se recusou a pagar a cota integral - pela ausência de Quarentinha, operado -, quis descontar demais na cota e o Botafogo voltou para o Brasil, abrindo mão dos caraminguás que receberia.

Didi, vendido em 1959 para o Real Madrid, seria recomprado pelo mesmo Botafogo um ano depois. A proposta do clube - 27 mil dólares! - superou a concorrência com o Barcelona e o Boca Juniors. O melhor jogador da última Copa do Mundo estava de volta ao país e a General Severiano - pena que já em meio a disputa do Campeonato Carioca.

Embora permanecesse até a penúltima rodada entre os três com possibilidades de título - ao lado de Fluminense e América - e praticasse aquele que unanimemente era considerado o futebol mais bem jogado, o gol de empate que levou do América (3x3) alijou o alvinegro da disputa. O América venceu o Fluminense na rodada final e ficou com o título de 1960. Seu último, aliás.

O ano de 1961 estava prestes a começar, naquela que seria a década mais gloriosa da história do Botafogo. Mas os memoráveis anos 60 nada seriam sem os fantásticos anos 50. E cada um dos jogos disputados pelo Glorioso na década de 50 está transcrito, decupado e analisado por Vilarinho.

Foram ao todo 615 jogos, com 355 vitórias, 129 empates e 131 derrotas; 1.464 gols marcados e 823 gols sofridos. Os principais artilheiros foram Quarentinha (205 gols), Garrincha (180 gols), Dino (140 gols), Paulinho Valentim (136 gols) e Didi (89 gols). Nilton Santos jogou 452 partidas, Garrincha jogou 431 jogos, Quarentinha 295 jogos, Pampolini 269 jogos e Juvenal 227 jogos.

Números fizeram do Botafogo uma máquina de ganhar jogos e troféus - no Brasil e mundo afora. 

Os fatos resgatados engrandecem a história do Botafogo e a história do futebol brasileiro. Devemos essa dádiva ao trabalho sério e criterioso do historiador e pesquisador Carlos Ferreira Vilarinho, autor do livro e responsável pela ampla pesquisa em que se baseia sua edição. A dívida que nós, amantes do esporte e torcedores do Botafogo, temos para com ele não pode ser medida.

Suas fontes foram os jornais da época, com seu registro factual. Do Rio, O Globo, Jornal do Brasil, Última Hora, Jornal dos Sports, O Dia, A Noite, Correio da Manhã, Diário Carioca, Diário da Noite, Diário de Notícias, Tribuna de Inprensa, Gazeta de Notícias, A Batalha, O Imparcial, O Jornal e O País.

Fora do Rio, os paulistas Folha de São Paulo, Folha da Manhã e Folha da Noite, os gaúchos Correio do Povo e Diário Popular, além do Diário Oficial do Distrito Federal e do Boletim Informativo do BFR.

Periódicos estrangeiros em que Carlos Ferreira Vilarinho obteve informações preciosas sobre os jogos do Botafogo no exterior foram os espanhóis ABC, El Mundo Deportivo e La Vanguardia, o mexicano El Informador, o costa-riquenho La Nácion, o colombiano El Tiempo e o chileno El Mercurio.

Que trabalho hercúleo. Que contribuição inestimável Carlos Vilarinho nos legou.

Eu aqui me vali deste material precioso garimpado por ele e, no conforto do meu teclado, direcionei os holofotes para algumas passagens que merecem o pódio eternidade afora. Em nome de toda a torcida e de todos os apaixonados pelo Botafogo, aplaudo de pé sua apuração obstinada e meticulosa.

Para nossa sorte e felicidade, o trabalho de Vilarinho não parou por aqui. Ele publicou, na esteira desse lançamento, as edições cobrindo os períodos de 1961 a 1965 (esgotada) e de 1966 a 1970 (ainda à venda). Podem ter certeza que, em breve, também estarão nas telas desse blog. FOGO!!!

Edição do Autor, 335 páginas  |  Copyright 2013  

Obs.: A foto que ilustra o post foi tirada no dia 27 de junho de 2025, enquanto o estádio Nilton Santos ainda estava vazio, à espera da chegada da torcida alvinegra. Era o jogo final da fase de grupos da Taça Libertadores, contra a Universidad de Chile, a "La U". Só a vitória nos classificaria para o mata-mata, eliminando os chilenos. Tivemos um jogador (mal) expulso aos 22 minutos do primeiro tempo - e de novo ganhamos um jogo decisivo de Libertadores jogando 10 contra 11. Gol de Igor Jesus, que teve uma das performances mais avassaladoras que o estádio já testemunhou. Um Jesus iluminado.

"Sem nunca jogar a toalha", por George Foreman


George Foreman era um tubarão. Um grande tubarão negro. Seus olhos miúdos e sua couraça imponente não deixavam margem à dúvida. Se ele viesse em sua caça, você estava morto. Não importava quem você fosse, seu destino era um só. Lona.

Seu auge foi há meio século atrás, em 1974. Lembro como se fosse hoje.

À época, seu próximo adversário, Muhammad Ali, era um mito. Os jornais ainda se referiam a ele como Cassius Clay, o nome que renegara. É que o mais carismático lutador de todos os tempos tinha dois nomes. O Clay, que repudiava, era seu nome de escravo. Ali era seu nome de liberto.

Não só. Cassius Clay fora encarcerado por se recusar a lutar na Guerra do Vietnam. Rejeitava o país e sua política, a ponto de adotar um nome muçulmano. Já George Foreman se tornara campeão olímpico de boxe e desfilara com uma bandeirola dos Estados Unidos nas mãos.

Ou seja, não faltava lenha nessa fogueira. Dois cíclopes em cantos opostos do ringue e do orgulho racial. Era a vez do novo campeão encarar o anterior. Do novo rei do boxe enfrentar a antiga lenda. E ninguém acreditava que o velho mito, um gigante falastrão, fosse capaz de vencer a fera.

Eu, criança, fiquei pilhado para essa luta, entre o tubarão predador e o ex-campeão lendário. Poucos anos antes, ele fora destronado por Joe Frazier (vi essa luta também, em preto-e-branco, numa transmissão que varou a madrugada), que depois fora despejado, debaixo de cascudo, por Foreman.

A imprensa proclamava que a luta entre Cassius Clay, ops, Muhammad Ali, e Joe Frazier era a "luta do século". Eu, bobinho, acreditava. Depois vieram mais umas quinze "lutas do século" - e o século ainda era o mesmo. Descobri que a "luta do século" era sempre a última.

Ali e Frazier eram o topo do boxe. Era como Roger Federer e Rafael Nadal foram anos depois, no tênis - absolutos. Aí surgiu o intruso George Foreman e implodiu Frazier em questão de minutos. Foi como se o Djokovic chegasse e eliminasse ambos por quarenta a zero no primeiro game.

A luta entre o campeão tubarão e a presa desafiante se daria no Zaire, um país africano que nem existe mais (eles vivem trocando o nome dos países por lá, dependendo do tirano da vez). Foi batizada de "The Rumble in the Jungle" e talvez tenha sido a maior luta de boxe de todos os tempos.

Ou seja, dá para dizer que esse confronto em Kinshasa, em 1974, foi mesmo a "luta do século".

Tanto que virou livro ("A luta", por Norman Mailer, postado aqui no blog dez anos atrás) e filme ("When We Were Kings", lançado em 1996). Você leu? se não, leia. Você viu? Se não, veja. É uma história épica. A jornada do herói. Sim, o inconcebível aconteceu. O ex-campeão abateu a murros o temível tubarão. E, não tivesse sido o avesso do nocaute esperado, não teria entrado para a história.

Mas o inesperado se deu. Muhammad Ali, a versão islâmica de Cassius Clay, cansou as mandíbulas do tubarão. O monstro definhou de fome. Morreu de tanto dar dentadas a esmo, sem destroçar sua presa. A tática maluca utilizada por Ali foi batizada de rope-a-dope

Não é qualquer ser humano que pode performar uma rope-a-dope strategy. Você precisa ficar pendulando para trás e para a frente nas cordas do ringue, enquanto um animal te espanca. A ideia é fazer o animal (o adversário) cansar de te bater. Se você não for nocauteado e sobreviver, aí sim você esmurra o animal cansado, que, extenuado, cai.

Foi o que fez Muhammad Ali contra George Foreman. Em seu livro "God in my corner", bisonhamente traduzido em português como "Sem nunca jogar a toalha", Foreman diz, contudo, que o "dope" da tal técnica foi literal. Ele teria sido dopado com uma espécie de sonífero, antes da luta.

E não só. Foreman confessa que o árbitro teria pedido 25 mil dólares ao seu agente para não desqualificá-lo. George resolveu pagar. Ele tinha fama de ser um lutador que dava socos abaixo da linha da cintura. Não quis correr o risco de ser desqualificado e ter seu cinturão roubado.

Algum tempo depois soube que o agente de Ali havia pago 35 mil dólares ao mesmo árbitro. Só aí entendeu melhor a pressa com que ele havia feito a contagem que deu a vitória ao adversário.

"Lutei limpo, e não fiz nada que teria me desqualificado, por isso desperdicei 25 mil dólares sem necessidade", reclama. "Mas quando Ali me derrubou, o árbitro contou rápido demais. Quando me levantei no oito, ele contou 'oito-nove-dez' como uma palavra só".

Certamente soam como desculpas. Mas fazem todo sentido. Eu, menino - reitero -, vi a luta. Tudo indicava que Ali seria trucidado pelo tubarão, sem dó nem piedade. Mas o tubarão, com 25 vitórias e zero derrota, "cansou". Eu, ehm. Todos celebraram que a estratégia suicida funcionou.

Eu também fiquei feliz. Torci muito pelo Cassius Clay contra o grande tubarão preto.

O livro de Foreman conta que essa luta foi decisiva para a sua vida. Segundo o próprio, ele perdeu, mas ganhou. Teria sido ali que ele começou a trilhar o caminho para Deus. Fico feliz demais por ele. Mas esse é só um prenúncio do que é o livro. É um (bom) exemplo do que se convencionou chamar no mercado editorial de literatura de auto-ajuda.

Nele, o ex-campeão mundial de boxe George Foreman traz conselhos de como superar as adversidades e como encontrar a si mesmo através da fé. Foreman foi um legítimo campeão e escreve um texto convincente (óbvio que com a ajuda de um ghost-writer, no caso, Ken Abraham).

Há muitas lições a aproveitar. Foreman se abre com tocante sinceridade e nos oferece palavras de conforto e conselhos sábios. Muitas das suas afirmações me comoveram. Mas o livro não é o que eu pensara. Só embarque nessa canoa se este for o tipo de literatura que você está procurando.

"Depois que encontrei Cristo, consegui olhar novamente para aquela luta de boxe e na verdade agradecer a Deus", reflete. "Embora eu não soubesse naquela época, o que parecia ser a pior coisa era na verdade a melhor. Por quê? Porque aquela derrota me iniciou na minha busca por Deus".

Há também conteúdo relevante sobre a trajetória do ex-campeão - distribuído de maneira esparsa. Picotada. Noutras vezes, de forma redundante. Só que o carro-chefe do texto é a sua conversão à fé.

São dezenas de páginas de reflexões íntimas e espirituais, orientação comportamental e proselitismo. Se você quiser saber o contexto detalhado das lutas do campeão, vá beber noutra fonte.

A obra nos faz simpatizar com George Foreman. De verdade. Ele deixa para trás a imagem de tubarão predador e se transforma na pantera amiga do menino Mogli. Mas confesso que não queria simpatizar com Foreman. Já simpatizo com gente demais. Me bastava apenas conhecer sua história.

Se minha curiosidade voltar, vou ter que procurar noutro lugar. Se achar, eu conto aqui.

Editora Thomas Nelson Brasil, 275 páginas  |  1a edição 2007  |  tradução  Rafael Mantovani

Título original: "God in my corner"

"Getúlio, 1882 - 1930", por Lira Neto


Na infância, minha convivência com Getúlio era puramente interesseira. O cabeçudo estampava a nota de dez cruzeiros. Os sisudos Caxias (dois cruzeiros) e Barão do Rio Branco (cinco cruzeiros) valiam menos. A feiosa Princesa Isabel valia cinquentinha - mas essa nunca me caiu na mão. Que dirá a do barbudo pai dela, D. Pedro II, montado em inatingíveis cem cruzeiros.

Pra mim, nossos vultos históricos eram literalmente moeda de troca. Quando alguém me dava uma nota com a cara lisa do Getúlio, eu corria na banca da esquina e trocava por dois gibis da Ebal.

À medida em que deixei de ser guri, tomei ciência de que o muita testa da nota esverdeada era o presidente mais reverenciado da História do Brasil. Nas leituras que se seguiram, percebi também que o baixola era muito incensado, mas pouco perscrutado. Li textos onde o conteúdo era mais retórico que histórico, mais hagiológico que biográfico. Em suma, uma literatura capenga.

Faltava uma obra à altura do espaço que Getúlio Vargas ocupava no imaginário do Brasil.

Enfim, o cearense Lira Neto chamou para si a responsabilidade em escrever a biografia completa de Getúlio Vargas. O brasilianista Thomas Skidmore, autor de "Brasil: de Getúlio a Castelo", troçava que a tarefa de biografar Getúlio demandaria "quase toda a vida de um eventual biógrafo". 

Não sei quanta vida tomou de Lira Neto. Mas gerou um calhamaço de mais de 1.800 páginas, distribuído em três tomos (para conforto do leitor). Hoje posto aqui o primeiro deles. O "soldado".

As três lombadas seccionam cronologicamente a trajetória de Getúlio Vargas.

Ainda que o próprio autor refute a ideia de três "Getúlios" (com cada um correspondendo a um tomo - o "revolucionário", até 1930; o "ditador", até 1945; e o "democrata", até 1954), faz sentido isolar as várias facetas de um mesmo personagem. É uma peça em três atos.

Políticos constroem uma persona pública por meio das quais interagem e desejam ser identificados. Nós, reles cidadãos, decupamos o enigma proposto quando, e se, uma biografia honesta os decodifica. Aí sim espreitamos o que estava velado pelas cortinas. É quando o figurão garboso no pedestal perde alguns dos seus disfarces e tem seus truques revelados.

E o figurão Getúlio tem uma magia bem peculiar. Bonachão, arguto e nada marcial. Ainda assim, chamei o primeiro de seus personagens de "soldado" porque ele mesmo assim se intitulou, na página do seu diário alusiva à sua posse como chefe de governo.

"(...) Eu entrei de botas e esporas nos Campos Elíseos, onde acampei como soldado, para vir no outro dia tomar posse do governo no Catete, com poderes ditatoriais".

Podemos ver o "soldado" em dezenas de fotos da época. Um coroa baixinho e rechonchudo numa veste militar. Tronco curto, com um cabeção e um ventre saliente, e perninhas miúdas enfiadas em botas enormes. Bem mais para anão de jardim que para combatente. Que soldado era esse?

Nem de todo farsa, nem de todo real. Quem ler a biografia de Getúlio escrita por Lira Neto irá descobrir. Tinha seus antecedentes. Manuel Vargas, pai de Getúlio, lutou na Guerra do Paraguai, comandando sua tropa. Saiu do conflito com patente de general e terras em São Borja.

Ligado ao principal grupo político do Rio Grande, chefiado por Júlio de Castilhos, e depois por Borges de Medeiros, Manuel Vargas sempre esteve próximo do poder. E doravante os Vargas foram o poder constituído em São Borja e arredores.

Dos filhos, o mais violento era Viriato, envolvido em pelo menos dois assassinatos. Já de Getúlio, roliço, pacato, o pai esperava tudo, menos um guerreiro. O menino surpreendeu o pai. Cismou de fazer o colégio militar. Cursou o colégio por mais de um ano, mas acabou abandonando, envolvido em uma revolta estudantil contra a péssima conservação das instalações.

Getúlio Vargas trocou de carreira - se formou advogado e foi indicado para promotor em Porto Alegre. Tudo a ver com seu jeitão. Mas aí estourou mais uma revolução gaúcha, entre chimangos (seu lado familiar) e maragatos, e ele voltou para São Borja, para estar ao lado do pai e dos irmãos.

A liça foi breve e ele retornou a Porto Alegre, onde (sob as bençãos de Borges de Medeiros, o grande manda-chuva local e do qual Manuel Vargas era tributário e aliado) se tornou deputado. Lógico que houve uma eleição. Mas eleições, naquele tempo, eram pro-forma. Vencia quem o presidente do estado dizia que venceu. Era tudo descaradamente fraudado.

Getúlio logo se revelou um político de berço. Sereno, conciliador, matreiro, cativava amigos e adversários. Suas manifestações na tribuna, somadas à confiança que o Borges depositava nele, o guindaram ao cargo de representante da bancada gaúcha na Capital Federal. 

Vargas deu tão conta do serviço que, no governo do recém eleito presidente do Brasil, Washington Luís, foi escolhido para Ministro da Fazenda. E olha que fazer contas nem era seu forte.

A imprensa não aliviou. O gaúcho não tinha predicados para a pasta. Era um político novo e não entendia patavinas de economia. Já Washington desdenhou. Disse que de economia entendia ele e bastava. E Getúlio acabou que conquistou mais apoios. O baixinho era danado.

O problema é que o país estava em convulsão política. Como sempre, aliás. Até postei aqui semanas atrás o livro do Pedro Doria sobre o tenentismo. Nele o jornalista esmiuça o golpe militar de 1922, a Revolução Gaúcha de 1923 e a Revolução Paulista de 1924, que desbocou na Coluna Prestes, ativa até 1927. Tá tudo no livro.

Getúlio Vargas largou o ministério para se tornar presidente do Rio Grande do Sul. Sua indicação era fruto de um acordo entre as duas grandes facções gaúchas - republicanos e libertadores - para que o sempiterno Borges de Medeiros, depois de cinco mandatos, entregasse o poder. Getúlio deixou de ser ministro, foi presidir o estado, mas preservou seu ótimo relacionamento com Washington.

Como sabido, àquela época São Paulo e Minas se revezavam na presidência. Era a tal República do Café com Leite. Mas Washington Luís, que já havia presidido São Paulo, queria emplacar seu candidato, o paulista Júlio Prestes. Os mineiros não gostaram. Foi soprado um nome de consenso. Uma candidatura gaúcha.

Podia ser "consenso" para a Aliança Liberal, o partido que fazia oposição ao governo. Para Washington, era uma traição. Principalmente quando o candidato aventado era o seu ex-ministro. 

Getúlio não gostou nem um pouco da ideia de ser lançado candidato a presidente. Por inúmeras razões. Primeiro, porque achou que não ganharia. Segundo, porque achava que, se ganhasse, não levaria. Terceiro, entrar em choque com o governo federal significaria cortar todas as linhas de crédito que vinham beneficiando o Rio Grande, todo endividado.

Getúlio não queria desagradar seus parceiros locais, se negando à candidatura. Mas também não queria afrontar Washington Luís, seu ex-chefe e, até então, conveniente aliado.

Acontece que havia muitos focos revoltosos país afora avessos a Washington Luís. O Rio Grande exercia uma liderança natural, pois o tenentismo estava mais estruturado lá do que em qualquer outra parte do país. Outro estado pegando fogo era a Paraíba. João Pessoa (que veio depois dar seu nome à capital) era o governador local, contra o governo federal e as forças conservadoras da região.

A terceira perna do grupo que queria derrubar o governo estava fincada em Minas Gerais. 

O nome de Getúlio Vargas ganhou cada vez mais força, ele que só queria governar o Rio Grande em paz. Mas Vargas acabou muito mais um joguete das circunstâncias do que condutor do próprio destino. Foi lançado candidato. Washington estrilou. Getúlio negou, mas outros fatos evidenciaram que ele dizia uma coisa em público, mas manobrava por baixo dos panos pela candidatura.

Os jornais estampavam nas manchetes as evidências do Getúlio traidor.

Traidor ou não, Getúlio tentou de toda maneira recuar. Mas era tarde. Seu nome foi para as urnas. Não levou, como ele já bem sabia. No Brasil de então, o voto era impresso, mas ganhava quem o presidente queria que ganhasse. Como já disse acima, a eleição era só para satisfazer as aparências.

Houve uma grita contra o resultado da eleição. Getúlio queria que ficasse tudo por isso mesmo. Se reaproximou de Washington Luís, com mensagens conciliatórias. Mas mataram João Pessoa (vice na candidatura de Getúlio) pelas costas. Até hoje se questiona se foi um crime político ou de vingança pessoal. Mas não importa. Naquele momento, tudo tinha um peso político.

O trinômio Rio Grande do Sul, Paraíba e Minas Gerais precisaria reagir em conjunto ao assassinato e dar uma resposta à altura. O Rio Grande resolveu se levantar contra a República. Getúlio assentiu. Os gaúchos fizeram sua bravata - iriam amarrar os cavalos no Obelisco em frente ao Senado Federal.

A princípio parecia que não daria em nada. Minas prometera muito e entregava pouco. Mas os gaúchos se articularam, mataram a resistência federal no estado ("mataram" do verbo matar, dezenas de oficiais legalistas foram mortos, Porto Alegre ficou em chamas) e embarcaram no trem rumo ao sudeste.

Uma vez "revolucionário", Getúlio intimamente se preparara para o pior. Seu código de honra era extremo. Caso a revolta desse com os burros nágua, suicidaria. O que ele enfim viria a fazer, em 1954, já ameaçava em 1930. E ameaçaria de novo em 1932.

Não foi necessário. A Revolução triunfou no Rio Grande. Agora era avançar e tomar conta do país.

Getúlio, o candidato preterido, aquele que assumiria a nação, foi no trem da soldadesca, num vagão que mais parecia um spa. Vestiu um uniforme de campanha, para ficar consoante com o espírito da coisa. Mas o avanço da Frente Revolucionária estava mais para festa do que para guerra.

Ainda no Rio Grande, "em todas as cidades do trajeto, maragatos e pica-paus confraternizavam, dando vivas a Getúlio em uma só voz. O povo cercava o trem, entoava hinos cívicos e aplaudiam febrilmente os soldados que apareciam às janelas da composição", relata Lira Neto.

As refeições eram feitas em pratos de porcelana e taças de cristal. "Havia razões para aquela caravana ser tão pouco marcial", explica o autor. Enquanto estivessem em território gaúcho, "o perigo de se deparar com tropas e reações legalistas pela frente era quase nulo".

As forças legalistas sediadas em Santa Catarina meteram o pé, diante do avanço revolucionário. Lira estima que mais de cem comboios cruzaram o rio Uruguai, na divisa dos dois estados, carregando as tropas da Revolução. Os vagões iam lotados e voltavam vazios, para buscar mais soldados.

De guerra, por enquanto, nada. Só muito oba-oba. Isso aqui é Brasil.

A chegada a Curitiba foi "deslumbrante", segundo o próprio Getúlio. Fardado, saiu do trem para uma limusine que o levou diretamente ao palácio do governo estadual. "Com um vistoso arranjo de flores sobre o capô, o veículo mais parecia um carro alegórico", pontua o biógrafo.

À medida em que os revolucionários avançavam e os legalistas recuavam, a batata do presidente Washington Luís ia assando. O emparedamento já era tal que o alto-comando das forças armadas chamou o protagonismo para si e apresentou um ultimato ao presidente, informando-o, na cara dura, que uma "Junta Governativa Provisória" assumira o comando da nação.

A heróica Revolução virou um reles golpe militar.

Pela manhã, Washington, encolerizado, prometeu aos seus ministros: "Só aos pedaços sairei daqui!". Avisado que aviões do Exército bombardeariam o Catete, bradou: "Que bombardeiem, mas não saio!"

À tarde, o brioso Washington, prudentemente, reconsiderou. Aceitou se entregar e foi feito prisioneiro no Forte de Copacabana. Seguiu para o cárcere numa limusine Lincoln modelo 1928.

Com o presidente deposto, a Junta Governativa tentou dar um golpe de mão nos revolucionários, dando a entender que ela presidiria o país até que fosse organizada uma nova eleição. Getúlio e seus aliados, que vinham em direção ao Rio, mandaram avisar que a banda tocaria de outra forma.

"Acho-me nas fronteiras do estado de São Paulo com 30 mil homens de tropas do Exército e do povo do Rio Grande do Sul, Paraná e Santa Catarina, perfeitamente armados e municiados, agindo em combinação com Minas e com o Norte, sob direção de Juarez Távora", escreveu Getúlio à Junta.

"Não somente para depor Washington Luís", continuou, "mas também com o fim de realizar o programa da revolução. Os membros da junta no Rio de Janeiro serão aceitos como colaboradores, porém não como dirigentes, uma vez que seus elementos só participaram da revolução quando ela já estava virtualmente vitoriosa".

Para bom entendedor, meia palavra basta. A Junta enfiou a viola no saco. "Estou pronto e sempre foi este o meu pensamento, passar o governo a Vossa Excelência quando Vossa Excelência aqui se apresentar", escreveu de volta o general da Junta, Tasso Fragoso.

Getúlio Vargas chegou na Estação da Luz, em São Paulo, no dia 29 de outubro. "Foi recebido com glórias de herói", com duas mil pessoas na gare, esperando por ele. Dois dias depois, a cena foi reproduzida tim-tim por tim-tim na Central do Brasil, no Rio de Janeiro.

O populacho do Distrito Federal repetiu o paulista. Se os paulistanos celebraram um sujeito que nunca viram mais gordo, os cariocas duplicaram a festa por alguém que mal conheciam.

"Cada pessoa, entre os milhares ali presentes, queria chegar mais próximo de Getúlio para olhá-lo bem de perto e, se possível, tocar-lhe a mão", descreve Lira. "Na balbúrdia que se formou, os mais velhos eram derrubados; as mulheres, atiradas ao chão; as crianças, pisoteadas", continua. "Os mais afoitos, ignorando as medidas de segurança, se precipitavam perigosamente, em ondas, rente ao vão entre a plataforma e os trilhos".

Quando o pequeno gaúcho de São Borja conseguiu se desvencilhar dos seus novos súditos, entrou no carro aberto da presidência da República, um Lincoln modelo L, que aguardava por ele. O trajeto se deu pelas avenidas entulhadas de gente: Marechal Floriano, Visconde de Inhaúma, Rio Branco e Avenida Beira Mar, até o Palácio do Catete - seu novo endereço nos quinze anos seguintes.

Foi coreografada então a cena que, antes prometida como uma bravata, entraria para a história: gaúchos, de uniforme de campanha, amarrando seus cavalos no obelisco defronte à Cinelândia.

O que a minuciosa biografia de Lira Neto nos oferece neste primeiro volume é a história de um político de pouca expressão (e reduzida experiência) ser enviado para a capital como novo representante da bancada gaúcha - e pau-mandado do caudilho do Rio Grande, Borges de Medeiros.

Habilidoso, cativou o presidente do país, Washington Luís, e, numa dança partidária das cadeiras, acordou ministro da Fazenda, sem entender bugalhos de economia. Num jogo de conveniências da política estadual, abandonou o ministério para se tornar governador do Rio Grande.

De volta a seu estado, em um momento em que a política nacional era um vulcão cuspindo fogo, seu nome é costurado por mineiros e gaúchos, à revelia da vontade do próprio Getúlio, como candidato de oposição ao governo federal - traindo o seu ex-chefe direto, o presidente da República.

Após muitas idas e vindas, Getúlio aceita, perde a eleição e se conforma; mas o resultado é contestado por seus pares e a aliança formada por gaúchos, mineiros e paraibanos se levanta em armas contra o governo, que promete resistir - mas se rende.

As centenas de vagões, trazendo trinta mil soldados e, no luxuoso carro-dormitório, o doutor Getúlio Vargas e comitiva, vem de Porto Alegre ao Rio de Janeiro em ritmo de festa. O até então semi desconhecido são-borjense assume o Catete e uns gaúchos de anedota dão a volta no Obelisco.

Termina o primeiro livro e começa um novo capítulo para a história do Brasil.

"Poucas vezes vi alguém descrever tão bem a história de Getúlio Vargas e do povo gaúcho como o Lira Neto na primeira parte da sua trilogia. Foi tão impactante para mim que me vi andando com Getúlio, fumando um charuto, pela Rua da Praia, em Porto Alegre", escreveu, na contra-capa... Lula! 

Sim, é bem possível imaginar Lula confabulando e fumando um charuto.

Mas lendo um livro?

Companhia das Letras, 629 páginas  |  1a edição, 2012


"Futebol ao sol e à sombra", por Eduardo Galeano


Não se pode fazer uma tier list dos livros sobre futebol sem a inclusão desta concisa, mas enciclopédica, obra do escritor uruguaio Eduardo Galeano.

Muito mais do que uma protocolar e impessoal viagem pelo tempo, ele registra com paixão os principais feitos do futebol sul-americano - e, de lambuja, os mundiais. Ainda que mais para hincha do que para historiador, sua prosa cobre mais de um século de de futebol. Por ele no pása nada

Lógico que, sendo de onde é, a mística charrua fala mais alto - ou seja, o futebol uruguaio e argentino estão em primeiro plano. Mas não há favor algum nessa ênfase - a Celeste é Olímpica por merecimento. Ganhou a medalha de ouro nas Olimpíadas de 1924 e 1928. E, mais, o mesmo time bicampeão olímpico se sagrou o primeiro campeão mundial, batendo a própria Argentina.

No Estádio Centenário, em Montevidéu, em 1930. Aliás, o mítico estádio da foto aí de cima.

Mas, se o livro fala muito de uruguaios e argentinos, fora de dúvida que quem divide o pódio com os hermanos são os brasileiros. Galeano adora o talento. Reverencia os craques brasileiros que viu jogar.

Dói, entretanto, que o primeiro grande espaço que ele conceda ao Brasil seja o da Copa arrancada a fórceps por Obdulio em pleno Maracanã. Para quem é da minha geração, 1950 ainda machuca. Mesmo tendo nascido muito depois da derrota humilhante, eu cresci escutando seus ecos.

Na minha infância, todo jogo Brasil x Uruguai despertava a ladainha do Maracanazo.

"O Brasil e o Uruguai disputavam a final no Maracanã. O Brasil era uma barbada. A final era uma festa", inicia o autor, destacando que todos já davam a vitória brasileira como favas contadas. "As primeiras páginas dos jornais já estavam impressas, já tinham vendido meio milhão de camisetas com grandes letreiros que comemoravam a vitória inevitável".

Pois é. Ele não está errado. Por tudo que li e ouvi, foi exatamente assim e ainda pior.

"Quando houve o gol de Ghiggia, explodiu o silêncio no Maracanã, o mais estrepitoso silêncio da história do futebol", diz. "Os comentaristas brasileiros definiram a derrota como a pior tragédia da história do Brasil".

Galeano conta como o próprio Jules Rimet perambulou pelo gramado: "Fiquei sozinho, com a taça em meus braços e sem saber o que fazer. Acabei por descobrir o capitão uruguaio, Obdulio Varela, e a entreguei quase às escondidas. Apertei-lhe a mão sem dizer uma palavra".

Galeano conta que era um pibe e escutou o jogo pelo rádio - no um a zero, fez mil promessas  (jamais cumpridas) para que a Celeste virasse o jogo. 

"A vitória do Uruguai diante da maior multidão jamais reunida numa partida de futebol tinha sido sem dúvida um milagre", afirma. "Mas o milagre foi acima de tudo obra de um mortal de carne e osso chamado Obdulio Varela". 

Obdulio, depois do jogo, passou a noite sozinho, zanzando pelos bares do Rio, observando, taciturno, a tristeza que provocara. Na volta, ganhou um qualquer do governo uruguaio. O bicho extra teve vida curta. "Deu para comprar um Ford modelo 1931, que foi roubado naquela mesma semana".

O escritor rabisca um tratado antropológico do futebol. Além dos mais badalados Obdulio, Zamora, Scarone, Nasazzi, nos apresenta Atílio, Schiaffino, Arispe, Petrone, Andrade - segundo Galeano, o primeiro negro que a Europa viu jogar bola. Venceu a Olimpíada de 1924. "Foi negro, sul-americano e pobre, o primeiro ídolo internacional do futebol", afirma.

São muitos os nomes. E, em meio a todos, os vivos e os mortos, certamente o jogador mais citado é o brasileiro Garrincha. O autor contempla muitos outros craques do Brasil - Friedenreich, Domingos da Guia, Leônidas da Silva, Zizinho, Didi - porém, somados, foram menos citados que Mané.

Se derrama em elogios a Leônidas, mas nega a ele a invenção da bicicleta. Segundo Galeano, o que aqui chamamos bicicleta é na verdade o que ele chama de chilena, criação de Ramón Unzaga no campo do porto chileno de Talcahuano: "Com o corpo no ar, de costas para o chão, as pernas disparavam a bola para trás, num repentino vaivém de tesouradas".

Quem deu o nome foram os jornalistas espanhóis, quando o Colo-Colo viajou para a Europa e o atacante David Arellano deu lá suas "chilenas", uma "cambalhota desconhecida". Arellano morreu naquele ano, em Valladolid, num choque com um zagueiro. Não disse se foi dando uma chilena.

"A leste, a Muralha da China. A oeste, Domingos da Guia". Se houve alguma introdução mais espetacular para descrever um zagueiro, ainda estou por ler. "Nunca houve zagueiro mais sólido na história do futebol", conta. "Desprezava a velocidade. Jogava em câmera lenta, mestre do suspense, amante da lentidão: chamou-se domingada a arte de sair da área com toda a calma".

Se fala da invenção da bicicleta, ops, da chilena e da domingada, fala também da invenção do gol de peito. Só que não se trata de banalmente deixar a bola ricochetear na caixa torácica. Vai além.

"Foi em 1947. Botafogo versus Flamengo. Heleno de Freitas, do Botafogo, fez um gol de peito", balbucia. "Heleno estava de costas para o arco. A bola chegou lá de cima. Ele parou-a com o peito e se voltou sem deixá-la cair. Com o corpo arqueado e a bola no peito, enfrentou a situação".

Eu mal consigo imaginar. Pena que não filmaram. Galeano continua: "Entre o gol e ele, uma multidão. Na área do Flamengo havia mais gente que em todo o Brasil", se empolga. "Heleno pôs-se a caminhar, sempre curvado para trás, e com a bola no peito atravessou tranquilamente as linhas inimigas".

Quantos metros teria andado? O escritor não conta. Revê o lance na memória dos sonhos.

"Ninguém podia tirá-la sem fazer falta", esclarece. "Quando chegou nas portas do gol, Heleno endireitou o corpo. A bola deslizou até seus pés. E ele arrematou."

Não foi só aqui que o galã temperamental do Botafogo deixou viúvas. "Heleno de Freitas tinha pinta de cigano, cara de Rodolfo Valentino e humor de cão raivoso. Nas canchas, resplandecia". Bom de perfil, esse Galeano. "Uma noite, perdeu todo o seu dinheiro no cassino. Outra noite, perdeu não se sabe onde toda a vontade de viver. E na última noite morreu, delirando, num hospício".

Já li a biografia de Heleno. Não há, em suas duzentas páginas, parágrafos como estes.

Mas é Garrincha o jogador ao qual Eduardo mais recorre. Teve o privilégio de vê-lo ao vivo. "Às vezes, quando já estava pertinho do gol, dava marcha ré e começava tudo de novo, só para prolongar o prazer". Conta, em detalhes, um dos gols que Mané fez exatamente assim, na Itália.

"Garrincha invadiu a área, deixou um beque sentado e se livrou de outro, e de outro. Quando já tinha enganado até o goleiro, descobriu que havia um jogador na linha do gol", exclama. "Fez de conta que chutava no ângulo e o pobre coitado bateu com o nariz na trave. Então, o arqueiro tornou a incomodar. Garrincha meteu-lhe a bola entre as pernas e entrou no arco".

Outro gol que descreve em minúcias foi o gol do lateral-esquerdo do Brasil, na Copa de 1958. A Áustria perdia de um a zero e o lateral avançou, com a bola dominada. "O técnico brasileiro, Vicente Feola, corria pela lateral do campo. Suando em bicas, gritava: Volta, volta!"

O tal lateral, batizado como Nilton Santos, "o homem-chave da defesa brasileira, chamado de Enciclopédia pelo muito que sabia de futebol, avançou, partindo do seu campo. Abandonou a retaguarda, passou a linha central, esquivou um par de adversários e continuou seu caminho", diz.

Enquanto isso, Feola se esgoelava. Mas "Nilton, imperturbável, não passou a bola a nenhum atacante: fez toda a jogada sozinho, e culminou-a com um golaço". 

Galeano conta que "Feola, feliz, comentou: Viram só? Eu não disse? Este sim, sabe!"

O escritor volta a Garrincha. "Jogava para um time chamado Botafogo, e esse era ele: o Botafogo que incendiava os estádios, louco por cachaça e por tudo que ardesse". 

"Nunca houve um ponta-direita como ele", se rende o uruguaio. "No Mundial de 58, foi o melhor em sua posição. No Mundial de 62, o melhor jogador do campeonato". Reverencia: "Ao longo dos seus anos nos campos, Garrincha foi o homem que deu mais alegria em toda a história do futebol".

Fez também seu necrológio. "Garrincha morreu sua morte: pobre, bêbado e sozinho".

Eduardo Galeano, aparentemente sem perceber, vai desfiando uma lista memorável de craques botafoguenses. Longe da contaminação do clubismo, abre pequenos capítulos para os brasileiros que admira na história do futebol. Depois de Heleno, Garrincha e Nilton, chega a vez de Didi.

"Ele foi o eixo da seleção brasileira", afirma. "Corpo enxuto, pescoço longo, estátua erigida de si mesmo, Didi parecia um ícone africano plantado no centro do campo. Ali, era dono e senhor".

"Chutando de longe, enganava o goleiro com a folha seca", revela. "Batia na bola com o lado do pé e ela saía girando e girando voava, dava cambalhotas e mudava de rumo como uma folha seca perdida no vento, até que se metia entre as traves, no ângulo onde o goleiro não esperava".

Não é fraco não esse uruguaio.

Ele volta a Garrincha, agora na Copa do Mundo de 1962. "Sem Pelé, e sob a batuta de Didi. Amarildo brilhou no difícil lugar de Pelé; atrás, Djalma Santos foi uma muralha; e, na frente, Garrincha delirava e fazia delirar". Galeano reproduz a manchete do jornal local, no dia seguinte à semifinal, quando eliminamos os chilenos: "De que planeta veio Garrincha? perguntava o jornal El Mercurio, enquanto o Brasil liquidava os donos da casa".

Dedica capítulos curtos aos demais grandes craques dos anos 50 e 60: Di Stéfano, Puskas, Lev Yashin, Bobby Charlton, Uwe Seeler, Gento, Stanley Matthews, Beckenbauer, Eusébio, Pedro Rocha e até um tal Jimmy Greaves de quem eu nunca ouvi falar, nem antes, nem depois.

A maior Copa do Mundo de todos os tempos, a de 1970, ganhou amplo destaque. O jogo mais aguardado, entre os campeões do mundo de 58 e 62 - o Brasil - e o de 66 - a Inglaterra -, ganhou um capítulo exclusivo, titulado "Gol de Jairzinho". Ele narra o gol, passe a passe. 

"Tostão recebeu a bola de Paulo César e avançou até onde pôde. Encontrou a Inglaterra inteira recuada na área. Até a rainha estava lá." Verdade. Podemos ver nos teipes. Conta como a bola chegou a Jairzinho, "que tinha aprendido a ganhar a vida no subúrbio mais duro do Rio de Janeiro".

Bem, até onde eu sei, Jairzinho é dali mesmo de Botafogo, na Zona Sul do Rio. Ainda moleque, pulava os muros de General Severiano, para ver o time treinar. Depois, mais taludo, tricampeão juvenil do Rio, a vida era dura mesmo: disputava a ponta-direita do time do bairro. O titular chamava Garrincha.

No México, na segunda partida da fase de grupos, estava zero a zero, quando Jairzinho "saiu disparado com uma bala negra, driblou um inglês e a bola, bala branca, atravessou a meta do arqueiro Banks". Eduardo não curte muito o Reino Unido. Sem disfarçar, comemora. "Em ritmo de festa, o ataque brasileiro tinha se livrado de sete guardiões. E a cidadela de aço tinha sido derretida por aquele vento quente que vinha do sul".

"Na final, o Brasil esmagou a Itália por 4x1". O autor repercute os jornais ingleses: "Deveria ser proibido um futebol tão belo". O Brasil ganhou pela terceira vez a Jules Rimet. Posse definitiva.

"No final de 1983, a copa foi roubada e vendida, depois de ser reduzida a quase dois quilos de ouro puro", denuncia o autor. Diz ainda que "uma cópia ocupa seu lugar nas vitrines". Não está no livro, mas tenho que complementar: roubaram a cópia também.

Não sei se o autor chegou a ser cobrado em vida. Quase metade dos jogadores brasileiros que cita no livro eram jogadores do Botafogo. Seria justo que uma parte (ainda que simbólica) dos royalties fosse para o time de General Severiano. Ao longo de 118 anos de penúria teria vindo bem a calhar.

Contra o capitalismo, contra o Primeiro Mundo, contra a mercantilização do futebol, contra os patrocínios, contra a enxurrada de jogos, contra a transformação dos atletas em máquinas de jogar futebol e em produtos globalizados - o escritor uruguaio abominaria as SAFs. Escapamos dessa.

Galeano fez um aditivo posterior ao livro, reunindo as copas recentes. Não tem o mesmo sabor.

Ainda que a contragosto, Eduardo não se furtou a fazer o panegírico do Peñarol, que se auto-intitula El Capo del Continente. Fala do célebre confronto entre os campeões de Europa e América do Sul, Real Madrid e Peñarol, em 1966. Dois jogos. Os uruguaios venceram ambos por 2x0.

"Na década de 60 o Peñarol herdou o cetro do Real Madrid, que tinha sido a grande equipe da década anterior", opina. "Naqueles anos, o Peñarol ganhou duas vezes a Copa do Mundo de clubes e foi três vezes campeão da América".

Tirei a foto que ilustra o post em outubro passado, na semifinal da Libertadores de 2024. O jogo foi contra este Peñarol, o tal vencedor de dois Mundiais e cinco Libertadores. Ainda assim, um bom e antigo freguês do Botafogo. Os eliminamos na Liberta de 1973, com duas vitórias, e fomos campeões da Taça Conmebol (hoje rebatizada Copa Sul-Americana) ganhando deles nos pênaltis, em 1993. 

Na semana anterior, no Nílton Santos, metemos no Peñarol uma sonora goleada: 5x0. Eu quase me joguei da arquibancada, em êxtase. Os uruguaios ficaram tão perdidos, depois do vareio, que por pouco não fecharam a fronteira, para que o Botafogo não pudesse entrar no país em vias de escriturar o massacre.

Não adiantou. Fomos assim mesmo.

Nesse jogo de volta, em que os uruguaios ameaçavam trucidar os torcedores botafoguenses, seguimos temprano para o Estádio Centenário, sob uma mal-encarada escolta policial. Eu aproveitei o sol que caía, no fim da tarde, para homenagear um uruguaio decente. 

Foi nas arquibancadas azuis de cimento carcomido que comecei a ler o livro de Eduardo Galeano.

De novo eliminamos o Peñarol (para alegria do autor, torcedor do rival Nacional) e nos classificamos para a finalíssima continental. Do outro lado do Rio da Prata, em Buenos Aires, exatos trinta dias depois, com um jogador a menos desde o primeiro minuto de jogo - fato inédito em sessenta anos do torneio -, o Botafogo perpetrou a mais gloriosa conquista da história da Copa Libertadores.

Se Galeano ainda estivesse entre nós, essa façanha sem dúvida daria um capítulo à parte.

O nome? o autor apreciava os títulos curtos. Tenho para mim que lhe bastaria "El Glorioso". 

Editora LP&M, 256 páginas  |  3a edição, 2013  |  Copyright 1995  |  Tradução Eric Nepomuceno

Título original: "El Fútbol a sol y sombra"