"Se não fosse o Cabral", por Tom Cardoso

terça-feira, fevereiro 26, 2019 Sidney Puterman



O ex-governador Sergio Cabral, depois de passar os últimos dois anos negando as acusações, resolveu ontem confessar o recebimento de propina. Mais: aproveitou para acusar alguns subordinados, como Régis Fichtner, e enumerar as empresas que participaram do esquema de suborno nas obras do metrô carioca. Não me surpreendeu. A confissão foi coerente com o andar da carruagem e era mais uma questão de quando. Além do noticiário, eu vinha acompanhando este roteiro também nas estantes. Para sorte dos leitores, é cada vez mais fácil fazer isso - e um bom retrovisor pode ser uma ferramenta valiosa. Há uma avalanche de livros no mercado sobre o ex-governador do Estado do Rio de Janeiro no período 2006-2014, Sérgio Cabral Filho. Este é o segundo que leio (há um terceiro já na minha prateleira, mas temo que fique datado). O anterior que li, "A farra dos guardanapos", foi sobre um evento episódico - abordava especificamente um dos escândalos mais non-sense que os eleitores cariocas já tiveram o pasmo de testemunhar. O happening era estrelado pelo Governador do estado, secretários e fornecedores, em euforia alcoólica, performando a dança da galinha, de guardanapos na cabeça, em uma cerimônia oficial em Paris. Neste tempo as pesquisas indicavam que Cabral era aprovado com altos índices pela população carioca. Eu aqui sempre fui cético quanto a estas avaliações, mas jornais e institutos de pesquisas gostam delas. Se tornaram tão delirantes que houve um momento em que pensei que o Temer alcançaria 101% de rejeição. A sede pela jugular do velho político era tanta, que temi ver os mortos de Antares se apresentando para responder à tal pesquisa e condenar à danação eterna o vice de Dilma. Não chegou a tanto. Temer já se foi e passa bem, mas sempre rola um sobressalto quando alguém bate na sua porta às seis da manhã. Já o livro de Tom Cardoso é linear e didático. Tipo picolé no verão. Parágrafos curtos e capítulos idem sobre um bizarro personagem da nossa política local. Não há tese ou investigação aprofundada, é mais o avanço cronológico da carreira profissional e amorosa de Serginho. É útil. O projeto gráfico de Amanda Cestaro e a capa de Cesar Godoy são tiros certeiros: a capa emula um chefe mafioso e o índice, cujos capítulos são distribuídos pelo vão das grades de uma cela, não deixa dúvida sobre a linha editorial. As imagens que dividem os tais capítulos são galhofeiras e reforçam o ar debochado de uma grande e milionária ação entre amigos, um puta golpe bem-sucedido. Vale destacar que o prefácio é assinado por um ex-integrante de um governo associado, para alguns, cúmplice, para outros, do biografado. Renato Janine Ribeiro, ex-ministro do governo Dilma Rousseff, professor de Ética e Filosofia Política na USP, é quem faz a abertura do livro, com rigor. Adequado, já que Cabral sempre se vangloriou da importância de tê-la (a ética). Janine, cujo nome vem em letras em tamanho desproporcional, deplora a corrupção no governo alheio, mas considerou eticamente de bom-tom ignorar a do próprio. Se refere a ex-presidentes que se corromperam. Mas somente a Collor, que governou de 90 a 92, ainda solto, e não a Lula, que governou de 2002 a 2010, já preso. Cabral sempre foi um paladino da ética, como disse certa vez: "Nosso local de trabalho não pode ser transformado numa casa de negócios, negócios estes fechados às custas do patrimônio público." Então, por afinidade de convicções, Janine prefaciar Cabral é mais que pertinente. Entrando no site da Tordesilhas Livros, um looping com cinco lançamentos recentes da editora revela a aposta na biografia de nomes midiáticos: Ney Matogrosso, Sonia Francine, Neil Armstrong e Hilda Hist. Há pouco comprei uma outra do selo, a do incomparável velejador Amyr Klink, "Nada a perder", mas ainda não puxei para a leitura. Então esta talvez tenha sido a minha primeira experiência com as apostas editoriais do novo publisher. O livro é um confortável frescão Ipanema-Praça XV. Sem solavancos. Pela janela fumée vê-se o circo de horrores de três décadas da política fluminense. São muitos os nomes pusilânimes que marcam presença, com estilo, e com protagonismo do funcionário público novo-rico Sérgio Cabral Filho. Para quem só se recorda do Cabralzão carioca da gema, jornalista, sambista de raiz e esquerdista convicto, surpreende vê-lo no papel de pai de político corrupto e confortavelmente refastelado em uma vaga no Tribunal de Contas (em tempos remotos o escritor Fernando Sabino havia saudado a chegada do filho à política com uma crônica intitulada "Tal pai, tal filho"). O filho, sem modéstia, se comparava ao pai: "Herdei de meu pai menos as olheiras e mais o excelente caráter." Um caráter inequivocamente cordial, na accepção empregada por outro Sergio, o Buarque de Hollanda, em seu clássico "Raízes do Brasil" (veja aqui: https://bit.ly/2EaDvDH): o cordial Cabral distribuiu dinheiro a rodo entre os familiares, mesadas vultosas e regulares, à medida em que pegava mais para si. Ressaltemos que toda esta nababesca fortuna era oriunda do Erário, lhe chegando às mãos por meio de engenhosos mecanismos de desvio de dinheiro público. Engenhosidade e gulodice não faltaram: o próprio Cabral confessaria, depois de um tempo na cadeia, que "não soube se conter diante de tanto poder e tanta força política" (o vídeo da confissão, feita em 7 de junho de 2018, permanece disponível no YouTube) e que cedera à "ostentação". Mas não se escreve o que Sergio diz, nem se pode levar ao pé da letra o que ele escreve. Seu primeiro artigo de relevância em O Globo, em 16 de fevereiro de 1991, há exatos 28 anos, foi: "O Rio tem jeito". Durante as décadas seguintes, Cabral Filho tentou este jeito. Suas articulações cobriram todo o espectro político. Após um relacionamento íntimo com Marcello Alencar e com Anthony Garotinho (sem jamais se dissociar de Jorge Picciani, ao lado de quem controlava a Assembléia Legislativa), encontrou a parceria ideal na aliança com Lula e o PT, que se revelou profícua e duradoura, pela afinidade natural entre os dois políticos. No primeiro governo Lula, Cabral chegou a ser cogitado para assumir o Ministério das Cidades. Mas a grande aliança entre Luis Inácio e Serginho veio a acontecer no governo do estado, onde houve uma mudança de paradigma, que transformaria em brincadeira de criança os assaltos corruptos de décadas passadas. Como chefe do executivo fluminense e com larga influência na liberação das verbas estaduais, macomunado com o comando da Alerj, o apetite do governador engoliu todos os procedimentos governamentais que envolviam altas somas de dinheiro. Foi estipulado que todo contrato deveria implicar em 5% de comissionamento para il capo. Com isso, esquemas crescentemente complexos criavam demandas, manipulavam licitações, engordavam o fluxo de dinheiro público para artérias clandestinas saturadas e exigiam uma administração contábil e financeira cada vez mais sofisticada. Os subterfúgios amadores de doleiros empregados para lavar os primeiros milhões de reais subtraídos aos cofres do estado já se revelavam tímidos para gerenciar a dinheirama. Mais e mais gente era necessária para tocar aquela enorme máquina de sucção. Segundo o Ministério Público Federal, entre 2003 e 2015 Cabral abriu 15 contas bancárias em sete países, para onde escoaram US$ 100 milhões, ou R$ 400 milhões de reais, no câmbio às vésperas da eleição do ano passado. Só em jóias foram apurados 25 milhões de reais, empregados na compra de 189 joias para sua segunda esposa Adriana Ancelmo, a advogada de sobrado do Saara que se transformou na dona da maior banca do estado fluminense. Talvez o Rio não tivesse jeito, mas era lucrativo. E divertido. Seu lazer milionário incluiu 2.000 viagens de helicóptero para sua mansão à beira-mar em Mangaratiba, no seu período em solo pátrio, pois passara mais de cinco meses do mandato - exatos 158 dias - viajando pelo mundo. Se na famosa planilha de codinomes da Odebrecht ele era o "Proximus" (será que a bola de cristal de Marcelo Bahia enxergava nele o próximo presidente da República?), na sua própria listagem ele se auto-atribuiu o epíteto de "Cabra Macho", que compunha uma dupla bem dinâmica ao lado do "Nervosinho" (Eduardo Paes) e que beijava a mão do amigo do peito "Zeca Pagodinho" (Lula). A química entre Cabral e o presidente era tal que Lula preteriu os petistas de raiz Lindbergh e Benedita para apoiar a reeleição de Cabral no Rio. Proximus, aliás, estava tão popular que foi cogitado para candidato a vice-presidente numa chapa de oposição branda encabeçada por Ciro Gomes (que costumava cortejá-lo publicamente, chamando-o de "principal promessa da ala respeitável do PMDB") e na favorita chapa da situação de Dilma Rousseff. Não deu certo, porque a mãe do PAC não digeria o carioca e via nele um fanfarrão megalômano (fácil de achar na rede Cabral bêbado no Sambódromo, tentando falar inglês e babando no ombro da Dilma - depois disso, a mineiro-búlgara não deixou mais Serginho se aproximar dela). O ex-presidente, amuado pela hostilidade ao seu amigo carioca, sofreu por ver Temer ocupando o lugar que ele, Lula, queria entregar a Cabral. Mas tudo isso iria realmente ribanceira abaixo em 2011, quando do fatídico acidente de helicóptero que vitimou mulheres e crianças. O fato é público e conhecido, por conta do enlace fatal que transformou a viagem de lazer em manchete fúnebre. Para uma festinha no Jacumã, Bahia, Cabral pediu mais uma vez emprestado o avião de Eike Batista, o empresário camarada. Dizem que Eike já estava estressado com o governador pidão, mas cedeu. Embarcaram Sergio, seu filho Marco Antônio e o empreiteiro Fernando Cavendish. Entre as mulheres estavam a cunhada de Fernando, para quem Cabral arrastava a asa, e também a namorada do filho de Cabral, além de uma babá e da esposa de Cavendish. As condições metereológicas eram ruins e o piloto do Legacy pousou em Porto Seguro, declarando não haver condições para pousar no Jacumã. Cabral estrilou e ligou para o dono do resort, que providenciou um helicóptero para translado do grupo. Quando a carona chegou, foi alertado que o Eurocopter 350 suportava apenas cinco passageiros. Era noite, o tempo estava ruim e o vôo tinha um considerável grau de risco. Sergio Cabral optou pela cautela e decidiu: "Women first." Os três marmanjos ficaram no aeroporto e as quatro mulheres e suas duas crianças partiram para a última viagem das suas vidas. Em questão de minutos o helicóptero afundava no litoral baiano com sua carga preciosa e irrecuperável. E, se os dois políticos e o empresário escaparam ilesos do acidente, não se deu o mesmo com suas carreiras. A tragédia revelou os vínculos que o governador mantinha com o empresariado e como se servia deles. A imagem de gestor competente e ilibado desmoronou - e a orgia por detrás da parede do convento apareceu com toda a sua pornografia. Eduardo Paes, aliado do governador, ainda tentou mantê-lo no topo, insistindo na manutenção do seu nome na chapa presidencial petista, como disse em uma entrevista coletiva: "O que a gente pensa para a aliança PT-PMDB para 2014, o que eu quero, é que o Sérgio Cabral seja o vice da Dilma. A gente gosta e respeita o Michel Temer, mas agora é a vez do governador Sergio Cabral ser o vice." Ressalto que esta "sonora" você não vai encontrar em "A farra dos guardanapos", livro que pisoteia o governador com um pé e alivia descaradamente  o prefeito com o outro (encontre a resenha aqui no blog). Nem o livro cita que Cabral morava de graça no apartamento do banqueiro Guilherme Paes, irmão do Dudu. Detalhes. Mas mais forte que o lobby de Paes foi o lobby dos seus adversários, que organizaram o "Ocupa Cabral" na porta do prédio de Cabral. Depois de tantos anos de conquistas, luxo e bajulação, tudo parecia conspirar contra o simpático e bem-chegado político carioca. Como se não pudesse piorar, a Operação Lava-Jato chegou e desarrumou o Brasil. Metaforicamente falando, onde antes a impunidade fazia parte do bilhete de entrada, agora os seguranças catavam os tarados pelo salão. A tecnologia encheu o baile de câmeras e os pedófilos passaram a ter que brigar com o flagrante filmado e juramentado. E, pior, de posse do excesso de provas surgiram juízes paladinos, pertencentes a uma nova geração que não queria mais apenas compartilhar do poder dos poderosos, lamber e serem lambidos. Pareciam zumbis de toga tomados pela repulsiva obsessão de prender criminosos. Quem não tomou os cuidados suficientes estava agora na zona de tiro. Na mira dos snipers do judiciário. O luxo demasiado parecia essência de picanha para os cães de caça do Ministério Público. Seja como for, os inegáveis sinais de riqueza multimilionária não contribuiram em nada para a salvação do presunçoso ex-governador. O juiz Marcelo Bretas, inusitadamente afrontado em uma das audiências (durante o depoimento, Sergio Cabral fez insinuações maliciosas sobre o negócio de bijuterias da família do magistrado), aplicou penas severas ao político. Outras investigações em curso no País também incluíram Cabral entre os acusados e também duramente o condenaram. Todo o patrimônio encontrado nos imóveis e contas do ex-governador foi sequestrado pela Justiça - entre eles 83 joias, 18 obras de arte, 17 carros, um helicóptero Eurocopter 120b (valendo R$ 3 milhões) e uma lancha (valendo R$ 5 milhões). Na prisão, o sempre safo Serginho conseguiu manter seus privilégios, logicamente em escala proporcional, agora que era um reles presidiário: foi-se a suite mais cara da capital francesa, ficou o luxo de dormir no ar condicionado da biblioteca da penitenciária; foram-se os espetáculos grandiosos, veio a TV de led de 65 polegadas, o blu-ray e 160 DVDs doados pela Igreja Batista do Méier; foi-se o camarão comido nas mesas dos melhores restaurantes, veio o mesmo camarão para ser comido na cela. Mesmo com sua confissão de ontem (e, segundo o noticiário, parece que hoje, terça-feira, tem mais), não há como prever os desdobramentos futuros do seu cumprimento de pena, ainda mais que dezenas de outros políticos aliados estão presos ou em vias de. O horizonte prossegue nebuloso. Talvez sua sempiterna esperança de que ministros na suprema instância da Justiça não resistam à tentação de mimosear criminosos influentes com habeas corpus indulgentes tenha se abalado. Enquanto alguns políticos presos sucumbem, outros políticos soltos tentam manter sua rotina. Inclusive a família. O filho do ex-governador, o ex-deputado Marco Antônio Cabral, que teve uma eleição fácil no pleito anterior, no último outubro veio com o picaresco mote do "Disque-Fuzil", mas não conseguiu carimbar sua permanência no Olimpo parlamentar. Adriana Ancelmo, esposa e cúmplice, por generosidade de um magistrado do Supremo foi libertada da cadeia em nome da supervisão dos seus filhos adolescentes. A mãe, Magali, se queixa da severidade imposta ao filho, condenado por enquanto em pouco mais de 20 processos e acumulando uma pena superior a 300 anos de prisão. Talvez quem melhor resuma a atual situação familiar seja o pai - já falamos nele, o sambista, jornalista e ministro aposentado do Tribunal de Contas, Sergio Cabral -, que respondeu assim, quando perguntado sobre o filho em um almoço festivo: "Serginho morreu ainda criança."


Editora Tordesilhas, 307 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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