"Resistência", por Agnès Humbert

sexta-feira, abril 14, 2017 Sidney Puterman

"De toute façon, Monsieur le Président, entre nous deux, c'est réglé" ("De toda forma, Meritíssimo, entre nós dois estamos quites"), escreveu a francesa para o alemão - ela ex-prisioneira política sentenciada a trabalhos forçados na Alemanha nazista, agora livre, e ele o ex-juiz alemão que a condenou à prisão, agora preso. Não era ironia. A carta de Agnès Humbert para Ernst Roskothen era admiração sincera - e tinha lá suas razões. Mas estou colocando o carro na frente dos bois. Vamos por ordem nesta bagaça. "Resistência" são muitos livros em um só. Tanto de fato, como interpretativamente. O primeiro deles, publicado em 1946, apenas um ano após o fim da guerra, é "Notre Guerre". É um dos primeiros livros sobre a Segunda Guerra Mundial e foi escrito em primeira pessoa pela historiadora de arte Agnès Humbert. Résistance era o nome do jornal que Humbert e seu grupo imprimiam para promover os ideais de resistência e, nesta reedição que tardou décadas para chegar ao mercado, se tornou o título da obra, que reúne efetivamente o Notre Guerre, seguido de um posfácio brilhante de Julien Blanc - que é um outro livro, na verdade, ao contextualizar sob a lente do do conhecimento póstumo as ações individuais descritas por Agnès - e, ao fim, o surpreendente extrato das memórias do juiz alemão, o supracitado Ernst Rosthoken, que julgou os gaullistas. Assim, a edição é leitura imprescindível para o leitor interessado no período. Em seu livro, Agnès Humbert conta que, desde o princípio da ocupação alemã da França, esteve envolvida com os movimentos de resistência e que, presa, foi enviada para trabalhos forçados na Alemanha. Lá permaneceu até o fim da guerra, culminando por liderar, ainda em solo alemão, comandos de caça aos nazistas. Não obstante a dimensão do que viu e fez, o livro de Humbert, essencial para entendermos parte da História, foi relegado ao esquecimento em seu próprio país, como aponta o capítulo esclarecedor de Blanc ("Notre Guerre apresenta o perfil contraditório de um documento clássico, utilizado com frequência há várias décadas, mas limitado a um círculo reduzido de iniciados, inacessível ao grande público e, afinal, pouco conhecido"). As razões elencadas por Blanc vão da indesejada perspectiva de uma resistência inaugural francesa incipiente, que contrasta com a visão posterior de heróis oniscientes, e de uma revisão idealizada do que houvera sido o movimento, visões estas que não se encaixavam na descrição preliminar fartamente exposta por Agnès Humbert. Assim, a autora - que foi agente, vítima, testemunha e, ao fim, novamente agente - foi erroneamente empurrada para o limbo da historiografia oficial da guerra e da Resistência. Senão, que se julgue a relevância do conteúdo: em um primeiro bloco que é a transcrição efetiva de seu diário (ou o que se imagina sê-lo), Agnès fala sobre a reação inicial dos parisienses à Ocupação. Ela, que a principio foge da capital, mas retorna em poucos dias, imbuída de organizar um primeiro arcabouço de resistência, revela em seu texto o semi-amadorismo das primeiras ações. Sem a compartimentação de informações que é necessária em uma ação subversiva que se pretenda eficaz, logo foi denunciada e presa, passando um período inicial sob interrogatório nas prisões francesas e, ao fim, sendo condenada a trabalhos forçados - por Roskothen, como já mencionado - e deportada para a Alemanha. O leitor da versão brasileira, crente no subtítulo "A história de uma mulher que desafiou Hitler", a esta altura já desconfia que ela não "desafiará" o ditador. Foi um livre exercício de linguagem dos editores locais, que prestaram um desserviço ao público, com uma meia-verdade oportunista em busca de vender exemplares. Um subtítulo correto para o público brasileiro levaria diretamente ao pulmão do livro: "O trabalho escravo na Alemanha nazista, no relato de uma prisioneira estrangeira cristã". Foi o que se passou e é o que temos, por intermédio da narrativa brilhante de Humbert. Ela nos revela os pormenores do desumano trabalho escravo em solo alemão, nas fábricas de apoio ao esforço de guerra, com prisioneiras de todos os matizes e origens: criminosas comuns alemãs, escravas de guerra russas e ucranianas e presas políticas francesas, belgas e holandesas. Não havia prisioneiras judias ou ciganas, cujo destino, sabemos todos, era outro. Os que se derem à leitura do livro desfrutarão de um relato raro, em meio às milhares de obras sobre o nazismo. As memórias de Agnès também refletem facetas do povo, como filosofa uma prisioneira alemã: "O alemão foi feito para bater ou apanhar com o cassetete, não foi feito para ser um homem livre." A escravidão não era um recurso excepcional utilizado pelo governo alemão, no intuito de vencer a guerra: era ferramenta comercial e operacional. Em agosto de 1943, Agnès foi "alugada", com mais 60 prisioneiras, para Herr Joseph Scheuring, membro do partido nazista e que gerenciava um tráfico de escravas brancas. Agnès e as demais mulheres trabalharam como peões de obra, reparando fábricas bombardeadas, sob a surpreendentemente perversa vigilância dos filhos de Scheuring, de apenas 11 e 12 anos. Mas a derrocada alemã já vinha acentuada. Em um ano, graças ao desembarque aliado, Paris havia sido retomada e iniciava um acelerado refluxo, com os alemães em retirada da França - incluindo na fuga o Marechal Pétain, o líder francês que cedera a França a Hitler. Um jovem prisioneiro soviético foi quem contou a boa nova a Agnès, com um vocabulário alemão bastante restrito: "Pétain kaputt, De Gaulle gut gut." A situação ganha nova feição. Em poucos meses os americanos invadiriam a Alemanha. Paulatinamente, os civis alemães que serviam nas fábricas de trabalho escravo foram se tornando mais gentis. Mulheres alemãs que negavam uma gota d'água a quem morria de sede passaram a trazer bolos de maçã. Com a chegada das tropas aliadas e com os nazistas se escondendo, a mais inimaginável das inversões ocorreu. Agnès Humbert, a prisioneira incorrigível, se tornaria líder e organizadora da administração aliada na pequena cidade de Wanfried, local da sua última "atividade" como escrava. Agnès coordenou o sistema de suporte ao povo alemão inocente e cooperava na caça aos nazistas. Seus anos de cadeia, sua memória e perspicácia fizeram dela uma expert na arte de farejá-los e desentocá-los (havia redes de proteção já montadas, como os Wehrwolf, os "Lobisomens"). A francesa visitava as casas da região para recenseamento dos anti-hitleristas e obtinha informações valiosas, que repassava às tropas de ocupação. A política conciliatória dos americanos, porém, dava tão pouco importância aos criminosos de guerra que Agnès, em breve, optaria por retornar à França: "Em Eschwege os SS passeiam pela rua - para a maioria dos americanos, a guerra é uma atividade abstrata e teórica. Eles fazem a guerra, mas não a sofreram na carne. Não viram suas filhas serem levadas aos milhares, não assistiram ao fuzilamento de reféns, à prisão de suas mulheres, à destruição de seus lares nem ao saque de suas casas. Sabem direitinho que tudo isso aconteceu, mas foi com os outros..." O fato é que a situação era caótica, com criminosos de guerra livres, e perambulando, e ex-prisioneiros livres, e cometendo crimes. Relata Humbert que, na própria região de Wanfried, os poloneses, libertos da prisão e dos campos, comportavam-se como animais, vandalizando a cidade, roubando, ateando fogo e assassinando civis alemães. Enquanto isso, diariamente os americanos recebiam dezenas de teutões por dia, querendo se alistar no Exército dos Estados Unidos. Rei morto, rei posto. Para que se tenha ideia da personalidade de Agnès, basta dizer que, após mais de um ano e meio presa sob condições degradantes, ela havia se manifestado na visita protocolar de um general alemão à fábrica onde era escrava. Seu protesto foi tão veemente que as autoridades sugeriram que ela redigisse um pedido de clemência. Agnès lhes respondeu que queria apenas condições dignas - para ela e para as demais prisioneiras. Quanto ao pedido de clemência aos alemães, desdenhou: "Pedir-lhes clemência, eu? Prefiro morrer!" Não a mataram, nem lhe deram melhores condições. Anos depois, quando os americanos perceberam a importância da sua colaboração para reconhecimento dos SS, lhe ofereceram um apartamento em Mühlhausen e um soldo de oficial. Agnès declinou: "Recuso dizendo que, apesar de toda a sua riqueza, o governo dos Estados Unidos jamais conseguirá nos pagar pelo prazer que sentimos em caçar os nazistas." O desprendimento que a caracterizava (oposto à mesquinhez que domina nossos subversivos tupiniquins, hoje recebendo, ou candidatos a receber, aposentadorias espúrias do Estado, bancados por uma população miserável), se manteve na volta à França, após a guerra. O novo governo francês, então, lhe ofereceu o mesmo cargo e o mesmo salário no museu onde havia sido demitida por Vichy. Agnès não aceitou. Não só; jamais tornou a trabalhar para o Estado francês ou ser remunerada por ele. Na definição de Jean Cassou, um dos principais heróis da Resistência, Agnès era "uma mulher de temperamento extrovertido, impetuoso e temerário". Os dois se conheciam - tanto das ações de boicote ao invasor, quanto da prisão. Cassou ganhou a posteridade; Humbert, o quase anonimato. Quando fui à Paris fiz questão de incluir uma visita ao Musèe de l'Ordre de la Libération, que fica em uma das alas do fantástico Musèe de l'Armèe. O museu transborda de imagens de De Gaulle e também de Cassou. Procurei por referências a Agnès Humbert, sem que fosse as menções genéricas do site. Não achei. Me fiz fotografar ao lado do painel com o nome dos integrantes da Resistência. O dela não constava. Pena. Sua monumental - e individual - resistência depõe deveras a favor dos citoyens cantados em La Marseillaise. Como destaquei no parêntese anterior, no meu país não falta quem arrote o sofrimento experimentado no cárcere: presos políticos que nos anos 60 e 70 ficaram dias, semanas e anos presos. Entre eles, houve quem passasse um mês na delegacia, tenha dormido no sofá da sala do delegado e hoje receba pensão vitalícia de R$ 6.000,00 pelo desconforto, sinecura extraída sem anestesia dos brasileiros pobres que dão duro para ganhar a vida. Há casos até de ex-presidentes da República que recebem o mimo e dele não abrem mão. Mas este é um caso picaresco. A maior parte comeu o pão que o diabo amassou, em celas fétidas e debaixo de tortura física e psicológica. Já Agnès comeu o chucrute salgado por Hitler (não há termo de comparação: é reconhecido que, mesmo entre as ditaduras sul-americanas do período, a brasileira foi a mais branda; imagine se comparada à genocida besta nazista.) E a mesma frase pode ser dita no que tange à altivez e coragem com que esta francesa de 45 anos enfrentou o invasor nacional-socialista e as prisões, seja no seu próprio país, seja na Alemanha. Sua presença de espírito em nada lembra a auto-crucificação e a exaltação pessoal tão comum por estas plagas. Agnès debocha dos carrascos e se confessa... sem coragem! Nada poderia estar mais distante da realidade. Esta francesa, com sua dignidade, pôs de joelhos seus detratores. Vi no site do Musèe de l'Ordre que está previsto para este mês, dia 26, a conferência "Les Déportations de Répression vers le Reich". Infelizmente não estarei lá. Mas espero que a memória de Agnès Humbert, mesmo que ela seja apenas uma entre os 70.000 cidadãos franceses feitos prisioneiros pela polícia nazista, seja reverenciada à altura. Agnès Humbert foi uma combatente de primeira hora. Antes mesmo de saber se havia mais alguém na França que estivesse resistindo, ela, desassombrada, já dissera NÃO aos invasores. Pessoas como Agnès constroem uma Pátria - penso, calado, com um misto de admiração e inveja.

Nova Fronteira, 319 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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