"Até parece que foi sonho", por Fábio

quinta-feira, março 07, 2019 Sidney Puterman

Você lembra do Fábio, né? pois é, não lembra. Eu também não lembrava. Mas o Fábio foi um cantor paraguaio que, no final dos anos 70, protagonizou uma canção de razoável sucesso no Brasil. A música era "Até parece que foi sonho". O hit estourou e ganhou clipe no Fantástico (veja em https://www.youtube.com/watch?v=CoCj1ykfFoY), onde o locutor da emissora anuncia: "O Brasil inteiro está cantando esta canção romântica. Uma canção em que dois amigos falam de amor." Não era mentira. Os dois eram mesmo amigos. E, uma baita sorte para o Fábio, o nome do amigo era Tim Maia. Ele mesmo, o astro-mor do soul brasileiro. No clip a gente vê que, como cantor, o encaracolado hermano tinha uma bela cabeleira, mas lhe faltava voz (paraguaio por paraguaio, sou mais o Gatito). E, quando chegava a vez de Tim entrar no single, depois de longos 50 segundos do lado A da bolachinha, ficava claro quem era o proprietário e quem era o inquilino. Tim estava no apogeu e o dueto era uma (rara) generosa retribuição a um amigo do tempo das vacas magras. O sucesso temporário foi suficiente para o paraguaio fazer um bom dinheiro, mas incapaz de catapultar a carreira de um cantor sem voz ou talento (para fazer justiça ao paranaense-paraguaio, "Até parece que foi sonho" foi, na verdade, seu segundo sucesso: ele havia frequentado as paradas dez anos antes, em 1969, com "Stella", em que ele gritava o nome da mulher amada com um eco ao fundo, bem a cara da época, mas ruim de doer - onde um remoto sotaque hispânico emprestava certo charme à canção). Fábio voltou para o ostracismo e para a função de amigo e faz-tudo de Tim Maia, até que se separaram definitivamente, em uma das características grosserias inaceitáveis de Sebastião. Alguns anos após a morte de Tim, o cantor publicou um livreto em que conta estórias divertidas que viveu ao lado do gênio gordo, feio e temperamental. O depoimento foi dado ao escritor paraense Achel Tinoco, que, no prefácio, diz, sobre Fábio: "Eu o encontrei, quase por acaso, na Dica Comunicação, no Rio Vermelho, em Salvador, batendo-se para escrever um livro sobre sua trajetória (...). Ao final de dez dias (o livro) estava escrito." Tinoco ainda afirma "prestar uma homenagem a dois grandes nomes da música brasileira - Fábio e Tim Maia", o que, já de antemão, revela que música não era assunto com o qual o escritor tivesse intimidade. O livro é despretensioso e se contenta com anedotas hilárias sobre um artista infeliz no amor. Há passagens non-sense com drogas, shows e animais, mas as com as mulheres são impagáveis. Conta o livro que elas adoravam o paraguaio e tinham asco de Tim. Então o relato de Fabiano (como Tim comumente o chamava) envolve um largo leque de paixões, rejeições e traições, que eram o feijão-com-arroz da vida amorosa do astro. Segundo o autor, Tim vivia repetindo: "Fabiano, eu sou formado em cornologia, sofrência e cirurgia capilar." Ou então: "Sou igual à minha torradeira, que é semi-automática. Sou semi-feliz." O amigo Fabiano não economiza nas desventuras do cantor. Conta que em São Paulo, antes do sucesso, "o que o Tim menos gostava, ao fim de cada show, era que eu levasse as meninas para comer lá em casa, enquanto ele não comia ninguém. (...) Às vezes chorava de tristeza na sala, enquanto eu ria no quarto com as meninas."  De outra feita, Fábio conta que o compositor de Do Leme ao Pontal se valia dos serviços de uma prostituta cinquentona, que batia ponto na Avenida Niemeyer. Tim comia fiado e não pagava. Possessa com os calotes do astro, ela pendurou um cartaz de papelão no pescoço e foi para a rua denunciar o mau-pagador. Tim acertou o devido. O paraguaio viu Tim esbanjar dinheiro das maneiras mais estapafúrdias, como comprar bezerro, bode e gavião (um de cada vez) e levar todos para morarem com ele no apartamento. O gavião foi demitido depois de atacar o cantor a bicadas - imagine abrir a porta e encontrar um sujeito de 200 quilos, de bruços no chão e gritando por socorro, fustigado por uma ave alucinada. Tudo isso tendo como pano de fundo os sempre imprevisíveis shows de Tim, com ou sem ele - porque, como todo mundo sabe, nem sempre Tim ia aos próprios shows. Para quem gosta de Tim Maia (eu sou fanzaço), o livrinho é um achado. Do jeito que o autor expõe e execra Tim, de vez em quando a gente reluta em por a mão no fogo por esta alegada amizade. Mas a humildade de Fábio diante de tantos desaforos aturados de Tim é também um tipo de execração. Do que eu concluo que os causos eternizados na publicação são uma prova de amor e o testemunho (mezzo divertido, mezzo melancólico) de uma época. Por fim, pela falta de destaque dada no livro, mera meia-dúzia de linhas, Fabiano não valoriza ter sido ele, o amigo paraguaio, quem proporcionou a maior obra-prima do repertório de Tim. Quem conta muito bem esta estória é Nelson Motta, na biografia de Tim, também aqui no blog. Num dia de depressão, olhando desolado para uma menina de biquini, em um poster de turismo na parede da quitinete do paraguaio, Tim resolveu se satisfazer sózinho, inspirado na beldade anônima. Saciado, compôs uma música para aquele momento solitário: "Ahhhh, se o mundo inteiro me pudesse ouvir, tenho muito pra contar, dizer que aprendi..." Dá para imaginar? Grande Tim.

Editora Matrix, 131 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Estou com este livro na estante, vou lê-lo em breve!
    Sua resenha aguçou ainda mais a minha vontade de devorá-lo.
    No livro "solar da fossa" tem depoimento dele, e tantos moradores ilustres que viviam no casarão, recomendo a leitura, caso não o tenha lido.

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  2. Valeu a dica, Tina! Já ouvi falar desse livro, vou procurá-lo :)

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