"O Voyeur", por Gay Talese
Gay Talese é uma lenda da reportagem e tido como um dos fundadores do Novo Jornalismo, movimento de valorização do texto ocorrido no fim dos anos 60. Há quem o considere mais que "um dos fundadores" - e sim o seu verdadeiro inventor. Este que é seu livro mais recente parte de uma situação inusitada: Talese em 1980 recebeu a ligação de um sujeito dizendo que tinha um motel e que há mais de uma década espionava os próprios hóspedes. Seu motel tinha 21 quartos e ele construiu uma passarela no teto, onde observava os hóspedes por entradas de ventilação falsas. Mais: escrevia relatórios detalhados sobre cada hóspede que bisbilhotava. Para lhe dar a estória, exigia apenas que o escritor o mantivesse no anonimato. Talese não concordou. Só escrevia sobre pessoas reais e com nomes reais. Mas, ainda assim, de passagem por Denver, Gay foi ao encontro do motel e do seu dono. Conversaram, subiram no telhado e chegaram a espiar um casal. Talese foi embora e deixou a estória de lado. Trinta anos depois, Gerald Foos, o proprietário do Manor House Motel, o procurou novamente. Concordava em entregar seus relatórios e ter seu nome publicado, bem como tudo o mais: endereço, detalhes da própria familia, fotos etc. Em décadas de observação, que lhe consumia praticamente todo o tempo, Gerald, agachado, testemunhou sexo, mentiras e discussões - mas estes eram os melhores momentos. Em 90% do tempo, se restringia a vigiar monotonamente o que se passava nos quartos. Pessoas vendo televisão, pessoas dormindo, pessoas comendo. Um cachorro que fez suas necessidades no carpete e os hóspedes colocaram uma poltrona em cima; sucessivos sujeitos comendo fritura e limpando a mão na roupa de cama; um gordo na privada que caiu de cara no chão. Bizarrices sexuais ele viu às mancheias: um sujeito que mijava no drinque da mulher quando ela ia ao banheiro; uma falsa prostituta que, depois de receber a grana e deixar o cliente nu, saía para comprar uma Coca-Cola, item essencial para que ela molhasse a boca durante o que seria o "melhor boquete do mundo", e dava no pé; um pai de família fazendo sexo com um ursinho de pelúcia (imagine aí por sua conta); um casal de irmãos adolescentes que transavam assim que os pais saíam; o hóspede solitário que teve uma parada cardíaca tocando uma, e que a equipe que veio levá-lo para o caixão não conseguiu fazer desgrudar a mão do pinto. Não tenha dúvidas de que Foos, que se pretendia um observador profissional mais relevante do que aclamados estudiosos do comportamento sexual, era, apesar da auto-estima elevada, basicamente um tarado. A ponto de uma vez quase ser denunciado pelo próprio sêmen: assistia um casal fazendo um sexo irado e gozou, no sótão, ao mesmo tempo que o hóspede gozava, no quarto, masturbado pela sua parceira. Enquanto o cara ejaculava em esguichos de um metro e meio, Gerald gozou sobre o respiradouro, sem reparar, e a gosma começou a gotejar. O casal na cama estava ainda nos espasmos pós-sexo, quando o negão falou para a loura (era um casal interracial, novidade nos anos 60) que estava pingando esperma do teto. A loura hóspede subiu na cama, passou o dedo na substância, lambeu e vaticinou: "Isso tem o gosto da sua porra..." O voyeur-punheteiro respirou aliviado pela conclusão errada da dona, em uma das poucas vezes em que correu o risco de ser descoberto. Fora estes momentos de pornochanchada (tem ainda o cara que se fantasiava de cabra e ficava fazendo meeééé pelo quarto), o livro é mais sobre Foos do que sobre espionar pessoas. Ainda que descrevendo as passagens cômicas e eróticas, enfatiza que o tédio era dominante na atividade do voyeur. Para quebrá-lo, chegava a inventar situações, como um "teste de honestidade", em que simulava uma hóspede ter esquecido uma maleta com US$ 1,000.00 dólares em um quarto específico, e no tal teste submeteu padres, médicos e militares à tentação de devolver a mala intacta (e vazia, como descobriram todos que a arrombaram). Houve uma vez em que as intervenções do dono do motel criaram uma tragédia, quando Gerald Foos foi determinante para o resultado final: um assassinato, que o voyeur provocou e testemunhou. Porém, mais não digo, porque já forneci uma quantidade mais do que suficiente de spoilers. No fim do livro, de lambuja, ainda temos uma estupenda entrevista com o autor, "Gay Talese e a arte da não ficção n. 2", escrita por Katie Roiphe e publicada na edição 189 da revista Paris Review. De tão reveladora, achei até mais divertida do que o livro, que não está entre os seus melhores (ele chegou a renegá-lo temporariamente à época do lançamento, após descobrir que Foos omitiu circunstâncias que atentavam contra a credibilidade da obra; mas depois reconsiderou o que disse, afirmando que apenas se sentiu traído). Cereja do bolo, Talese comenta o making of dos livros que fizeram a sua fama. E nos permite entender porque este vaidoso ex-office boy do New York Times tem um pedestal só para ele na história do jornalismo.Companhia das Letras, série Jornalismo Literário, 270 páginas
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