"Israel x Palestina", por James Gelvin

domingo, janeiro 14, 2024 Sidney Puterman


James Gelvin é um norte-americano estudioso do mundo árabe. É professor de História do Oriente Médio na Universidade da Califórnia e especialista na história do Leste Árabe. Entre os muitos títulos que publicou, este "Israel x Palestina" é o único traduzido para o português. 

Sua produção literária sobre a região é vasta. "Divided Loyalties: Nacionalism and Mass Politics in Syria" (1998); "The Modern Middle East: a History" (2004); "The Arab Uprisings" (2012); "Global Muslims in the Age of Steam and Print - 1850-1930" (2013); "The New Middle East" (2017); "The Contemporary Middle East in an Age of Upheaval" (2021).

Os títulos são bons. Lamento que não haja aqui um universo leitor que viabilize o investimento do mercado editorial nas suas obras. Aos brasileiros coube apenas este filho único, lançado em 2005 e que, diante da instabilidade da região, passou por sucessivas atualizações - em 2007, 2013 e 2021.

Ou seja: com o pau quebrando na Faixa de Gaza desde 7 de outubro, ele vai ter que esperar pelo desenlace desta nova guerra para mandar para o prelo mais uma (extensa) atualização.

Vale estabelecer que este título do Gelvin é um livro de espírito didático, mas com um leve viés. Compila informações de diversas fontes e busca estabelecer uma narrativa que, em essência, fundamente os direitos do povo palestino às terras que compõem a Palestina histórica.

Não digo que está certo, nem que está errado. Ele interpreta o conflito sob uma lente árabe. Um enfoque que, na minha opinião, não contamina o resultado final do texto. É válido. Difícil não pender para um ou outro lado em uma questão tão sanguínea. Dou crédito ao ponto de vista do professor.

Ainda que neste seu livro eu divirja aqui ou acolá, a fundamentação do historiador é legítima.

"Narrativas nacionalistas, como aquelas elaboradas pelo sionismo e pelo nacionalismo palestino, nos oferecem uma interpretação incompleta e parcial da história", diz o norte-americano. "As narrativas nacionalistas assumem que as nações sempre existiram no decorrer da história", continua, mas ressalvando que os movimentos nacionalistas, mais do que meramente darem suporte a estas narrativas, "criam essas nações".

Antes dele mesmo fazer a sua digressão histórica, destaca que "o sionismo e o nacionalismo palestino foram fundados no mesmo molde". Para ele, "as narrativas nacionalistas ocultam ou ignoram as similaridades entre as nações cuja história eles querem valorizar e as demais nações; seu relato confirma o direito daquela nação de ser soberana e ter suas próprias regras em um pré-definido pedaço de terra".

Quem conhece o trabalho do historiador Timothy Snyder está familiarizado com essa abordagem.

Gelvin abre o livro da História e explica que o território hoje chamado de Palestina (cujo nome vem de Filistina, ou seja, do antigo povo dos filisteus) foi "uma das primeiras áreas conquistadas pelos árabes muçulmanos depois do surgimento do islamismo no século VII". Com o passar dos anos, o povo que vivia nos vilarejos locais adotou o idioma árabe e a religião muçulmana.

Ressalta que as povoações se situavam nas fraldas da região montanhosa. A parte litorânea ficava sob domínio dos beduínos - nômades de conduta agressiva e refratários a qualquer espécie de subordinação. Vez por outra a região era alvo de alguma expedição guerreira turca.

Em 1453 os otomanos capturaram Constantinopla, a capital do Império Bizantino (que, por sua vez, substituíra o Império Romano), e a rebatizaram de Istambul. É o marco histórico do início do Império Otomano. O domínio se estendeu dos Bálcãs ao norte africano, incluindo o Oriente Médio e o Egito. A Palestina estava neste pacote aí.

Não tinha relevância econômica ou estratégica, mas tinha importância religiosa e, portanto, simbólica. Assim, com a conquista, o Império Otomano, que era islâmico (sunita), passara a ter no seu portfolio as três cidades sagradas: Meca e Medina, na Arábia, e Jerusalém, na Palestina.

Nos conta o especialista que houve uma breve alternância de poder durante o século XVIII, quando um beduíno - Zahir al-'Umar - tomou o controle militar da Galileia e estabeleceu um principado cuja capital era Acre. Já a região onde hoje fica o Líbano foi tomada por um ex-escravo egípcio, Ahmad Al-Jazzar, conhecido como Al-Saffah (o carniceiro).

A população local era basicamente rural. Até então sua única possibilidade de inserção econômica era fazendo o abastecimento de víveres das caravanas que vinham em peregrinação religiosa para Jerusalém. Mal comparando, era como vender biscoito em engarrafamento ou, na melhor das hipóteses, camarão na praia. Uma atividade sazonal e de baixa rentabilidade.

Os moradores da Palestina eram este povo simples, habitantes pacíficos de uma zona de passagem. Sem nacionalidade, governo ou regulação. Viviam em aldeias e sem uma liderança central, montando cada uma a quatro a cinco clãs familiares. Quando necessário, os mais velhos se reuniam em uma espécie de conselho. Não havia entre eles o conceito de propriedade do solo.

Este esquema acéfalo havia dificultado por séculos que os cobradores de impostos do Império Otomano tivessem a quem taxar. Era então uma terra pobre, quente, seca e improdutiva. Mas o surgimento de um mercado mundial veio mudar a história desta faixa desértica. Seus novos xerifes, o beduíno e o egípcio, encontraram uma vocação para a Palestina. A monocultura.

Seu longo isolamento econômico se alterou com a adesão à especialização no cultivo agrícola - principalmente do algodão. Comerciantes franceses se estabeleceram nos portos de Acre e Sidon e o algodão da Galileia começou a ser exportado para uma Europa que vivia o boom da Revolução Industrial. Os magnatas Al-'Umar e Al-Jazzar, à revelia dos otomanos, vendiam algodão em troca de armas europeias. Com o lucro do comércio, construíram um novo porto, Haifa.

Ainda que a narrativa neste ponto fique cronologicamente um pouco confusa, eu tentei me achar. Neste ponto o professor frisa que os otomanos do Império fizeram uma composição com os novos chefes locais, de forma que uma paz lucrativa vigorou por algumas décadas.

As coisas tornaram a mudar quando Mehmet Ali, filho de um pirata albanês, assumiu o controle do Egito. "Afirmando que os otomanos lhe prometeram o território que hoje é a Palestina, a Síria e o Líbano", em troca do seu apoio para conter uma rebelião na província otomana da Grécia, Mehmet advogou que a "Grande Síria" (composta pelas três regiões acima) era o prêmio que lhe era devido.

Gelvin conta que quem chefiou a ocupação da área foi seu filho, Ibrahim Pasha. O novo ocupante desarmou os locais e instituiu o recrutamento militar e taxas a serem pagas pelo povo. Investiu na modernização da infraestrutura local, construindo estradas para escoar a produção até os portos.

Os otomanos retomaram o controle da região em meados do século XIX. A esta altura o volume do comércio decaíra, porque um algodão melhor e mais barato estava sendo produzido em outras partes do planeta. Enfim, esta área erma e pouco rentável, distribuída em torno de mil vilarejos, que iam do mar Mediterrâneo ao rio Jordão, era o que então se chamava Palestina. Ufa.

Mark Twain, que visitou a Palestina em 1867, descreveu a região da seguinte forma em seu livro "Innocents Abroad": 

"[A Palestina] é uma região desolada, com um solo muito fértil, totalmente entregue as ervas daninhas - uma vastidão silenciosa e lúgubre (...) Nós não vimos sequer um ser humano em todo nosso caminho... raras eram as árvores e os arbustos. Até mesmo as oliveiras e os cactos, bons amigos até dos solos inférteis, já praticamente desistiram dessa terra".

Gelvin, entretanto, crê que a visão de Twain não representava a realidade.

Havia nela gente de todo lugar e religião. Inclusive judeus. Que vieram do Egito, do Líbano, da Síria, da Pérsia. Eram comerciantes. Mas nas últimas duas décadas do século XIX eles começaram a chegar em profusão. Compravam terras e vinham da Europa. Queriam se tornar fazendeiros do deserto.

Diziam: "Uma terra sem um povo para um povo [judeus] sem uma terra".

As terras não eram compradas diretamente dos palestinos humildes. Estes moravam nas franjas da região, mas não possuíam nada. O solo estava na mão de sírios, egípcios e libaneses (e de palestinos ricos emigrados), que tinham legalizado e se apropriado do terreno quando do código de terras de 1858, que atribuíra direito de propriedade aos habitantes (o tal direito que não havia antes).

A medida resolveu o problema dos turcos, que poderiam cobrar impostos dos donos do solo - os quais, por sua vez, o venderam para os moradores ricos das áreas urbanas, que pagavam as taxas.

Quando a indústria do algodão arrefeceu, as terras viraram um fardo para os seus proprietários. Não tiravam nada dela e ainda lhes custava mantê-las. Então aquela revoada de judeus querendo comprá-las foi uma mão na roda. Dane-se se os compradores eram judeus europeus. Pagavam bem.

Era uma solução que beneficiava também os locais. Os palestinos tinham retornado à semi-indigência, pois sua produção agrícola havia se inviabilizado. A chegada dos judeus latifundiários irrigou a economia e abriu empregos. A questão é que, mesmo sendo solução, a presença crescente dos judeus era um problema institucional. Eles não eram apenas grandes proprietários e empregadores. Eles se diziam donos daquela terra no papel e também por direito divino. 

O que trazia uma ameaça embutida. Esse "direito" queria dizer que eles não pretendiam ir embora.

O discurso da volta à Terra Prometida e o desembarque constante de mais judeus europeus acabou por se tornar fonte inesgotável de conflitos na virada do século XX. A injeção de recursos e a alta taxa de emprego se chocavam com a recusa árabe em aceitar os judeus como co-proprietários da História da Palestina (antecipo que a expressão é minha, não do autor). 

Para os palestinos, o problema começou aí. E James Gelvin faz uma profunda e rara digressão sobre a história judaica para contextualizar esta irrupção. Ele volta à Idade Média e discorre sobre as antigas comunidades judias da Europa, que concentravam 90% de todos os judeus do mundo.

Era uma época pré-absolutista. Não havia Estados. Diz o professor que os judeus viviam em guetos e se auto-regulavam - educação, atendimento médico, casamentos e funerais, julgamento de disputas etc. Era um reflexo daqueles tempos. A chegada do Estado absolutista, com sua concentração de poder, alterou este contrato social e desalojou os judeus da sua posição à margem da sociedade. 

"Durante o século XVIII, diversos líderes enérgicos - Luís XIV na França (reinou entre 1643-1715), Frederico, o Grande, na Prússia (reinou entre 1740-1786), Catarina, a Grande, na Rússia (reinou entre 1762-1796) e Maria Teresa (reinou entre 1740-1780) e José II na Áustria (reinou entre 1780-1790) - afirmaram a primazia do governante sobre seus súditos e sobre o território por eles habitado", explica o historiador.

"Embora os Estados por eles construídos não detivessem a eficácia, a regularidade e a variedade de atividades que os Estados modernos têm", assinala, "o modelo adotado de líderes estadistas fortes acabou desguarnecendo toda e qualquer tentativa de estrutura de mediação entre o governante e os governados".

Os judeus foram atingidos porque "entre essas estruturas de mediação estavam as corporativas, que davam aos súditos pertencentes a seu grupo, como os judeus, por exemplo, todas as autonomias locais que eles quisessem". Era o desmantelamento da autonomia cívica do gueto.

Embora Gelvin deixe uma certa lacuna nesta abordagem, ele frisa que "na Europa ocidental e central, a destruição de estruturas corporativas e a distinção legal que separava os judeus de seus compatriotas foram chamadas de 'Emancipação Judaica". Seu  apogeu teria acontecido durante a Revolução Francesa.

Enquanto "a promessa de liberdade, igualdade e fraternidade veio substituir (pelo menos na teoria) os privilégios aristocráticos e as rígidas hierarquias sociais", a cidadania francesa foi proposta aos judeus na Assembleia Nacional da França:

"Aos judeus como nação tudo deve ser negado, mas como indivíduos, tudo deve ser garantido. Eles devem ser cidadãos. Não pode haver uma nação dentro de outra nação. Não é tolerável que os judeus se tornem uma formação política separada, ou uma outra classe dentro do país."

Como bem ressaltou o autor, isso se deu na Europa ocidental e central - não só na França. A emancipação total dos judeus aconteceu na Grã-Bretanha (1858), Suíça (1866), Áustria (1867), Itália (1870) e Alemanha (1871). Mas no leste europeu a história foi diferente. A Rússia, por exemplo, não emancipou os judeus até 1915.

E, embora pareça ser apenas uma parte, é uma parte considerável. Cerca de 75% dos judeus do mundo viviam no leste europeu, e sua grande maioria dentro das fronteiras do Império Russo. Não que houvesse sido sempre assim; na verdade, os czares sempre tentaram manter os judeus fora da Rússia. O problema é que a Rússia não parava de crescer, tomando a terra alheia. 

E na terra alheia existente ao redor moravam muitos judeus. Para mantê-los longe de Moscou, os judeus que vieram no solo tomado à Polônia foram circunscritos aos "Limites do Assentamento Judaico", que iam do Báltico, no norte, ao Mar Negro, no sul. Na fronteiras destes limites ficavam a Letônia, a Lituânia, a Bielorrússia, a Ucrânia e o que restara da Polônia. Os judeus neorussos se acomodaram nestes países.

Segundo relata Gelvin, eles tinham que se manter em seus vilarejos (shtetls) e, entre si, falavam o seu próprio idioma, o iídiche - uma mistura de línguas que consistia, em grande parte, em alemão e hebreu, com um pouco de eslavo e até do francês antigo.

Se no centro e no oeste europeu os judeus tinham sido emancipados há muito como cidadãos, na Rússia o projeto para eles consistia em mantê-los segregados até que se "russificassem". Para tanto, em 1827 o governo russo começou a recrutar judeus para o Exército do czar. Eles eram convocados mais jovens que os russos cristãos, e o serviço militar era prestado até que completassem 25 anos.

O memorando que acompanhou a lei de recrutamento tinha um título extenso:

"Memorando sobre a transformação dos judeus para o benefício do império, através da gradual atração destes para professar a fé cristã, aproximando-os e, finalmente, fundindo-os completamente com os demais súditos do império."

O esforço deu certo apenas em parte, na análise do historiador. Ele acredita que, de fato, o projeto desmontou as estruturas e instituições que dominaram a vida dos judeus por séculos. Mas, por outro lado, o antissemitismo da sociedade russa não permitiu que eles fossem efetivamente assimilados.

Paradoxalmente, o mesmo sistema sócio-cultural judaico, que havia teoricamente se desestruturado, aparece ainda mais forte como consequência da resistência antissemita. E a manutenção dos shtetls não foi suficiente para conter os judeus nos vilarejos designados. Segundo o professor, eles migraram para os centros urbanos mais acessíveis.

Em quarenta anos, de 1860 a 1900, a população judaica de Varsóvia pulou de 41 mil para 220 mil. Neste mesmo período, o número total de judeus em Odessa saltou de 25 mil para 140 mil.

Mas isso não significava que os judeus estivessem sendo bem recebidos. Pelo contrário. Se muitas vezes eles fugiam dos shtetls por conta dos pogroms - ações deliberadas de destruição e assassinato coletivo promovidos por lideranças russas regionais -, nas cidades eram estigmatizados. Eram circunscritos a nichos e tinham a empregabilidade restrita.

Assim, no fim do século XIX, o que os judeus do leste europeu mais queriam - e passaram à ação - foi fugir. A princípio, não para a Palestina, mas para a América. Entre 1881 e 1914, 20% da população judaica da região imigrou. Entre 1,5 e 2 milhões foram para os Estados Unidos. Cerca de 350 mil imigraram para a Europa Ocidental.

E a Palestina com isso?

É que, na análise de Gelvin, o que atrapalhou a vida dos palestinos, fazendo com que um outro povo viesse ocupar o espaço que eles ocupavam há séculos, foi o fervor nacionalista do século XIX. Não que estas pessoas estivessem passando por um surto de paixão patriótica. Na verdade, elas estavam descobrindo o conceito de nação. E isso redesenhou as fronteiras do planeta.

Em linhas gerais, porque senão isso aqui não tem fim, o Iluminismo - que privilegiava a razão e a base científica em detrimento da tradição e dos dogmas religiosos - concluía que "as leis que governavam a sociedade dos homens eram tão discerníveis pela razão quanto as leis naturais que governavam o universo físico".

Esse apelo à razão se alastrou pela sociedade erudita da época, e chegou aos guetos judeus no justo instante em que eles estavam se "integrando" às comunidades em que estavam inseridos. Em decorrência da emancipação e da cidadania, as escolas judaicas deixaram de oferecer exclusivamente o conteúdo de orientação religiosa e passaram a incluir o latim e o idioma local - construindo uma ponte até então inexistente entre judeus e não-judeus.

Esta sinergia se deu exatamente na propagação do Iluminismo - circunstância que gerou o Haskalá, o Iluminismo judaico.

"O Haskalá teve seu início na Alemanha, durante o último quarto do século XVIII. A partir dali, ele se espalhou pelo Império Austríaco e pelos assentamentos", esclarece o historiador. "Os devotos do Haskalá - os maskilim - esperavam trazer ao escolado bíblico as ferramentas mais importantes utilizadas pelos seguidores não judeus do Iluminismo".

Na visão de Gelvin, isso possibilitaria que "os judeus do oeste da Europa se integrassem nas sociedades em que viviam sem o medo de perder sua identidade cultural judaica" e que, a partir da terceira década do século XIX, "a atividade principal dos maskilim em cidades como Odessa, Vilnius, Riga, Brody etc era o ensino de línguas modernas da Europa e a difusão da ciência e do progresso".

Resumindo o que o professor elaborou, os judeus eram milhões de pessoas vivendo de forma segregada - social e culturalmente -, majoritariamente no leste europeu, e sua versão do Iluminismo transformou a concepção (e a atitude) deles perante o mundo em que viviam. Estudaram línguas e os mais importantes livros escritos em cada idioma. Sobre isso, o autor destaca um texto de Salomon Maimon, um judeu polonês que escreveu sua biografia intelectual em 1793:

"Coloquei alguns livros na mala e voltei para casa em êxtase. Depois de ter estudado esses livros intensamente, meus olhos se abriram. Eu acreditava que tinha encontrado a resposta para todos os segredos da natureza. Tinha um olhar superior e orgulhoso em relação a todos os outros que ainda não sabiam daquelas coisas, ria de seus preconceitos e superstições, e me oferecia para ajudá-los a acabar com aquelas ideias e iluminá-los em sua compreensão."

Como assinala Gelvin, em uma época de manifestações nacionalistas à torto e à direita, a transformação cultural inspirada no Haskalá forneceu um terreno fértil para uma séria de ideologias - entre elas o sionismo. E um jovem jornalista de Viena, Theodor Herzl, nascido em 1860, filho de um comerciante húngaro, foi quem mais contribuiu para a organização da causa sionista.

Atuando como correspondente em Paris, reportou para os austríacos o "Caso Dreyfus". Como você sabe, Alfred Dreyfus, um judeu capitão do exército francês, foi injustamente acusado de espionar para os alemães e condenado à prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa. 

Descobriu-se depois que os documentos que o incriminaram tinham sido falsificados. O célebre escritor Émile Zola afirmou em seu texto "J'Accuse" que foi o antissemitismo francês quem perversamente condenou o capitão judeu (o que levou à prisão do próprio escritor).

Zola foi solto, Dreyfus foi solto, mas o caso deixou patente para Theodor Herzl que, se nem na civilizada França os judeus estavam à salvo de perseguição e injustiça, o único caminho possível seria a obtenção de uma terra para os judeus. Passou a escrever sistematicamente sobre o assunto.

Após ter lançado o livro "O Estado judeu", de pouca repercussão, ele enviou um artigo a um jornal londrino. Sob o título "A crônica judaica", ele expressou de forma resumida suas ideias sobre o grande problema enfrentado pelos judeus, denominado no século XIX como a "Questão Judaica".

"A Questão Judaica ainda existe. Seria tolo de minha parte negar isso. Ela existe em todos os lugares onde há judeus em quantidade significativa. Nos lugares onde ela ainda não existe, os judeus a levarão quando para lá migrarem. Nós rumamos naturalmente para esses lugares onde não sofremos perseguição, mas nossa presença ali acaba por gerar nova perseguição. Isso acontece em todos os países, e continuará acontecendo mesmo naqueles mais civilizados, até que a Questão Judaica encontre uma solução política."

Herzl questionou a instituição da emancipação judaica:

"Quando as nações civilizadas acordaram para a falta de humanidade de suas legislações exclusivas, e decidiram nos emancipar, já era tarde demais. Porque nós, curiosamente, nos tornamos pessoas burguesas dentro do gueto, e só saímos de lá para competir agressivamente com as classes médias... Nós fizemos um esforço honesto para nos integrar à vida social das comunidades à nossa volta, e para preservar a fé de nossos pais. Mas isso nos foi proibido."

Aqui Herzl elaborava o conceito de nação:

"Nós somos um povo - nossos inimigos nos uniram, apesar de nossas diferenças, como sempre aconteceu na história. A angústia nos une, e depois de unidos, descobrimos nossa força. Sim, nós somos fortes o suficiente para formar um Estado, um Estado modelo".

Além da base teórica, Theodor propunha uma destinação geográfica. Citava a Palestina, mas também mencionava a Argentina e o oeste dos Estados Unidos (isso mesmo, a terra do bangue-bangue e dos caubóis). Mas reconhecia a preponderância do Oriente Médio: "A Palestina é nosso lar, e estará sempre em nosso sangue e memória".

Por conta desta convicção, e dos repetidos pogroms em solo russo, muitos judeus estavam emigrando da Europa para a Palestina, mas de uma forma que hoje chamaríamos de "sustentável" - sem impactar demasiado a região. Herzl, entretanto, lutava para encorpá-la.

Em 1897, ele convocou um congresso sionista na Basileia, Suiça, onde fundou a Organização Sionista Mundial. Seu programa dizia que o objetivo do sionismo era criar um lar na Palestina para o povo judeu, promovendo a colonização da Palestina por trabalhadores judeus na indústria e na agricultura.

Os otomanos, que eram os "donos" da Palestina, à época, criaram uma lei para barrar esta chegada em massa de judeus. Os imigrantes deveriam renunciar à sua cidadania europeia e se tornarem súditos otomanos, e poderiam escolher qualquer destino no Império Otomano - exceto a Palestina.

Virou uma lei para palestino ver. Não funcionou.

Apesar dos esforços de Herzl e da Organização Sionista, a comunidade judaica internacional estava bem dividida. Muitos eram pela fidelidade aos países de nascença e contra a partida dos judeus da Europa, enquanto outros eram especificamente contra a ida para a Palestina; alguns defendiam imigrarem para a Uganda e muitos atacavam o programa sionista como sendo de "esquerda".

Tinha lá seu fundamento. A judia Rosa de Luxemburgo, líder do Partido Comunista da Alemanha, escreveu, em 1916: "Sinto-me tão próxima das miseráveis vítimas que trabalham nos seringais de Putumayo quanto dos negros da África, que têm seus corpos explorados como brinquedos pelos europeus".

Seja como for, com ou sem controvérsia, com ou sem permissão, os judeus estavam atravessando o Mediterrâneo de volta para a terra que eles defendiam ser a origem do povo judeu. E eles fizeram isso em ondas, chamadas de aliyah ("ascender", em hebraico) - aliyot, no plural.

A primeira aliyah foi em 1882, estimulada pelos supracitados pogroms na Rússia. Dobrando a população judaica local, 25 mil judeus imigraram para a Palestina, se distribuindo entre Jafa, Haifa, Jerusalém e as margens do Mar da Galiléia. Aparentando o que hoje chamaríamos de comunidades hippies, cultivavam pequenos lotes de terra de propriedade coletiva.

Não deu muito certo - o que já era esperado, segundo Gelvin. Um célebre Rotschild, Edmond, investiu 1,5 milhão de libras nas colônias agrícolas, tentando ajudá-las a deslanchar. Por meio do sistema chamado de plantation, consolidou e expandiu a terra cultivada, otimizou a produção e multiplicou o rendimento do solo.

O resultado, sob o aspecto da produção, foi bom. Mas, ao abrir empregos para dez vezes mais árabes do que para judeus (só os assentamentos empregavam cerca de 4 mil árabes), os "colonos" judeus começaram a se deslocar para as regiões urbanas da Palestina. Não formaram maiores laços com a região, pois a maior parte da terra pertencia ao investidor Rotschild.

Isso motivou a criação de um Fundo Nacional Judaico para comprar terras na Palestina. 

Segundo o historiador, "os sionistas se propuseram a espalhar colônias por toda a Palestina. Sua missão era cultivar toda a terra possível, drenar regiões pantanosas e 'fazer o deserto florescer".

O primeiro quarto do século XX trouxe 75 mil colonos judeus para ocuparem os terrenos comprados, em duas ondas - de 1904 a 1914 e de 1918 a 1923. Foram a segunda e a terceira aliyot. Foi uma migração de forte componente ideológico, uma ode à natureza e ao trabalho comunitário.

O autor abre aspas para um proeminente sionista, não identificado: "Antes da chegada dos judeus pioneiros à Palestina, poços e nascentes secavam, muitas árvores eram cortadas, nada evitava que as dunas de areia invadissem todo o território. Só o que se espalhava era a malária. À essa região desolada chegaram os pioneiros. Eles drenaram os pântanos, construíram estradas, removeram pedras e rochas, eles semearam e colheram".

Naquele inóspito e poeirento pedaço do planeta, os judeus julgaram ter encontrado a sua versão do paraíso. Um dos imigrantes da época - e que se tornaria o primeiro-ministro inaugural de Israel, décadas depois -, Ben Gurion, escreveu:

"A diáspora significa dependência - material, política, cultural e intelectual - porque somos os estrangeiros, a minoria, desprovidos de uma terra natal, sem raízes, separados do solo, do trabalho e da indústria primária. Nossa tarefa é romper radicalmente com essa dependência e nos tornarmos senhores de nosso destino".

É quando esta romaria internacional de judeus colide e contribui para a ebulição da região. O que se tinha eram dezenas de milhares de estrangeiros obstinados e empreendedores ditando regras em uma terra que reunia centenas de milhares de árabes. Ao contrário do que muitos dos invasores apregoavam, Gelvin enfatiza: "A Palestina definitivamente não era uma terra sem um povo."

Aí, pra bagunçar de vez o coreto, veio a Primeira Guerra Mundial. O Oriente Médio se tornou uma região chave para o desenrolar do confronto. Era rota do petróleo e estava em poder dos turcos, que por sua vez eram aliados dos alemães. Com isso, os ingleses investiram na cooptação dos povos árabes, fartos dos séculos de imperialismo turco. Prometeram a eles que, se ficassem ao lado Tríplice Aliança (Inglaterra, França e União Soviética), quando a vitória chegasse a região se tornaria independente. 

A vitória chegou. Os otomanos foram expulsos e os franceses e ingleses se tornaram os mandatários da região (a Síria para os primeiros e o Egito para os últimos). O problema era a terra que existia entre os dois países. Os diversos acordos realizados ao longo da guerra eram contraditórios em relação à Palestina.

A Inglaterra estabeleceu como norte a sua Declaração Balfour. O texto era favorável aos interesses judaicos ("O governo de Sua Majestade encara favoravelmente o estabelecimento, na Palestina, de um Lar Nacional para o Povo Judeu, e empregará todos os seus esforços no sentido de facilitar a realização desse objetivo") e ambíguo em relação ao futuro da região chamada de Palestina.

Com o fim da guerra, os palestinos - que ainda não se auto-denominavam "palestinos" e sim consideravam a si mesmos parte da "Grande Síria" - só queriam uma coisa: ver os judeus fora dali. Em miúdos, que cada judeu fosse para o raio que o parta.

Mas o pior é que não parava de chegar judeu. Dezenas de milhares. Só o período entre 1924 e 1928, chamado de a quarta aliyah, trouxe 82 mil novos imigrantes. Boa parte dessa turma vinha da Polônia, intimidada pelo surgimento de uma nova legislação anti-judaica. Diferentemente dos jovens russos, ideológicos e idealistas, estes recém-chegados se assemelhavam mais a refugiados. E nem eram tão jovens. A labuta na terra não lhes interessava muito, e rumaram para as cidades, Tel Aviv e Haifa.

Como se sabe, para cada ação há uma reação. A incessante chegada de judeus inflamou a rejeição dos árabes. A intransigente rejeição dos árabes impôs aos judeus que se organizassem, em defesa. Milícias judias protegiam a minoria judaica da maioria árabe. Enquanto isso, na Europa, a situação estava cada vez pior para os judeus. Os árabes não queriam que eles ficassem. Mas eles já não tinham para onde voltar.

Como contraponto ao movimento sionista, nascia o nacionalismo palestino.

Ou seja: estamos há cem anos do momento atual e já havia um impasse, muito antes de haver Israel. Países que hoje imaginamos milenários estavam sendo criados. Não havia nem Israel, nem Palestina. Um pouco antes, na Conferência do Cairo de 1921, a Grã-Bretanha decidiu separar o território que ficava a leste do rio Jordão do mandato da Palestina, e estabeleceu uma unidade administrativa separada, chamada de "Transjordânia" (atualmente perdeu o "trans" e ficou só Jordânia).

Winston Churchill, que presidiu a conferência como secretário colonial britânico, não perdeu a deixa: "Criei a Jordânia com um rabisco de caneta numa tarde de domingo".

Frase politicamente incorreta para os pruridos atuais. Haters do século XXI, divirtam-se, derrubem as estátuas e cancelem o sujeito. Mas lembrando que este aí do chiste era o (único) cara que iria peitar Hitler e roubar do nazista a vitória na Segunda Guerra Mundial. Mas isso é outra história.

Voltando ao caldeirão do Oriente Médio, James Gelvin contextualiza o momento entre as duas guerras.

"O fato do nacionalismo palestino ter se desenvolvido depois do sionismo, e inclusive como resposta a ele, não diminui de forma alguma a legitimidade do nacionalismo palestino e nem faz com que ele tenha menor valor do que o sionismo", disseca o professor, afirmando que "todos os nacionalismos surgem em oposição a um 'outro'. O próprio sionismo nasceu da reação ao antissemitismo e aos movimentos nacionalistas excludentes da Europa."

Os confrontos se tornaram comuns. Comunidades tentavam restringir o acesso de outras comunidades aos locais sagrados. Tumultos crescentes espocaram na região, espalhados por Jerusalém, Hebrom, Jafa e Safed. Nestes conflitos morreram 133 judeus e 16 árabes. Pouco para os parâmetros atuais. Mas significativo para aqueles tempos.

Os habitantes da região se sentiam tão sírios que o mais importante jornal publicado em Jerusalém (cidade então sob domínio árabe) era o Suriya Janubiyya - a "Síria do Sul". Não à toa. Até a eclosão da Primeira Guerra Mundial esta "Síria do Sul" integrava a "Grande Síria", como mencionei acima. Como ressalta Gelvin, "elites urbanas de Damasco e Beirute investiram em grandes latifúndios em regiões como a Galileia". Uma boa estrutura, com estradas de ferro e vias para as carruagens, conectava o "norte" ao "sul".

"A Grande Síria havia se tornado uma unidade integrada social e economicamente", disserta o historiador, "se consolidando como um centro comercial com sua própria força de trabalho". Explica ainda que "camponeses e beduínos do território que hoje éa Palestina migravam regularmente, indo e vindo dos ricos campos agrícolas do distrito de Hawran, que hoje pertence à Síria".

Mal comparando, os palestinos eram para a Síria o que os paraibanos são para o Rio e os baianos para São Paulo. Uma força de trabalho oportuna direcionada ao trabalho braçal.

(Não vou entrar aqui no conceito de otomanidade explorado pelo autor, onde parte dos moradores da Palestina se considerava anteriormente súditos otomanos.)

Mas a Primeira Guerra bagunçou o coreto e inviabilizou para sempre a "Grande Síria". O posterior sistema de mandatos fez da Síria uma região de influência francesa e da região da Palestina uma região de influência inglesa. O vínculo histórico com o falido Império Otomano e com os sírios esfarelou e virou areia.

Agora o que os palestinos tinham no horizonte eram ingleses e judeus. Os primeiros dando as ordens e os últimos tomando as terras.

Árabes locais de todas as origens - não só a população original da Palestina - estavam vendo o crescimento da presença judaica com péssimos olhos. Se reuniram em associações, clubes, grupos. O resultado foi o estouro da Revolta Árabe, em 1935. Não era a "Revolta Palestina". Era a revolta do  povo árabe que morava lá, palestinos que antes se diziam sírios aliados a árabes de todo lugar. Tinham um objetivo comum: botar os judeus para fora dali.

A bem da verdade, quem fez a revolta foram os árabes sírios e egípcios mesmo. Os nascidos na Palestina podiam ser parte da soldadesca, mas não apitavam nada. Havia um forte jogo de interesses dos árabes que queriam abocanhar a região e aos quais convinha expelir os judeus. Nada dessa estorinha de aceitar ali o estabelecimento de uma Eretz Israel. Os árabes não pretendiam permitir que uma força superior fincasse os pés definitivamente na região.

Porém, se até então quem dava cobertura aos judeus eram os ingleses, de uma hora para outra tudo mudou. Literalmente. Pararam de complicar a vida dos árabes e começaram a ajudá-los. A commodity petróleo ganhara valor nas últimas duas décadas e os interesses comerciais e geopolíticos do Reino Unido migraram para o outro lado.

Não só. Com a ascensão de Hitler na Alemanha, com seu discurso antissemita, a união entre árabes e nazistas era natural. Para evitar que todo o Oriente Médio se bandeasse para o lado dos nazistas, os ingleses viraram a casaca e começaram a cercear (impedir, na verdade) o desembarque de judeus. Foi quando lançaram o que ficou conhecido como o Livro Branco.

Com o pau comendo solto na Europa em guerra, os ingleses se comprometeram com os árabes que, após o fim do conflito, nenhum judeu desembarcaria ou permaneceria na Palestina sem que fosse autorizado pelos próprios palestinos.

Como a chance de uma autorização voluntária era zero, a medida era um alívio para a população local e uma estaca no coração de um Estado Judeu que nem sequer havia nascido. 

Mas mesmo o Livro Branco não foi bem recebido pelos árabes - porque, por mais que fosse restritivo aos judeus, os árabes só aceitavam dispositivos que excluíssem os judeus de qualquer cenário legal. 

Para os judeus, que neste momento estavam enfrentando a sanha genocida de Hitler na Europa, a situação era crítica, mas tinha que ser gerenciada. Nas palavras de David Ben-Gurion, "nós devemos combater Hitler como se o Livro Branco não existisse, e combater o Livro Branco como se a guerra não existisse".

Palestinos e nazistas estavam unidos. Exemplo maior que Haji Amin al-Husayni não havia. Nascido em uma das mais influentes famílias de Jerusalém, líder do Alto Comitê Árabe e presidente do Conselho Supremo Muçulmano, Haji passou toda a Segunda Guerra Mundial na Alemanha, como hóspede e interlocutor de Hitler para os assuntos do Oriente Médio.

"A residência oportunista durante o período de guerra de Haji Amin, e as atividades propagandistas na Alemanha nazista, certamente não foram o momento de maior orgulho da história do nacionalismo palestino", admite o autor.

Seja como for, de 1939 a 1945 a Palestina entrou em banho maria. Embora a quinta aliyah tivesse trazido quase 200 mil judeus para o território, eles logo parariam de chegar, porque estavam ocupados na Alemanha e no Leste Europeu sendo espoliados e incinerados pelo regime nazista. 

Neste período, cerca de 14 mil imigravam anualmente para a Palestina (abaixo do permitido pelo Livro Branco), mas os demais judeus que tentavam escapar não tinham outro lugar para onde ir. Os países do globo terrestre se recusavam a recebê-los como refugiados - inclusive o Brasil, este poço de prosperidade e pureza étnica.

O saldo da recusa planetária foram seis milhões de judeus mortos. Homens e mulheres, jovens e idosos, crianças e recém-nascidos. Mas este Holocausto não foi suficiente para evitar a questão palestina. Muito pelo contrário, deu-lhe senso de urgência. Se metade dos judeus do mundo foram mortos, restou ainda a outra metade. 

O Reino Unido, vitorioso na guerra, falido nos cofres e ainda dono do mandato palestino, cumpriu o que se propusera no Livro Branco. Impediu dezenas de navios com refugiados judeus de desembarcarem sua carga humana na Palestina. 

Pasme: 250 mil judeus sobreviventes da guerra, boa parte oriunda dos campos de extermínio (ao fim da guerra confinados em campos de refugiados na Alemanha), cruzaram a Europa, atingiram o Mediterrâneo, embarcaram em navios para o Oriente Médio e... eram impedidos de irem ao solo. Voltavam nos mesmos navios e rumavam de novo para os mesmos campos de refugiados.

E, enquanto os judeus eram mandados de volta e rodavam como almas penadas pelos campos europeus, os ingleses queriam mesmo era repassar essa batata quente para os americanos. O Império Britânico se tornara inviável e aquele mandato na Palestina era uma aporrinhação desnecessária para um Reino Unido apequenado.

Seja batata, pepino, abacaxi ou qualquer outro produto agrícola que ocorra ao amigo leitor, o troço caiu no colo da recém-criada ONU, que veio para substituir a Liga das Nações. A Assembleia Geral comissionou então o Comitê Especial das Nações Unidas para a Palestina, constituído por representantes da Suécia, Holanda, Tchecoslováquia, Iugoslávia, Austrália, Canadá, Índia, Irã, Guatemala, Uruguai e Peru. 

Como explana Gelvin, esse comitê emitiu dois relatórios, um majoritário e outro minoritário. O primeiro fazia "a partilha da Palestina entre as comunidades árabes e judaicas, estimulando que as duas ficassem unidas economicamente (o minoritário recomendava o estabelecimento de um Estado federal único)". Tanto os Estados Unidos quanto a União Soviética apoiaram a partilha.

Os árabes e os palestinos nem aceitaram conversar. Nada de partilha. Não à judeuzada.

Diante disso, o governo britânico antecipou, ainda em 1947, que podiam incluí-lo fora da zorra toda - e que, a partir de maio de 1948, todas as suas tropas voltariam para casa. Em bom português, não ia ter mais ninguém separando árabes de judeus e a porrada iria comer.

Uma guerra civil teve início entre palestinos e judeus. E, quando enfim chegou o dia em que os ingleses foram embora, os judeus declararam a criação do Estado de Israel. Era 17 de maio de 1948. Depois de dois mil anos, o povo judeu voltava a ter uma pátria.

Abro aspas para o autor: "Os sionistas aceitaram o plano de partilha das Nações Unidas e estavam dispostos a viver em paz com seus vizinhos; os Estados Árabes rejeitaram o plano de partilha e declararam guerra ao Estado judeu; os Estados Árabes agiram como bloco único; os sionistas, em menor número e com menos armas, batalharam heroicamente contra todas as adversidades; apesar das garantias sionistas de proteção, os árabes palestinos atenderam ao chamado dos governos árabes e abriram caminho para os exércitos que avançavam".

"Os exércitos que avançavam" invadiram simultaneamente a Palestina, para expulsar os judeus, agora auto-proclamados israelenses. O conflito passou para a História como a "Guerra da Independência" (se você for judeu) ou "Nakba" (se você for palestino).

Nakba significa a "catástrofe" em árabe. Você logo vai entender porquê.

Em números gerais, eram 600 mil judeus de um lado e 1,4 milhão de palestinos do outro. A estes se somavam os exércitos dos países árabes da região. Havia uma enorme desproporção bélica e de tropas. Americanos e soviéticos não queriam se envolver. O pau que cantasse.

Para surpresa mundial, os judeus, com um terço das forças inimigas, venceram. Até hoje há uma grande polêmica sobre as razões desta vitória improvável. A mais aceita é a de que os árabes tinham conflitos inconciliáveis entre eles mesmos e também interesses "pessoais" divergentes.

Jordânia e Iraque, de um lado, e Egito, Síria e Arábia Saudita, de outro, nutriam uma forte rivalidade e pretensões simultâneas em liderar o mundo árabe. Nenhum dos Estados queria colocar seus exércitos sob o comando do rival. Com isso, agiram separadamente e capitularam. Para um inimigo menor, com menos combatentes e com menos armas. Mas suficientemente coeso e determinado.

E os que mais perderam foram os palestinos. Daí a nakba.

De uma certa forma, os árabes perderam para eles mesmos. Nem dentro de cada país havia unidade ("o governo da Síria nunca confiou totalmente nos oficiais do Exército sírio") e nem todos mantinham o mesmo grau de hostilidade contra Israel ("O rei Abdullah da Jordânia reunia-se com os líderes do Yishuv desde a criação da Transjordânia em 1921, inclusive negociando as fronteiras dos seus respectivos Estados").

Gelvin vai além, ao dizer que "Os Estados Árabes realizaram um péssimo trabalho de preparação para a guerra" e também que "a liberação da Palestina não era vista com bons olhos por governos que haviam acabado de conquistar sua independência (Líbano, Síria, Jordânia) ou que ainda conviviam com uma presença imperialista (Egito)."

Segundo um historiador israelense e britânico, Avi Shlaim, de ascendência judaica iraquiana, "a coalisão árabe foi uma das mais divididas, desorganizadas e desmanteladas de toda a história das guerras".

Os judeus venceram a Guerra da Independência. Aos vencedores, tudo. Aos perdedores, as batatas.

No caso, o exílio. Ao todo, 750 mil palestinos perderam seus lares com a guerra. Foi "o massacre e o exílio de uma sociedade inteira, acompanhada de milhares de mortes e centenas de vilarejos destruídos", reconheceu o ex-primeiro-ministro de Israel, Ehud Barak, segundo o historiador.

Ainda segundo Gelvin, "a vitória militar dos Yishuv sobre seus vizinhos do Estado árabe e o deslocamento dos palestinos que viviam dentro das fronteiras de Israel, transformaram a natureza do conflito de maneira fundamental".

Ele acrescenta que, "antes de 1948, duas comunidades de igual estatura (mas com legados diferentes) entraram em conflito direto pelo controle da Palestina", ressaltando que "em maio de 1948, uma dessas comunidades se declarou dona de um Estado soberano, enquanto a outra vivenciou um cataclismo".

"A comunidade palestina tinha se dispersado e não tinha um território para chamar de seu" (na versão do tradutor Alexandre Camacho)."Os Yishuv incorporaram quase 80% do mandato palestino no novo Estado, e Egito e Jordânia ficaram com o restante".

O restante a que se refere o autor são a Faixa de Gaza, tomada pelo Egito, e a Cisjordânia, tomada pela Jordânia, ambos no interior do Estado israelense. Perdidos ficaram os palestinos, que fugiam para lá e para cá, e que se tornaram refugiados de guerra em sua própria terra.

A partir daí, impôs-se a questão internacional dos refugiados, que repercute até os nossos dias. Metade dos palestinos se tornaram refugiados, sendo que 50% destes dentro do próprio Estado de Israel. A própria movimentação bélica dos árabes havia expulsado os palestinos ("eles não queriam que uma população civil árabe estivesse na região, já que isso limitaria a sua liberdade operacional").

Ou seja, a mesma estratégia utilizada hoje pelos israelenses para evacuar a Faixa de Gaza.

Segundo o embaixador de Israel nos Estados Unidos, Abba Eban,"a Liga Árabe emitiu pedidos que estimulavam o povo a procurar refúgios temporários em países vizinhos, e a voltar a seus lares somente depois da vitória dos Exércitos árabes, a fim de obter a sua parte nas propriedades abandonadas pelos judeus".

Embora tenha transcrito a afirmação do embaixador, Gelvin é cético quando à sua fundamentação. Mas não tem dúvidas quanto ao oportunismo dos falsos amigos da população local.

"Os governos árabes exploraram sem escrúpulos a situação dos refugiados palestinos em benefício ´próprio", sacramenta. "Depois, em momentos em que a colaboração dos refugiados já não era necessária, os governos demonstraram indiferença em relação a eles, e até chegaram a tratar com hostilidade a presença deles em seus países".

Em suma, o destino dos refugiados mais humildes foi mesmo a Cisjordânia, a Faixa de Gaza e os países árabes vizinhos. Os de maiores recursos financeiros e sociais emigraram para o Golfo Pérsico, a Europa e as Américas (o autor não cita, mas há uma grande comunidade palestina no Chile, que conta inclusive com seu próprio time de futebol, o Palestino FC).

Com o fim da guerra, em paralelo à questão dos refugiados, restava a questão do reconhecimento do novo Estado. A maior parte do planeta reconheceu o direito dos judeus ao seu próprio país, ainda que lamentando a recusa árabe da partilha (por isso houve a guerra). Já a Liga Árabe impôs um boicote diplomático e econômico ao novo Estado imediatamente após a guerra. 

Israel se proclamou um Estado judaico e aprovou em 1950 a Lei do Retorno, que dizia em seu primeiro artigo que "todo judeu tem o direito de imigrar para o país". Na contabilidade do autor, em quatro anos chegaram 700 mil imigrantes, dobrando a população. Nos 15 anos seguintes chegaram outros 700 mil. Vieram também 120 mil judeus do Iraque, 165 mil do Marrocos, 31 mil da Líbia, 430 mil do Iêmen, 80 mil do Egito e 10 mil da Síria.

Enquanto Israel ganhava corpo, concomitantemente o mundo árabe ao seu redor passava por uma profunda transformação. Os golpes de estado militares dos anos 40 na Síria, Egito, Iraque, Iêmen do Norte e Líbia desaguaram nas políticas anti-imperialistas dos anos 50 e 60. Um líder, em particular, ganhou proeminência. O egípcio Gamal Abdel Nasser.

Nasser assumiu o poder no Egito determinado a por um fim aos 75 anos de presença militar britânica - e sua ação mais agressiva nesse sentido foi a nacionalização do Canal de Suez, que tinha o Reino Unido e a França como seus principais acionistas.

Lesadas, as duas potências, mais Israel, resolveram retaliar invadindo o Egito. A ofensiva gorou porque foi contrária aos interesses dos Estados Unidos, que só soube do plano após o fato consumado. A pressão norte-americana forçou os invasores à retirada dos exércitos. Quem mais ganhou com isso foi Nasser, que nacionalizou o Canal e conseguiu a expulsão dos agressores.

Nasser capitalizou o seu novo status político visando uma organização de países árabes que pudesse se contrapor à influência ocidental, criando em 1958 a República Árabe Unida. O fato é que, por conta das dissensões, a RAU nunca deu muito certo, mas foi capaz de dar muito errado.

Se fiando em uma pretensa união entre os países da região e determinado a catapultar seu prestígio, Nasser se valeu de uma informação errada sobre uma acumulação de tropas israelenses na fronteira com a Síria para escalar uma sonhada guerra de aniquilamento total e combinado contra Israel.

O desenlace do plano egípcio é tão decisivo para o que viria a ser o futuro do Oriente Médio, que não me satisfiz com a narrativa concisa de James Gelvin. Seu livro cobre um século de conflito, mas, justamente por isso, não se aprofunda no detalhamento de cada circunstância. E a guerra entre os países árabes e Israel, uma espécie de jogo do returno da Guerra da Independência - a Nakba -, passou para a história como a Guerra dos Seis Dias.

Fui procurar conteúdo que me permitisse entender como uma guerra que durou menos que uma semana teve efeitos que duraram por décadas. E que redesenhou o mapa do Oriente Médio.

A obra que, por tudo que pesquisei, indicava ser a mais completa e minuciosa sobre o evento foi o "Seis dias de guerra", por Michael B. Oren. Não me decepcionou. Falo dela no próximo post.

Edipro, 348 páginas  |  1a ed. 2a reimpressão 2023  |  Copyright 2006  |  Trad: Alexandre Camacho

Título original: "The Israel - Palestine Conflict: one hundred years of war"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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