"O Livro das Mesas", por Victor Hugo

quinta-feira, fevereiro 14, 2019 Sidney Puterman

Seu autor é um gigante da literatura mundial. Mesmo quem não leu um único dos seus livros, foi, em algum instante, impactado pela obra de Monsieur Victor Hugo - um gênio assombrado pela paixão. Seus romances, plenos de revelações e passionalidade, poderiam facilmente situá-lo entre os personagens, atribulada que era a sua vida pessoal. Filho de um casamento conturbado e ele próprio protagonista de outro, o escritor foi também um parlamentar combativo e teve agressiva atuação política. Belicosa a tal ponto que, com a chegada de seu desafeto Napoleão III ao poder, Hugo abandonou o país rumo a um exílio de quase duas décadas. Seu endereço de exilado foi inicialmente a pequena ilha de Jersey, onde residiu de 1853 a 1855. Na Cidade-Luz, ao mesmo tempo em que a esfera política estava em ebulição, a alta sociedade francesa experimentava a coqueluche das misteriosas "mesas girantes". Nem de longe se sabia, mas testemunhávamos o início do Espiritismo. Nesta época em que as mesas falavam e que o autor de "Notre-Dame de Paris" deixava a França, seu conterrâneo, o lionês Hippolyte Leon Denizard Rivail,  reunia metodicamente milhares de informações do além para a confecção do Livro dos Espíritos. A obra teve a primeira das suas incontáveis edições em 1857 - e assinada por Allan Kardec, nome de Monsieur Rivail em uma antiga encarnação como druida. Estranhamente, apesar desta contemporaneidade, Patrice Boivin, o canadense de língua francesa que reuniu os textos que compõem O Livro das Mesas, não faz nas mais de 600 páginas da obra uma única menção à Allan Kardec. Deveria. Provável que não o tenha feito por uma (des) crença pessoal e não por desconhecimento de causa - ou talvez nós, brasileiros, pela dimensão do Espiritismo em nosso país, não consigamos digerir a falta de repercussão da Doutrina Espírita em seu próprio idioma de formulação. Surpreso com a omissão, não me restringi ao livro. Fui pesquisar na internet, onde também não encontrei referência de Boivin a Kardec, nem mesmo uma citação en passant em entrevistas sobre a obra (há uma de 10 minutos, hipoteticamente extensa o suficiente para comportar uma menção gentil, disponível no link https://www.youtube.com/watch?v=ZbmaVJ2LheI). Parece que este reconhecimento também não ocorreu da parte de Victor Hugo em relação ao codificador do Espiritismo. É fato que não tenho como afirmar meramente guglando. O tema é vasto e seu cerne remonta no tempo a mais de século e meio. Mas, se Hugo não cita Kardec, o oposto, parece, se deu. No site do CEFE (Centro de Estudos Filosóficos Espíritas), há uma página sobre o autor de "Os Miseráveis" que afirma que Kardec reconhecia Hugo como um "expoente do movimento espírita", tendo incluído uma carta do escritor na Revista Espírita de 1863, onde Hugo se refere à reencarnação. Bem, ainda que a codificação espírita não seja sequer citada em O Livro das Mesas, achei indispensável referenciá-la. O fato é que a comunicação com os Espíritos, na ótica de Victor Hugo, se dá sob uma perspectiva que sempre me interessou: a da personalidade individual anterior e a da erudição. Os espíritos com quem Hugo e os demais participantes das sessões (familiares e amigos próximos) conviviam foram grandes nomes da literatura, do teatro, da cultura e da política de todas as épocas. Mais que isso, estes nomes foram convocados a criar novas obras durante reuniões sobrenaturais que varavam a madrugada. O espírito de William Shakespeare chegou a ditar uma nova peça, durante as sessões na ilha. O rol de sumidades vai de Alexandre, o Grande, passando por Moliére e ousadamente chegando a Jesus e Maomé. Apesar do meu interesse nesta abordagem, o fato é que a mim, espírita, os textos não pareceram legítimos. Não são coerentes com o que sabemos ou supomos da personalidade histórica de cada um. Só para um exemplo mais contundente, as mensagens recebidas como sendo de Jesus Cristo que constam do livro não coadunam em nada com a herança espiritual que Ele nos deixou. Em muitos outros casos, a obsessão pela forma, como nas inusitadas parcerias literárias entre encarnados e desencarnados, soa inadequada demais. E o que falar dos melindres quando um Espírito debochava de uma sugestão de texto de um dos encarnados à mesa? Desconfortável. Boa parte da leitura eu fiz com um pé atrás. A propósito, nisto eu e o compilador da obra, Boivin, concordamos. Ele crê piamente que os textos são do próprio Victor Hugo; a mim também parecem, no mínimo, excessivamente influenciados pelo escritor. Talvez até mesmo por isso ele se sinta bem à vontade para ignorar a existência de Allan Kardec e do Pentateuco, os cinco tomos que trazem o Espiritismo codificado. A doutrina não lhe diz respeito, porque ele supõe, em seu íntimo, que Hugo estivesse enganado quanto à sobrevivência do espírito e, em decorrência, sobre a possibilidade dos mortos se comunicarem com os vivos. Não desconheço que Victor relutou muito antes de aceitar a vida após a morte, sequer como hipótese de trabalho (expressão recorrentemente utilizada por um dos maiores estudiosos da ciência espírita, Hermínio Miranda). O que o fez mudar de ideia foi um texto recebido pela mesa, onde ele reconheceu como verídica uma mensagem da sua querida filha Léopoldine (que havia partido jovem, em um trágico acidente de barco). A partir daí, o autor se tornou fervoroso adepto do Espiritismo e, mais que isso, o principal condutor dos trabalhos espíritas em Jersey. Todas as sessões foram diligentemente registradas em atas, por sua vez reunidas em cadernos, os quais, com a passagem do tempo e seu retorno à França, 18 anos após sua partida, acabaram extraviados. Pela relevância histórica do escritor, entretanto, estes cadernos perdidos ganharam também sua feição lendária, e, com o avanço das décadas, eram vez por outra mencionados e parcialmente transcritos, ainda que não em sua integralidade ou mesmo sendo possível seu cotejamento. Foi a esta tarefa que Patrice inicialmente se dedicou, e que lhe permitiu publicar a obra com seu conteúdo completo. Mais que meritório, pelo destamanho de Hugo na história francesa, e peculiar, pela sua contribuição indireta à história do Espiritismo. De uma certa forma, como se pode acompanhar, por exemplo, na sessão de 3 de julho de 1854, Victor Hugo indagou dos espíritos questões determinantes para uma nova compreensão da imortalidade, ainda que não tenha se dedicado a organizá-las, como fez le professeur Hippolyte Leon em seu hercúleo e incomparável trabalho sob o nome de Allan Kardec. Para Hugo, o espírito que se apresentava como A Ideia assentiu com o resumo espiritual que o próprio escritor havia proposto, como uma condensação do que havia sido dito ao longo de um ano de sessões. Concordou enigmaticamente o Espírito dizendo: "Tu acabas de bater à poterna do castelo sombrio (...). Todas as nossas explicações são chaves de masmorras. Somos os invisíveis porteiros dos astros. Quando abrimos um sol, abrimos uma sombra, quando abrimos o infinito, abrimos uma cela, quando abrimos Deus, abrimos o calabouço. Somos luzes infinitas, iluminamos com as trevas. Afirmamos sem provas e espalhamos a dúvida derramando a verdade. (...) A ignorância, sentinela negra, está sempre pronta para encarcerar o espírito." O recurso semântico das afirmativas antagônicas está presente na maioria dos textos, como neste. Ao mesmo tempo que transborda de beleza gótica, irradia contornos dúbios, sombrios, imprecisos - o oposto da Codificação. Seja lá quanto provenha de Victor Hugo e quanto provenha dos espíritos que assinam os textos psicografados, é inconteste a sedução do seu conteúdo, por um lado, e certa fragilidade das suas afirmações, expostas à luz da Doutrina, por outro. E, ainda que me curve a um inegável primor estético, ele não tem a sutil multiplicidade obrigatoriamente oriunda da pena de tantos e tão diversos autores (nada que nem de longe se ombreie ao seminal Parnaso do Além Túmulo, de Chico Xavier, lançado em 1932) , mesmo que nos restrinjamos somente a uma hipótese secular e mundana. Os textos de Victor Hugo assinados pelos espíritos me deram a impressão de trazerem pouco dos espíritos e muito de Victor Hugo (o que é a razão da obra: o objetivo de Boivin é a recuperação de textos até então parcialmente desconhecidos e não atribuídos ao escritor). Para mim, porém, esta experiência mediúnica de um dos maiores nomes da literatura francesa, resgatada diligentemente por Patrice Boivin, reforça no espírita (como eu) a convicção de que a comunicação entre vivos e mortos não deve buscar o brilho que estes espíritos eventualmente demonstraram em sua passagem sobre a terra - e sim seu emprego atual de mensageiros de um mundo invisível, voluntários em uma causa de resgate dos seus irmãos ignorantes, enfermeiros que, com curativos e padiolas, aplacam nossas dores e nos conduzem por um caminho em que não temos como enxergar. Seja como for, embora não endosse a opção do autor de ignorar o trabalho literalmente enciclopédico de Allan Kardec, há que se aplaudir a relevância do seu esforço de pesquisa e a lanterna com que ilumina uma jóia esquecida de um autor venerado. Mas vou além: enxergo na própria exclusão da Doutrina Espírita nesta obra um testemunho da sua importância histórica. Abriram-se temporariamente as portas que separam os mundos. Os espíritos vieram testemunhar o que havia por trás dos planetas no firmamento. Sua presença foi alvo das mais diversas manifestações, da diversão pueril à ambição intelectual. Apenas uma única pessoa foi capaz de discernir sua relevância, coletar seu conteúdo e estruturar sua disseminação. Nem mesmo um gênio exilado e ocioso, como Victor Hugo, foi capaz de transformar este prêmio em legado. A missão coube a um professor e guarda-livros de Lyon. O mestre Hippolyte Leon tornou à sua encarnação druida para dedicar os 14 anos finais da sua vida material a filtrar, organizar e reescrever as mensagens recebidas, criando os cinco livros que são ciência, filosofia e religião e que são também até hoje o alicerce da Doutrina. Curiosamente, a França não deu grande valor à preciosidade. Foi no Novo Mundo que ela deitou raiz. Fico feliz que a semeadura das verdades espíritas tenha florescido na pátria brasileira. A milenar cultura francesa foi nossa generosa (e imprescindível) barriga de aluguel.

Editora Três Estrelas, 627 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

5 comentários:

  1. Olá, Sidney! Tudo bem? Parabéns pela postagem, no entanto, com a sua permissão, gostaria de fazer algumas objeções com o fito de enriquecer o debate:

    Há um mistério completamente poético nessa experiência de Hugo e sua família com as Mesas. Como assíduo leitor de V.H, reconheço o estilo do poeta nas mensagens, mas tão somente isso: o estilo. Não raro, inclusive, a Mesa leva a estética hugoana a um novo patamar, como me parece bastante claro nas considerações feita pela Morte, e nos versos ditados pela Sombra do Sepulcro. O estilo é o mesmo, mas as vozes são múltiplas, e todas elas são diferentes da voz de Hugo. O estilo de um escritor pode ser sempre emulado, mas nunca a sua voz. Eis, em verdade, a defesa que faço contra aqueles que acusam Chico Xavier de pastiche no "Parnaso...", e a acusação que dirijo às pretensas psicografias de Zilda Gama e Divaldo Franco assinadas por V.H. Enquanto o grade médium mineiro nos entrega vozes de poetas falecidos, Zilda e Divaldo nos dão livros que copiam imperfeitamente a estética hugoana, e que não possuem a voz do mestre francês.
    Realmente, a quantidade de vozes da Mesa de Jersey não é tão grande quanto a do "Parnaso...", entretanto, as mensagens recebidas em Marine Terrace são de uma potência linguística e de uma ironia superiores a qualquer poema contido na excelente, diga-se, antologia mediúnica dada a nós pelo Chico.
    Sinceramente, eu não consigo enxergar muito bem o motivo pelo qual deveríamos cotejar as mensagens das mesas de Marine Terrace com os textos da Doutrina Espírita. Com raríssimas exceções, as vozes das mesas demostram um intelecto maior do qu qualquer voz contida no pentateuco. É bem verdade que Kardec sistematizou as mensagens que recebeu, buscando, na medida do possível, arranjá-las sobre o agasalho dos mesmos postulados, mas isso não me diz muito. Veja, encaixar um fenômeno tão rico quanto o contato de uma alma com um ser vivo no método científico, ao meu ver, é extremamente inadequado. A razão tem braços largos, mas não tão largos. Esses fenômenos pertencem à esfera do poético, do onírico, e da fé. Enquanto o pretensamente científico pentateuco espírita me parece francamente descolorido e sem vida, os poemas das Mesas, enigmáticos como são, desprovidos de sistematização e racionalidade, mas cheios de imaginação, ironia, e sonhos, dão, pela beleza da arte, um vislumbre muito mais preciso e cativante do pós vida do que os monótonos ditados do Espírito de Verdade, ou de Fénelon presentes na obra kardequiana.
    Que dizer, por exemplo, da genial tirada do espírito que se dizia Molière direcionada a Vacquerie? Tirar de uma peça do próprio Vacquerie "Vós me enfastiais, senhora", foi sagaz e cômico. Isso para não falar do "duelo de titãs" travado entre Hugo e a Sombra do Sepulcro, do qual Hugo saiu vencido e ferido em seu orgulho inflado; ou ainda da bonita caminhada de mestre e aprendiz entre Hugo e o "Leão de Androcles", cujo clímax, para mim, é o roubo, por parte do Leão, de um hemistíquio que apenas Hugo conhecia, num claro sinal de reverência e intimidade entre o vivo e o morto; entre o exilado e o cidadão livre.
    Com efeito, me parece que este esplêndido conjunto de sessões compõe algo semelhante a uma peça de teatro misteriosa e sombria, beirando ao gótico. Uma obra de arte, sem dúvida. Como poeta que sou, espero que me perdoe por enxergar mais verdade em um belo verso do que em uma fria equação, ou em um enfadonho artigo científico.
    Muito obrigado pelo espaço! Espero obter a sua resposta, para que possamos discutir com mais vagar essas graves e interessantes questões que mencionei em meu texto.
    Abraço,
    Artur

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Olá, Ian Maclean tudo bem?
      Certamente, eu não sou a pessoa que você desejaria que te respondesse. E só acessei este link por causa do livro "Víctor Hugo e as mesas girantes". Acho que, como você mesmo disse, você é ´poeta, então lida com o onírico, com o sonho, com a ficção. O autor do texto, pelo que deduzi do que ele disse, é espírita convicto. Então, parece-me natural que ele queira uma verdade, uma resposta mais convincente à crença dele. Há objetivos diferentes quanto aos gêneros textuais que lemos. Digo isto,por mim mesma. Eu admito a existência dos espíritos, mas... às vezes, duvido de tudo. Entrei aqui e acabei lendo este texto do Sidney, para fortalecer ou não a minha crença na existência dos espíritos ou não. E creio que o objetivo do Sidney, foi também este. Ele falou como espírita, querendo que o Espiritismo seja uma ciência. A linguagem onírica, ou lúdica, metafórica fica pertence mais aos textos poéticos do que os textos que se pretendem científicos.

      Excluir
    2. Opa, Ian, lhe respondi aqui. 14 meses atrasado, mas ainda a tempo, já que o nosso relógio aqui é justamente o eterno. Ou quase...

      Excluir
  2. Obrigado Ian e também a nossa desconhecida Unknown.

    Antes de comentar o texto instigante do Maclean, quero agradecer à gentil desconhecida por me chamar a atenção para este comentário, feito há mais de um ano e que me havia passado despercebido. Isto posto, fico feliz em ter aqui a participação de um conhecedor profundo da obra de Victor Hugo, capaz de fazer observações muito mais pertinentes sobre o estilo do autor do que eu poderia tentar (conheço pouco da obra do gênio para poder me estender aqui). Mas, agora respondendo a ambos, não creio que haja no meu comentário um conflito entre poesia e ciência, entre brilho literário e doutrina, entre inspiração e religião. Como a desconhecida, eu também não sou imune a questionamentos, e a própria expressão "crença" me leva a uma interpretação dogmática. O estruturado edifício de Kardec é, à sua maneira, belo como um quadro de Monet, intenso como um retrato de Van Gogh. O Espiritismo me encanta e seduz, pela janela que permite ao meu intelecto sonhar com uma realidade mais inclinada à fantasia. Vivo, a profundidade do talento me fascina, mas - em breve morto - a perspectiva do Além me enfeitiça.

    Grande abraço a vocês. Apareçam mais vezes.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Bom dia, Sidney e obrigada pela solicitude em responder ao Ian Maclean e a mim. Não sou conhecedora profunda de Victor Hugo, embora o admire por sua obra máxima " Os miseráveis, e por sua trajetória como político combativo e sua empatia aos mais necessitados. Quando falei sobre a linguagem científica e a linguagem literária, eu quis dizer que a primeira se pretende mais realista e por isso, menos enfeitada. Não creio, porém que uma exclua a outra. Até por que uma das descrições mais lindas que já li sobre o retorno da vida em um corpo material, foi num romance espírita, mas romance, não um experimento científico.
      Eu também gosto de abrir a mente para possibilidades que, pelo menos, de imediato, e aparentemente, possa parecer totalmente fantasiosa e sem possibilidade de existir, mas, como disse, de imediato, e aparentemente.
      O que me faz acreditar que possa existir algo além disto aqui é o aparecimento da vida. Se a vida já é um milagre, um acontecimento espetacular, por que não pode haver a transcendência, ou algo imaterial, um princípio ativo que sobrevive à matéria...
      Confesso, porém que como um ser humano cheio de limitações, gostaria imensamente de ter a certeza, embora saiba que só saberei ou não quando eu me for. Isto, se existir algo, né? Pois se não houver nada, serei um nada que não terei condição alguma de saber nada. :-(

      Excluir