"Sussurros", por Orlando Figes
Dissecação de cadáver. Sobre a mesa está a Rússia de Stalin.
Figes vai levantando a pele, pinçando vísceras, raspando tíbias. Figes tem tempo. Por isso escreveu um livro de 800
páginas. Nele, cada depoimento é uma ferida purulenta na epiderme soviética; um saco de ossos. Dezenas de testemunhos são
extraídos, apurando separações, apropriações, exílios, trabalhos forçados e assassinatos
em série. A obra surpreende ao mostrar um povo cordato, que se submetia, calado, ao destino oficial. De 1928 até o falecimento do ditador, em 1953, vinte e cinco milhões de
cidadãos partiram desse para o outro mundo pelos pés da repressão (aos quais precisamos adicionar os milhões de mortos de fome ou na guerra) - e os capturados que sobreviveram tiveram por maior benesse a escravidão em um rincão congelado. Um dos trunfos da obra é a revelação do método da URSS comunista de usurpação
da cidadania: desmembramento familiar; proibição da religião; expropriação de
bens móveis, imóveis e cerebrais; condenação sumária; desterro; e, instância derradeira, enterro. Figes nos expõe o sistema com uma avalanche de relatos,
que se repetem (iguais, ainda que diferentes). O livro desnuda a crueldade metódica e como o fracasso da política stalinista se adaptou à guerra
que invadiu a Rússia. O
governo que antes torturava e lobotomizava o cidadão, para depois matá-lo, passou a
implorar para que ele morresse no front. Curioso é que a população, vítima de apatia
coletiva, acatou o pedido. Ao fim da guerra, o Terror recrudesceu e os cidadãos, novamente perseguidos, sentiram
nostalgia das trincheiras: nelas morriam lutando e se viam heróis. Eram mortos-vivos felizes, atirando nos chucrutes. Esse tempo bom passou. Como passou o próprio
Líder da Nação, Iosif. O autor acompanha a União Soviética pós-Stalin e
relata as seqüelas, em um livro digno e alentado. Se mais conciso, melhor; mas Figes não se sentiu no direito de tirar a voz de quem falou pela primeira vez. Essa repetição de atrocidades, por fim, nos larga apáticos. Sombrios. Página a página, você se sente habitando um Estado soviético kafkaniano. Labiríntico, coercivo.
Você, que me lê, não iria querer morar lá. Seja lá qual for a ideologia que você julgue preferir.
Record, 822 páginas
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