"Raízes do Brasil", por Sérgio Buarque de Holanda

segunda-feira, outubro 24, 2016 Sidney Puterman

Este pequeno livro permanece referência obrigatória quando se fala na formação do caráter nacional, esta entidade dúbia. Ainda mais agora, com a efeméride dos 80 anos da publicação, em que suas diversas edições foram dissecadas e divididas. Não existe mais um único "Raízes do Brasil"; agora são dois. O  primeiro, que ninguém conhece (ou ninguém conhecia, pois, com esse oba-oba, não se fala noutra coisa), era um livro convencional, que chegou a ser celebrado pelo Estado Novo. Já a 5a edição revista, a de 1947, virou um novo livro, que até hoje ostenta a aura de revolucionário. Muitos anos antes da atual badalação, foi este que eu li, até porque era o único disponível (era, pois agora surgiu uma edição comparativa destas duas edições fundamentais). O livro é um um clássico e um gerador de polêmicas. Não vou aqui me meter a analisá-lo - por desnecessário, pois que muita gente de alto coturno já deu seus pitacos -, mas é imperativo mencionar a tal polêmica expressão que celebrizou a obra, o tal "homem cordial", que durante décadas foi utilizada de forma equivocada. Muito longe de beatificar o brasileiro "gente boa", o sujeito com um enorme coração, hospitaleiro, predominantemente pacífico, o que a denominação ressaltava era o espírito ibérico da nossa personalidade, em contraposição à anglo-saxã. Explico: é que, no entender de Buarque, o ibérico privilegiava o compadrio, a relação pessoal, o clã, os vínculos de família; enquanto o anglo-saxão exigia o mérito, a performance, a lei, o socialmente estipulado, a ausência de exceções (estas últimas tão caras ao nosso populacho, que adora conhecer alguém na repartição que permita seja seu caso analisado antes dos demais). Lógico que este contraponto entre ibéricos e anglo-saxões não pode ser levado rigorosamente ao pé da letra. Já dizia Mark Twain que "todas as generalizações são falsas, inclusive esta." Mas quer coisa mais verdadeira, mais a cara do brasileiro, do que desfrutar do "relacionamento" mantido com alguém que manda na parada, em detrimento dos demais otários que só dispõem de um impotente "direito"? Aqui é o país do privilégio, da carteirada, do "sabe com quem está falando", do foro privilegiado, sancionado pela nossa mais alta corte. Estão na Biblía inúmeras e sábias parábolas a advertir que aquele que mais recebe com mais responsabilidade arcará. Só que nestas plagas preconizamos justamente o inverso: quem mais pode, menos deve. Bandeira também cantou essa boa vida em "Pasárgada", cujos versos famosos diziam "Vou-me embora pra Pasárgada/ lá sou amigo do rei/ lá tenho a mulher que eu quero/ na cama que escolherei." Já vou ficar bem feliz se, com este festival de revisões sobre a famosa obra de Buarque de Hollanda, fique claro para a posteridade que o "homem cordial" é aquele filho da puta que coloca o cunhado do amigo na frente dos outros duzentos que esperam na fila do transplante. Que o "homem cordial", por coronário, já traz implantado no coração o stent por onde corre o sangue fétido da corrupção. Não precisa ir muito longe para entender: mesmo dentro de casa (da casa do escritor) dá. Que maior exemplo desta cordialidade concedida aos amigos do que o comportamento do próprio filho do autor, o compositor Francisco Buarque de Hollanda, que, na juventude, compôs diversos hinos contra o então governo corrupto, discricionário e incompetente, e que, décadas depois, ao vê-lo ocupado por amigos, se tornou apoiador de um outro governo corrupto, discricionário e incompetente? Qual a diferença? ulula a multidão, indagando do subsconsciente do artista popular. Diria ele, placidamente: "É que aqueles não eram meus amigos."

Companhia das Letras,  2002 (15a reimpressão da 26a edição), 193 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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