"O Brasil em movimento", por John dos Passos

segunda-feira, junho 29, 2015 Sidney Puterman

O autor morreu há 45 anos. As reportagens escritas por ele e amealhadas no livro foram publicadas pela primeira vez nos anos 50 e 60. Dos Passos, um escritor americano premiado (tido por Jean Paul Sartre como "o maior escritor do nosso tempo"), descendente de portugueses (embora não falasse o idioma), teve sempre forte interesse pelo Brasil. Esteve três vezes no país. Sua visão abarca o nosso nascente desenvolvimentismo e os meandros da política nativa. Embora matérias sobre a Amazônia e a recém-criada companhia do Vale do Rio Doce estivessem entre os primeiros temas, seu foco privilegia a construção de Brasília e os governos de Vargas, Juscelino e Jânio. E, acima desses três nomes, deixa trair uma admiração reverencial por Carlos Lacerda (um político que ainda desperta polêmicas e controvérsias). Revisitar o Brasil sob sua ótica - de estrangeiro, de americano, de um enviado especial aos idos dos anos 40 - é ampliar para os leitores de hoje o entendimento do país. Nada, porém, que possamos nos ufanar. Ver os métodos e a precariedade desse país de antanho é ser posto cara a cara com a nossa imutabilidade. É termos que - ainda que contrafeitos - nos resignar com um atavismo que parece tocar a partitura da conduta do populacho e dos homens públicos. É constatar, pesaroso, que aqui tudo muda para que nada mude. Não nos apoquentemos, porém, antes de passarmos ao livro em si. Analisemos o livro com o espírito leve. A leitura da obra nos concede uma fartura de pérolas. "O Brasil é um país de oratória tempestuosa, mas o latido dos políticos em geral tem se provado mais forte que sua mordida", cita ele a certa altura. As aspas, valiosas, nos permitem viajar pelas nossas raízes mais recentes. De quando em quando Dos Passos erra, como na vez que mencionou a eliminação definitiva do mosquito da dengue, em 1942, ou ao dar uma razão equivocada para o termo "favela". Outras são deploráveis e preconceituosas, como "recordando o odor de excremento seco que pairava nas favelas do Rio" ou "é um choque para alguém do hemisfério norte encontrar colonos alemães vivendo na mesma sujeira perturbadora que os habitantes de pele mais escura". O escritor dá voz à perplexidade da época, como quando registra a decepção de um médico brasileiro: "Depois da guerra, pensávamos que os EUA fossem assumir uma liderança mundial, mas os americanos parecem mais fracos na vitória." Faz previsões bizarras, como a de que Brasília se tornará uma Montmartre; já outras vezes acerta na veia, ao dizer que Niemeyer projeta palácios inabitáveis para os outros e "para si mesmo fez uma casa retangular com telhado e janelas altas no estilo colonial brasileiro". Sem compreensão da fé do nosso povo, debocha do Espiritismo, dizendo que "os espíritas brasileiros acreditam que Jesus Cristo em pessoa continua a ensiná-los do outro mundo". Gasta resmas puxando despudoradamente o saco de Carlos Lacerda e se queixa que o "antiamericanismo tornou-se a atual obsessão dos intelectuais" (mal sabia ele que isso perduraria século 21 afora). Acerta ao apontar no fim dos 50 a incapacidade do regime comunista em produzir alimentos e sua expertise em aumentar o poder da burocracia. Nas poucas vezes em que nos visitou, o enérgico John dos Passos cruzou o Brasil mais vezes que 99% dos brasileiros foram capazes em sua vida inteira. Pisou na lama em incontáveis rincões e sobrevoou milhares de hectares de uma Amazônia já com as chagas do desmatamento. É um viajante e um contador de histórias. Com todos os seus erros e acertos, o autor nos lega uma singular visão do país de ontem e que permite entendamos melhor o país em que nos tornamos, e que avança e recua, aos trancos e barrancos, sob suas (nossas) idiossincrasias e nossas (suas) rematadas burrices. Não é fácil ser brasileiro, apesar de cômodo e ensolarado. É triste, ainda que tantas vezes divertido. Cômico, por vocação, e trágico, por sina. Em suma, um parvo otimismo sem uma nesga de esperança.

Editora Benvirá, 285 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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