"A grande luta", por Adriano Wilkson

quarta-feira, junho 14, 2023 Sidney Puterman


O que o público acompanha, na maioria dos esportes, são os atletas de elite. As grandes competições. Os astros e seu glamour. As habilidades extraordinárias e personalíssimas que fazem deles os campeões que são. Ali. Sampras. Phelps. Senna. Messi.

No MMA (nos primórdios chamado carinhosamente de "vale-tudo") não é diferente. No Brasil a massa se habituou a vibrar com estrelas do calibre de Anderson Silva, Minotauro, José Aldo, Charles do Bronx, Vanderlei Silva, Amanda Nunes. Campeões consagrados.

Mas a particularidade, aqui, em "A grande luta", é que o foco não está nos ídolos da luta. O autor decidiu acompanhar, in loco, os atletas que ainda penam em busca de um lugar ao sol. Praticamente desconhecidos, disputam os pequenos torneios, quase sem plateia. Trabalham em dupla jornada, dividindo empregos "normais" com os treinos diários.

Se esforçam tanto (ou mais) que os grandes nomes. Só que simplesmente não chegam lá.

Ficam pelo meio do caminho. Desistem. Ou, melhor dizendo, a carreira desiste deles.

O meio-médio paulistano Acácio Pequeno é o protagonista do livro de Wilkson. O lutador é a encarnação do típico aspirante a lutador do UFC. Seu colega de treino, Mohamed Said, é outro. O treinador de ambos (e também árbitro e promotor de eventos), Magno Wilson, sonha em ver os seus pupilos voarem alto.

A mesma história de tantos outros guerreiros que vão sendo enfileirados pelo autor: Flávio Rogério (o Legionário), Carlos Lokeira ("Sangue nos Olhos"), Gustavo Oliveira ("Pata Voadora"), Robson Negão, Thiago Pará, Clécio Bruto. Há também algumas exceções, que chegaram lá - mas não ficaram, como Markus Maluko, ou que superaram todos os obstáculos, como o mineiro Paulo Costa, o Borrachinha, que atravessou o breu dos eventos mal iluminados e foi brilhar no UFC - onde virou estrela midiática.

Wilkson não se limita a narrar o trajeto enviezado e cheio de frustrações dos candidatos ao Olimpo. Conta também como ele foi construído, por quem e de que forma. Assim, ele faz uma digressão à família Gracie, ao desenvolvimento do jiu-jitsu brasileiro, à criação do Pride e do UFC.

Insere também uma narrativa pessoal, relatando seus próprios esforços para treinar e, pasme, protagonizar uma luta real de MMA. Fez do propósito absurdo um gancho para denunciar como os pequenos eventos aceitam qualquer um - até mesmo ele - para lutar, sem fazer uma checagem do histórico do lutador e suas reais habilidades para entrar no ringue contra um outro sujeito disposto a desacordá-lo debaixo de pancada.

Um conteúdo pra lá de interessante - principalmente para aqueles que não conhecem nada do tema - e escrito com técnica e delicadeza. O autor é do ofício e se revela mais maduro do que sua idade permitiria supor. Mas o livro reserva "surpresas" bem maiores que esta.

Em um ambiente tão hostil e competitivo como o do vale-tudo, paradoxal que seu principal protagonista (a silhueta de contorno africano que estampa a capa) mescle doçura e resignação. São características antagônicas às esperadas para um lutador, que depende da agressividade e da ambição para sobressair.

Mas, ainda que doce e resignado, Acácio dos Santos prosseguiu em perseguição ao sonho dourado, mesmo depois do livro acabar (personagens reais são assim, ignoram o fim do livro). Até porque ser lutador sempre foi o melhor emprego à disposição.

O grande problema é que o MMA é um esporte muito difícil. Com carradas de imprevisibilidade, pois o duro universo das lutas não é ciência matemática. Não é também como um jogo de vôlei, um esporte coletivo, em que equipes tecnicamente desniveladas vão ter sempre um mesmo resultado, nem que joguem cem vezes. A melhor sempre vence a mais fraca.

Joguinho chato, a propósito...

Mas, numa luta, num mau dia um lutador completo pode perder para um adversário limitado. Uma mão que entra pode nocautear o favorito nas bolsas. Juízes num mau dia (dias ruins que geralmente são vários no mês) podem inverter um resultado. Querem um exemplo deste samba do uppercut doido? Vejam o que aconteceu depois que Wilkson pôs o ponto final no seu livro. 

Na primeira luta descrita no livro, Acácio Pequeno tinha vencido Quemuel Ottoni. Este mesmo Quemuel tinha finalizado dois anos antes o brasileiro (então desconhecido no mundo do MMA) Alex Pereira. Mas o destino dos três foi muito diferente. Pereira - hoje famoso com o codinome "Poatan" -, que perdeu para Quemuel, que perdeu para Acácio, entrou no UFC e se tornou campeão mundial pela organização.

Com enoooorme mérito, diga-se de passagem.

Acácio, dublê de segurança e lutador, como eu disse acima, não abandonou a meta de se tornar um lutador full time. Que pudesse viver somente da luta. Apesar da baixa frequência no cage, continuou lutando - e vencendo - após a publicação do livro.

Venceu quatro lutas em sequência, de 2018 a 2021 (todas na decisão dos juízes, sendo três por unanimidade e uma em decisão dividida). Na quinta luta acontar daí perdeu para Marcos Brigagão em setembro de 2021; mas foi à forra em abril do ano seguinte.

Foi aí que surgiu a tão ansiada chance de uma vida (a dele, né), quando participou, em julho de 2022, do evento criado para revelar promessas para o UFC, o "Dana White Contender Series", o DWCS. Pequeno enfrentou o sueco Anton Turkalj, numa luta amarrada. Eu vi. Acácio perdeu na decisão dos juízes, por 30x27, 29x28 e 29x28.

Foi a oitava vitória consecutiva de Turkalj, que tinha o cartel perfeito de oito vitórias e nenhuma derrota. O sueco - que aparentava desdém e arrogância nas entrevistas pré-luta -, após derrotar Acácio, conseguiu o almejado contrato com o UFC. Desde então, fez duas lutas, ambas contra brasileiros. Foi finalizado com um mata-leão pelo baiano Jaílton Almeida, o Malhadinho (ou Malhagomedov, na troça pelo seu alto nível na luta agarrada, à altura dos daguestaneses), e perdeu por decisão unânime para o invicto mineiro Vitor Petrino, o Cabuloso.

Petrino, 8-0, também conseguiu acesso ao UFC através do DWCS, ao nocautear (pela segunda vez) o brasileiro Rodolfo Bellato (eles já haviam lutado em um evento anterior). Pois este mesmo Bellato foi o último adversário de Acácio Pequeno, no mês passado, pelo LFA. De acordo com a papeleta dos juízes, Acácio foi derrotado, por decisão unânime.

É ou não é uma uma dança das cadeiras?

Quer ver? O Malhadinho, atual sensação do UFC, já com luta marcada contra o top 5 da organização, o americano Curtis Blaydes, tem o cartel de 19-2, tendo vencido as últimas quatorze lutas. As únicas duas vezes em que Jaílton saiu do cage derrotado foram em 2018, contra Bruno Assis, por decisão dos juízes, e em 2017, nocauteado aos 16 segundos de luta pelo cearense Tyago Moreira, o Buda.

Buda, o selvagem nocauteador de uma das maiores promessas atuais do UFC, o temido Jailton Almeida, foi derrotado em dezembro de 2020 por... Acácio Pequeno dos Santos.

Tem vezes que parece bingo. Mas é MMA.

Intrínseca, 189 páginas

PS.: Notei agora que o autor, o jovem jornalista Adriano Wilkson, é um dos que estão à frente da apuração da máfia das apostas, mais um crime descoberto no âmbito do futebol profissional. Este, quanto mais mexe, mais fede. Dezenas de jogadores das séries A e B do futebol brasileiro foram subornados. Alguns, julgados, já foram eliminados do esporte. Outros receberam penas leves. Sabe-se lá quantas centenas jamais serão descobertos. Reitero minhas reverências ao autor.

Ilustração: capa do livro tendo ao fundo um outdoor, às margens da BR 242 (a rodovia Milton Santos, na altura de Itaberaba, Bahia), divulgando investimento no esporte. O estado tem forte tradição no mundo da luta. Li o livro na estrada, aboletado num semi-leito da Real Expresso.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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