"Brasil, um país do futuro", por Stefan Zweig

sexta-feira, março 12, 2021 Sidney Puterman


Stefan Zweig mudou-se para Petrópolis no fim do inverno de 1941. Era para ser mais um endereço temporário, mas foi o derradeiro. Alugou uma casa simples na Gonçalves Dias, numa encosta no início da rua, sobre a região conhecida como Duas Pontes. Da varanda, no alto, ele contemplava o cruzamento das quatro vias: a Washington Luís, a Coronel Veiga, a Saldanha Marinho e a sua própria. A junção não era uma estrela, era uma cruz.

"A coisa mais importante: resolvi alugar uma pequena casa em Petrópolis cuja vantagem principal (para mim, decisiva) é a gigantesca varanda. O importante agora é sobreviver a esta era... descubro (com as notícias da guerra) que comer e dormir pacificamente são grandes conquistas. Por mais primitivo que aqui seja, por cinco meses estarei livre de hotéis, sem olhar malas empilhadas."

Zweig tinha vindo de muito longe com sua segunda esposa, Lotte. Vinham saltando de cidade em cidade. Viena, Paris, Londres, Nova Iorque, Buenos Aires, Rio de Janeiro. Seu mundo veio encolhendo e se descivilizando. Mas nada era menos incivilizado do que a Europa naquela época.

O bangalô foi alugado por cinco contos de réis de uma americana, Margarida Banfield, casada com um inglês. Zweig estava satisfeito. "Porque Petrópolis é a única estância de veraneio perto do Rio e a vida aqui é paradisíaca e confortável". Às vezes. Lotte era asmática e o casal subestimou a umidade da serra. Mesmo os habituados ao inverno austríaco passam frio em Petrópolis.

Ao mudar para a pequena cidade serrana, numa casa simples a dois quilômetros do centro, tendo na esquina um café e uma barbearia, ele já havia escrito o livro que o ligaria para sempre ao país. "Brasil, um país do futuro" havia sido debatido e achincalhado. Dizia-se que o autor se vendera ao Estado Novo, a ditadura de Getúlio Vargas, para conseguir asilo político para seus compatriotas judeus. A obra se prestava a instrumento de sustentação de um regime não-democrático.

É bem possível que fosse isto mesmo. Basta uma sapeada no texto, para se constatar que o conteúdo está longe de ser bom. Não é nem histórico, nem jornalístico, nem opiniático. É uma mistura de estereótipo com idealização despropositada. A posteridade prova que o autor foi mesmo excepcional, mas este seu "Um país do futuro" é um livro ruim. Cujo título atravessou os tempos.

Explana o autor: "No Brasil, é sempre a sobriedade que chama a atenção. Como a casa se destina exclusivamente à família, ninguém procura ostentar com falsa pompa e pequenas opulências. Com exceção do rádio e da luz elétrica e, quando muito, de um banheiro, a sua divisão interna não difere muito da dos tempos coloniais dos vice-reis."

Comparar o Brasil do aeroporto Santos Dumont, do arranha-céu de A Noite, de Carmen Miranda, de Francisco Alves, de Leônidas da Silva e de Ary Barroso aos tempos pré-Independência era muita liberdade poética. Sem falar neste conceito de família brasileira de comercial de margarina.

Stefan romantiza, um caminho sempre fácil: "A família, aqui, ainda é o sentido da vida e o verdadeiro centro dinâmico do qual tudo parte e para o qual tudo retorna. Todos vivem juntos e são unidos, durante a semana, no grupo familiar mais íntimo,  aos domingos incluindo o grande círculo dos parentes; juntos resolvem sobre os estudos e a profissão que cada um deve seguir."

Aos olhos inebriados de Zweig, não só a família brasileira é exemplar, um modelo para a Europa decadente, como a mulher brasileira é parâmetro internacional de recato. 

"Mesmo as mulheres que trabalham, que ainda estão em insignificante minoria em relação às mulheres ligadas às atividades domésticas, conservam o tradicional retraimento. Ainda mais restrições têm as jovens moças. Relações de amizade com jovens, mesmo as mais inocentes, se não tiverem propósitos matrimoniais, não são habituais, e a palavra flirt ainda não tem equivalente na língua portuguesa."

Enquanto Zweig proclamava toda esta pudicícia puritana, Nelson Rodrigues já escrevia diariamente sobre o comportamento de um outro tipo de mulher, bem mais atrevida. E também ninguém emprestou um calção para o Stefan dar um pulinho na praia e constatar com os próprios olhos quão pudica era a sociedade que ele idealizava. E faltou quem contasse a ele que flerte, aqui, se chamava paquera. Aliás, não faltava nem nome, nem apelidos, para a bem popular prática do namoro.

"... Essas inúmeras famílias que vivem quietas e contentes em suas casinhas formam, por seu estilo de existência saudável e normal, o verdadeiro reservatório de energia da nação. Dessa classe média, que apesar de sua maneira conservadora de viver gosta de aprender e ama o progresso, desse húmus fértil e saudável origina-se a geração que hoje começa a dividir a direção do país com as famílias antigas e aristocráticas. De uma certa forma, Vargas, filho do campo e da classe média, é a expressão mais evidente dessa nova geração forte e energicamente ascendente e ao mesmo tempo conscientemente tradicional."

CQD. Acho que basta, para termos uma noção de porque o livro foi tão mal recebido nas rodas intelectuais que antes o idolatravam. O gênio da língua alemã fugira do ditador austríaco e se reduzira a pena paga de um ditador sul-americano. Getúlio lhe engrupiu, não lhe deu o que queria e a intelligentsia brasileira retirou o que lhe dera. Da obra, de duradouro, ficou o nome.

Alberto Dines, seu biógrafo e idealizador do museu hoje instalado na sua antiga casa (que, mesmo alterada, preservou a varanda, nem tão grande assim), escreveu no prefácio da obra que seu título "transformou-se em cognome, sobrenome, estigma e vaticínio. País promessa, terra do nunca, nação do amanhã - a expressão pode ser entendida em todos os sentidos".

Cada um que entenda como quiser os sentidos propostos por Dines. Zweig logo entendeu que seu oásis era uma miragem. Seu novo ponto de partida era ponto final. Do seu status de ícone da literatura mundial fora rebaixado a pária, um estrangeiro inoportuno, comprometido com a propaganda para o ditador. Não obstante, o título do livro renegado superou não só as boas intenções do escritor, como ultrapassou em anos o regime de então e vem sobrevivendo a muitos outros regimes. Virou slogan, virou bordão. Só não virou verdade.

Não precisamos ir longe para buscar exemplos de emprego da expressão. Esta reiterada associação do Brasil com o tal "país do futuro" pipoca quase todo dia em algum lugar. Hoje mesmo o ex-ministro Sergio Moro fez uso dela, em seu artigo quinzenal:  "A minha impressão é que o Brasil, por se acostumar por tanto tempo com a visão idílica de que seria o país do futuro, de que se transformaria em uma potência mundial, relaxou quanto às lições de casa. Pela crença equivocada em um destino manifesto nunca realizado, deixamos de modernizar nossa economia, de nos abrirmos para o mundo e de investir, de forma eficiente, em educação, ciência e tecnologia."

Moro vai além e diagnostica: "Talvez o erro tenha sido acreditar que as transformações venham do estado, mais especificamente do governo, ano a ano, década a década, sem que de fato isso ocorra. Talvez a modernização só possa vir mesmo da sociedade civil." O ex-juiz cobra responsabilidade pessoal de uma população irresponsável pela própria natureza. Zweig talvez fosse pessoalmente mais cético; só que seu livro era, por vocação, bajulador. Mas isso não o define.

Stefan Zweig era incomensuravelmente maior que o texto pobre que nos legou. Foi mero acidente de percurso. Ato de desespero de um cidadão órfão do seu mundo, da sua família, da sua pátria, do seu idioma. Seu enorme talento permanece até hoje aclamado, em dezenas de países. Petrópolis permanece até hoje orgulhosa da sua curta passagem, ainda que tão triste, tão terminal. 

O Brasil que se propôs a biografar era ainda uma nação em estado bruto. Os anos escorreram e o país continuou mal-formado, tosco, carnavalesco. O futuro que lhe foi projetado se tornou um vaticínio errado, uma encomenda desviada, um vaso espatifado no caminho. Milhões de seres sem um propósito definido, uma massa improdutiva e iletrada, cuja movimentação constante é enganosa. O pujante crescimento populacional remete à multiplicação de caranguejos no mangue.

A Casa Stefan Zweig, instalada no endereço do seu pacto de morte, é um ponto de cultura pouco frequentado por turistas e também pela população local. A obra do autor é pouco conhecida por aqui. O escritor judeu que fugiu de Hitler e se suicidou em Petrópolis em fevereiro de 1942 é hoje nome de uma faixa de grama com um metro de largura e três bancos, no centro da cidade.

Na ilustração do post, o livro escrito no passado está displicentemente jogado sobre um jornal do futuro. O encontro dos dois universos temporais, como um útero dilatado em 80 anos, explicita a contradição. A vida é feita de hipóteses sonhadas e chances perdidas, e com os países não é diferente. Nunca seremos o que poderíamos ter sido.

L&PM Editores, 261 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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