"Sérgio Cabral, o homem que queria ser rei", por Hudson Corrêa

quarta-feira, junho 21, 2023 Sidney Puterman


Livre, leve e solto.

Volto a um personagem já recorrente aqui no blog. E adianto que não tenho nenhuma predileção especial pelo cara, apesar de já ter lido duas outras publicações dedicadas a este cidadão - "A farra dos guardanapos", por Silvio Barsetti, e "Se não fosse o Cabral", por Tom Cardoso.

Achei que já era leitura suficiente sobre o tipo. Qualquer outra coisa seria mais do mesmo.

Porém, como eu tinha comprado esta edição há um longo tempo e nunca tive disposição para abri-la - pelo acima exposto -, alguns meses atrás me senti compelido a repensar. A volta às ruas de um ex-agente público condenado a 436 anos de prisão meio que me intimou a lê-lo. Seria agora ou nunca.

Reservei as horas seguintes para fazê-lo. E digeri-lo.

O livro tem uma redação fluida e uma divisão arejada. O texto de Corrêa é mais escorreito do que o dos seus colegas que versaram sobre o mesmo assunto anteriormente. A leitura não chega a ser agradável, por conta do tema, mas desce sem engasgar.

Corrêa seleciona de forma criteriosa os pontos importantes da trajetória do biografado - mas talvez não traga novidades em relação às outras edições. Ainda assim, mesmo dispondo de um mesmo conteúdo, a maneira direta como Hudson o apresenta é um diferencial a seu favor.

"O governo paralelo montado pela quadrilha de Sérgio Cabral arrecadava propina como se fosse imposto. Em troca do suborno, entregava de bandeja as obras públicas para as maiores construtoras do país. Cabral recebia mesada de 350 mil a 500 mil reais das empreiteiras, exigia também 5% sobre o valor dos contratos e até joias aceitava em pagamento".

Há que se louvar a capacidade de síntese do autor. Que se estende um pouco mais na abertura:

"Boa parte do dinheiro para as obras vinha do governo de Luiz Inácio Lula da Silva, aliado político e companheiro de afagos ao ego um do outro. Em abril de 2018, Lula também foi preso na Lava Jato, condenado no caso do triplex do Guarujá, no litoral paulista, por ter recebido o apartamento de presente da empreiteira OAS, favorecida em contratos com a Petrobras".

(Lembrando que, à época em que o livro foi publicado, tanto Lula quanto Cabral estavam presos.)

Corrêa já na introdução aponta suas baterias na direção do biografado, dando o tom com o qual o livro será escrito. 

"Sem esconder as extravagâncias, o governador se dava às farras em Paris, na mira das câmeras de celular, que registraram seus assessores numa dancinha de guardanapo na cabeça". Foi uma festa tresloucada, promovida por um governador de estado em viagem ao exterior. Talvez nunca antes. A efeméride mereceu um livro só para ela, como mencionei acima e resenhei aqui no blog.

"Cabral usava os helicópteros do estado para levar a mulher, os filhos, os amigos e até o cachorro à casa de praia nos fins de semana e feriados", enumera o autor. "Comprava joias em dinheiro vivo, investia em diamantes guardados num cofre na Suíça e engordava uma rede de contas bancárias secretas em vários países. Segundo a Procuradoria da República, Sérgio Cabral chegava a gastar 4 milhões de reais por mês (valores da época)".

Joias eram o "presente" que o governador mais gostava de dar à sua nova e jovem esposa. Caprichava no mimo. Passeando em Paris com a mulher e mais alguns empreiteiros, Cabral pegou pelo braço o dono da Construtora Delta, Fernando Cavendish, e entrou com ele na joalheria Van Cleef & Arpels. Lá já estava reservado um anel de ouro branco com brilhante. O governador mandou a letra para o empreiteiro: "Estou presenteando a minha esposa, gostaria que você pagasse".

Segundo Cavendish depôs à Justiça Federal, "pagou no cartão de crédito a joia de 220 mil euros". Ressaltou que "nunca tinha feito nada acima de dois dígitos nem pra mim, não tenho esse costume".

Quando da reforma do Maracanã (sexta? sétima?), a Odebrecht ficou com 70% da obra. A construtora baiana estranhou que a Delta tivesse abocanhado os outros 30%, reclamando que a parceira "nem tinha capacidade técnica". Mas, como disse o autor, a queixa foi "sem saber da força do anel".

O governador era generoso com a família na distribuição do dinheiro público desviado. Segundo Carlos Miranda (que recebia a propina e a repassava aos Cabral) confessou à justiça, ele "entregava dinheiro vivo aos pais de Serginho, Magaly e Sérgio Cabral". Deu os valores, dizendo que "a mesada chegaria a R$ 100 mil reais em 2013 e 2014. A irmã do governador recebia 25 mil. O filho mais velho, João Pedro, 10 mil, e o mais novo, com 18 anos, 5 mil. O irmão ganhou 240 mil de presente".

Cabral já praticava o "vamos cuidar das pessoas", futuro slogan do bispo Marcello Crivella (genro do Bispo Macedo), hoje condenado por corrupção. Segundo o autor, uma das empreiteiras que repassavam propina, a FW, gastou mais com a reforma dos apartamentos da família do que com a reforma do hospital Rocha Faria, "unidade de emergência com 198 leitos e que teve o atendimento limitado, entre outros motivos, por causa da presença de moscas no centro de terapia intensiva".

A Secretaria de Saúde do Estado do Rio de Janeiro era mesmo uma mina de dinheiro (daí infere-se o porquê da briga acirrada pelo Ministério da Saúde, em qualquer governo). Segundo o autor, o secretário Sérgio Côrtes "cobrava 10% de propina nos contratos da Secretaria, o dobro do praticado pelo esquema do governador com as empreiteiras".

Hudson destrincha o número avantajado, explicando que os 5% do Sergio Cabral já estavam incluídos nesse bem-bolado de 10%. "Côrtes ficava com 2% para ele; 1% para Cesar Romero, o seu braço direito; 5% para o governador; 1% para o Tribunal de Contas do Estado, que deveria fiscalizar os gastos públicos; e 1% para custear a operação de toda a falcatrua".

Como Corrêa informa que em sete anos o esquema faturou 16,2 milhões, e 1% desse valor seriam 162 mil, fico me perguntando como gastar essa baba custeando "a operação de toda a falcatrua".

O presidente da Andrade Gutierrez, Rogério Nora de Sá, então há 5 anos no cargo e com 30 anos de carreira na construtora, revelou à Justiça sua surpresa quando "Sérgio Cabral prometeu contratos milionários, mas antes queria propina adiantada". Segundo o executivo, "o governador exigia repasse mensal de 350 mil reais, uma mesada, adiantamento para a organização criminosa que se formava. Quando o esquema começasse a funcionar, o governo cobraria 5% sobre o faturamento das obras."

O acordo não deu muito certo. A Andrade Gutierrez pagou 4,5 milhões de reais ao longo de doze meses, mas ficou no prejuízo, segundo Sá.

Um depoimento dele sobre o pagamento de propina no contrato de construção do Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro, o Comperj, foi importante para elucidar o que havia por trás do projeto bilionário da estatal. A Andrade Gutierrez, a Odebrecht e a Queiroz Galvão (o, por assim dizer, primeiro time da propina) assinaram um contrato de 1,17 bilhão de reais.

Vale contextualizar. O então presidente Luis Inácio Lula da Silva discursou, em 31 de março de 2008, aniversário do golpe militar de 1964. Côrrea reproduz alguns trechos da fala presidencial.

"Quando você decide fazer um empreendimento desses, precisa arrumar parceiros privados para fazer parceria", destacou Lula, emendando: "E foi isso que a Petrobras fez". O presidente, envergando a jaqueta branca com o brasão da República, prosseguiu. "Segundo, você precisa contar com a boa vontade do governador local para não criar dificuldades e se colocar à disposição para ajudar o empreendimento a sair".

Acho que ninguém tem dúvidas no quanto o "governador local", Sérgio Cabral, se empenhou para o "empreendimento sair". O próprio Lula reconheceu o esforço: "Foi isso que o nosso querido Sérgio Cabral fez", acrescentou, para em seguida agradecer: "Muito obrigado, Sérgio, pelo comportamento republicano de fazer as coisas acontecerem".

Segundo o depoimento de Nora de Sá, além da fatia a ser paga ao governo federal, "o governador cobrou propina de 1% sobre as obras de terraplanagem da Comperj". Sá procurou o gestor da propina do governo federal dentro da Petrobras, o então diretor de abastecimento da estatal, Paulo Roberto Costa, que confirmou o acordo e respondeu: "Vocês vão ter que honrar".

Aqui constatamos o sentido mais amplo que esse pessoal dava às palavras "republicano" e "honra".

No capítulo "Propina depositada no exterior", menção honrosa para a Lei de Repatriação de Recursos. A lei, sancionada em janeiro de 2016 pela então presidente Dilma Rousseff, "permitia aos titulares de contas ilegais trazerem o dinheiro de volta ao Brasil sem punição, apenas com pagamento de 15% de imposto e mais 15% de multa". Um dos doleiros contratados por Eike, para repasse de suborno a Sérgio Cabral, sacou lá fora 16,5 milhões de dólares para "repatriamento".

Imagino que você tenha achado muito dinheiro, né? Veja este outro trecho do livro, que comenta a devolução de recursos feita por um grupo de doleiros, em acordo de delação celebrado com a Lava Jato: "Após a posse do governador, em 2007, o volume de propina começou a crescer até chegar aos 100 milhões de dólares, que os irmãos resolveram devolver".

Corrêa registrou também o período passado no presídio pelo governador e pela primeira-dama. Descreve as regalias e também o infortúnio da inspetora carcerária Amanda Dutra e Silva, que se recusava a dar tratamento privilegiado à presidiária ilustre. Moral da história, a prisioneira Adriana Ancelmo acabou solta, para "cuidar dos filhos", e a inspetora foi transferida, como punição.

Era muita gente graúda na cadeia, um povo acostumado à alimentação sofisticada e que não costumava olhar o valor da conta. Reuniram a politicada toda na galeria C. Abro espaço ao autor.

"Enquanto nas galerias A e B entram apenas as quentinhas, fornecidas no almoço e no jantar, a C recebe várias sacolas, sacos de gelo e carrinhos de supermercado abastecidos na cantina. Nessa galeria, a liberdade é tanta que só dá para diferenciar preso de inspetor por causa do uniforme".

Dá para termos um recorte dos que frequentavam a galeria C, pela descrição feita por Corrêa. "Ex-secretário de Saúde, Sérgio Côrtes dividia a cela C6 com o deputado Paulo Melo, presidente da Assembleia Legislativa de 2011 a 2015, acusado de receber propina das empresas de ônibus junto com o colega parlamentar Edson Albertassi, recolhido na C5".

"Mais adiante, na C8", continua esmiuçando o autor, "seu sucessor na presidência da Alerj, Jorge Picciani, repartia o espaço com o filho, Felipe, suspeito de lavar dinheiro da corrupção com a compra de gado". A galeria era comprida. "A C2 abrigava o homem da mala de dinheiro, Carlos Miranda, e o ex-secretário de Obras Hudson Braga, acusado de cobrar propina de 1% das empreiteira, a chamada taxa de oxigênio".

O ex-governador também residia nesta galeria, devidamente protegido, pois cadeia é um lugar perigoso. "Sérgio Cabral e o ex-secretário de Governo Wilson Carlos ficaram na C9. Ali também dormia o ex-policial Flávio Mello dos Santos, que acompanhava o ex-governador desde Bangu e atuava como seu guarda-costas".

Pelo anel de 220 mil euros, pelos 100 milhões de dólares devolvidos pelos doleiros, pela mesada de 350 mil paga por uma das empreiteiras "parceiras", a gente vê que não tinha amador no ramo da corrupção. Agora o que não tem é Lava Jato. Os políticos corruptos foram todos para a rua (e para Brasília) e hoje quem periga ser preso são os que caçaram os corruptos. Isso aqui é Brasil.

Sérgio Cabral foi o último a ser solto. Sua própria mãe se indignava na mídia, questionando porque "somente o filho dela continuava preso". Agora não mais.

Serginho flana pelo Rio. Que ninguém pense que ele tenta se esconder, envergonhado, ou que algum contribuinte espoliado o ameace. Nada. Tudo de boa. Ele está inclusive tentando se reposicionar no mercado. De vez em quando, alguém implica.

Esta semana ele foi com a família almoçar no Centro do Rio, no restaurante Casa Porto - segundo o jornal, um tradicional reduto esquerdista -, e, após sua saída, o gerente mandou lavar o restaurante com sal grosso. Que indelicadeza.

Pelo que li algumas semanas atrás, em uma coluna de amenidades da política, sob o título "Cabral e Bretas disputam seguidores e se arriscam como influencers", assinada por Bernardo Mello Franco, o ex-governador posta no Instagram indicações de séries de TV.

Rapaz, provável que o Sérgio Cabral tenha se tornado um crítico responsa. Nos seus seis anos de prisão, deve ter maratonado todas as séries, mais de uma vez. Suspeito (sem trocadilho) que valha a pena conferir as dicas.

Editora Primeira Pessoa, 223 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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