"Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", por Julio José Chiavenatto

domingo, setembro 07, 2025 Sidney Puterman


Sete de setembro. Data cívica. Paradas militares, bandas marciais e o escambau. Bem à feição para uns pitacos sobre o feito-mor das nossas Forças Armadas, a Guerra do Paraguai. Feito-mor? Sei não. Na verdade, foi mais uma patacoada. Uma "exibição" pífia, uma performance medonha.

(Daqui da janela vejo os guris passarem empolgados. Vão marchar na avenida. Os pais filmarão.)

Mas eu dizia. Por décadas, a literatura oficial tupiniquim celebrava o fato de termos estraçalhado o vizinho. Celebravam Humaitá, Itararé, Avaí e o diabo a quatro. Batalhas "memoráveis". Quadros de Pedro Américo com o Duque de Caxias guiando a soldadesca para a vitória.

Pois aí surgiu um néscio que, ao contrário do até então disseminado, fez a nossa caveira. Contava poucas e boas do Imperador, do governo e do exército. E exaltava os paraguaios.

(Um moleque fardado passa soprando um trombone. O outro deixa cair a baqueta.)

As divergências deixam o leitor diante de uma sinuca. Quem conta a verdade? Estavam certos os velhos adoradores de Caxias ou a nova versão da mula que endeusava o ditador do Paraguai?

Vamos falar dessa última, que (re) li recentemente. Sobre a guerra, em si, deixo pra outro dia.

O livro "Genocídio americano" foi publicado no final dos anos 70. Trazia revelações escabrosas. De sacudir os alicerces da historiografia. Isto é, se as tais revelações procedessem.

Mas não se engane. O texto do jornalista Julio José Chiavenatto é uma prodigiosa coleção de estultices. Poucas vezes se escreveu tanta besteira e com tamanha cara-de-pau. E o duro é que, à guisa de grave denúncia, o panfleto bombou entre os universitários e a esquerda festiva.

(Confesso, constrangido, que eu estava entre eles. Quem nunca foi enganado que levante a mão.)

À época, o Brasil encarava o declínio da sua mal-sucedida ditadura. A crise econômica corroía a popularidade do governo. A inflação atingia patamares nunca vistos. E ainda ia piorar muito.

Neste clube (do fracasso econômico) não nos faltava companhia. O Cone Sul era uma imensa ditadura endividada. Em 1979, quando o título chegou às livrarias, os brasileiros eram governados pelo famoso general "Me Esqueçam". Os argentinos pelo general Jorge Videla, os uruguaios por Juan Bordaberry, os chilenos pelo general Pinochet e os paraguaios pelo decano de todos, o general Alfredo Stroessner, que deu seu golpe em 1954 e só foi destronado, octagenário, em 1989.

Por um outro golpe militar, a propósito.

Naqueles tempos, além de tolhido pela censura, o mercado para a produção editorial histórica era pobre. Não perca de vista que, há meio século atrás, as ferramentas de pesquisa e de interação eram bem mais limitadas. Por aqui, no nosso caso específico em questão, a historiografia sobre a Guerra do Paraguai se restringia praticamente à versão oficial do governo.

Enquanto a ditadura - que perdera sua magra sustentação popular - se esfarelava, o livreto, que fazia do Brasil uma marionete de interesses imperialistas e do pequeno Paraguai um bólido tecnológico, furou a bolha, provocando furor e espasmos entre os eruditos e os universitários.

Como já disse, eu estava entre estes últimos aí e encampei, ingenuamente, as afirmações do jornalista. Sequer sabia que não eram inéditas - e sim mera cópia de uma antiga edição estrangeira.

O panfleto reproduzia as afirmações e crendices do argentino Leon Pomer, em seu "La Guerra del Paraguay: gran negocio!", publicado em Buenos Aires em 1968. Jamais editado em português, uma edição clandestina do texto chegou às mãos de Chiavenatto, que se apropriou do conteúdo. 

Descobri um exemplar original do livro de Pomer no sebo "Prazer em Compartilhar", de Conceição do Rio Verde, Minas. Apesar do "corte com amarelecimento e farta oxidação", o vendedor destaca que o "miolo íntegro oferece ótima legibilidade". Sai por R$ 88,88, mais o frete de R$ 20,39.

Sem chance. Mas fica o mapa das pedras, para quem se interessar. Pero no lo creo...

Na bibliografia da versão de Chiavenatto, à página 206, há a relação dos livros supostamente consultados pelo autor. A esmagadora maioria são obras contemporâneas e escritas em espanhol, por autores paraguaios ou argentinos. Ou seja, fontes carnavalescamente parciais.

(A Stroessner, o ditador paraguaio, convinha transformar um congênere seu, morto um século antes em uma guerra desproporcional, em herói. Ícones militares emprestam ares patrióticos às ditaduras.)

O jornalista brasileiro de Pitangueiras faz o serviço sujo para o meganha do Paraguai.

Vamos à leitura. O livro de Chiavenatto aborda a Guerra do Paraguai de forma acintosamente distorcida. Localiza no charco paraguaio dos oitocentos uma sociedade avançada, 100% alfabetizada, altamente industrializada e que desfrutava de justiça social plena.

Não há nada, porém, que fundamente suas "convicções" (a não ser vozes ocultas vindas da própria cabeça). Ele não apresenta nenhuma fonte de suas afirmações. Zero.

Mas, se não era esse jardim cor-de-rosa, que mundo era aquele? vamos por partes. A América do Sul era para o planeta o que o Acre é hoje para o Brasil. De boa, quem quer turistar ou investir no Acre? É um lugar perdido nos cafundós do judas. Sem boas fontes de receita. Sem acesso ao mar. Terra boa pra grilagem e bandidagem. Ocupada por brancos espertalhões e indígenas ignorantes.

Pois é. Se você, que é brasileiro, não se interessa pelo Acre, imagine a Inglaterra pelo Paraguai.

Chiavenatto relata que havia no Paraguai um Ditador Perpétuo, José Gaspar Rodriguez de Francia y Velazco (governou por um quarto de século, de 1814 a 1840). O autor credita ao ditador a criação do paraíso na terra.  El Supremo expulsara (ou exterminara) todos os ricos. Um pai severo para os indígenas, mantivera os pobres muito pobres e era amado por estes por ser pobre também.

"Francia criou as 'Estâncias da Pátria', onde os trabalhadores do campo produziam com o auxílio do Estado", exulta Chiavenatto, complementando que "podiam dispor da sua parte da produção como homens livres". A visão paradisíaca do autor, é bom que se diga, se encaixa no modelo do feudalismo medieval europeu.

(Segundo o Google e sua ferramenta de IA, no feudalismo da Idade Média a nobreza "detinha terras [feudos] e exercia controle sobre os servos que nela trabalhavam; a economia era predominantemente agrária e as relações sociais eram marcadas pela suserania e vassalagem".)

O pitangueirense achou o feudalismo paraguaio um sistema justo e inovador.

Diz o autor que "Francia precisa de dinheiro" e que "para conseguir riqueza e dinheiro Francia é implacável - elimina os representantes do poder econômico paraguaio". O ditador "cria um estado policial, numa ditadura perpétua peculiaríssima, para sustentar um governo popular".

"Popular"? Brincou. Mais uma vez temos o paradoxo, recorrente, dos que se dizem contrários a uma ditadura fazerem a apologia de uma outra ditadura. Como dizia o Millôr, "democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim"... 

(Passam garotos atrasados, suando em bicas em seus uniformes. Eu, daqui, já ouço os metais.)

A distorcida apologia de Francia não resiste a um exame superficial. Filho de um comerciante português que se casou com a filha de um oligarca local, Francia era o típico representante da elite que vociferava contra os privilégios da elite. Um Fernando Collor paraguaio, só que mais boçal.

Relendo o texto hoje, é inacreditável que tenha sido aceito seriamente pela comunidade acadêmica. Mas é fato que os acadêmicos também tinham sua agenda. Na maioria, eram vítimas da ditadura brasileira. Então, como o livro atacava Caxias ("patrono" do Exército brasileiro), indiretamente feria o status quo dos milicos locais. Foi o suficiente pra ser encampado pela intelligentsia.

Mas, afinal, em essência, o que afirma o livreto que eu estou debochadamente desancando?

O "Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", prega que o Paraguai era, em meados do século XIX, um oásis de produtividade, justiça social, educação e urbanidade - sob o comando de um déspota carniceiro que prendeu, torturou, despojou e matou a todos que não se subordinaram ao seu poder.

Na invencionice de Chiavenatto, a Inglaterra (o "Império onde o sol nunca se põe"), "assustada" com a ameaça que o ínfimo país representaria para seus interesses econômicos, financiou uma aliança entre Brasil, Argentina e Uruguai, para deter o meteórico crescimento paraguaio.

Que dizer? O cartapácio desse escritor interiorano é uma baboseira sem qualquer fundamentação histórica, documental ou factual. O autor é um oportunista que não foi devidamente desmascarado a seu tempo. E quem era esse autor?

Na sua "biografia" - que se resume a quatro parágrafos na última página da publicação - está escrito que "ele percorreu praticamente todos os países da América do Sul por terra, numa velha motocicleta, acreditando que é impossível escrever corretamente a história destes povos oprimidos sem um contato direto com a sua realidade".

O relato era a mimetização da narrativa de Che Guevara, ícone maior da juventude da época, que teria cruzado a América Latina numa motocicleta. Será mesmo? Tenho minhas dúvidas. Só consigo imaginar Chiavenatto na garupa de um ubermoto, indo na farmácia comprar o Biotônico Fontoura.

(O trânsito, desviado e represado pela parada militar, cria um insólito engarrafamento dominical.)

O que o autor nascido no interior paulista, em Pitangueiras, e criado em Ribeirão Preto, comete é uma fábula comunista de sinal invertido. Se em seu "A Revolução dos Bichos", de 1948, George Orwell demonstra a contradição entre prática e discurso do regime comunista, Chiavenatto, em 1979, com o comunismo já nos estertores, conta a sua estória da carochinha. Um conto de fadas.

Seu Robin Hood comandava a população autóctone na resistência ao invasor europeu. Uma monarquia decrépita, em conluio com a maior potência bélica, industrial, naval e comercial do planeta, se aliou aos países fronteiriços para estrangular, na nascente, o Reino da Justiça.

Só que não, né.

Julio José Chiavenatto sequer tenta contar a história da Guerra do Paraguai. Se limita a invectivar contra o Brasil, a idolatrar o antigo ditador paraguaio, Francia, e a demonizar os ingleses. O paraguaio é Chapeuzinho Vermelho e o Rei da Inglaterra é o lobo mau.

Por conta disso, ainda esse mês vou tentar resenhar aqui o "Maldita Guerra", de Francisco Diadorato, que fez uma viagem profunda aos arquivos dos países envolvidos e joga um holofote potente sobre o que foi, na verdade, a Guerra do Paraguai.

Este livreco do jornalista de Pitangueiras é um "Protocolo dos Sábios de Sião" - uma invencionice sem pé na cabeça (feita sabe-se lá a soldo de quem, não duvido de mais nada).

Aqui, por escrúpulo, desmontei a farsa. O Paraguai era um zero à esquerda, irrelevante. Não há nos registros da política inglesa do período uma citação ao paiseco. Fosse ele alvo de uma estratégia inglesa de sufocamento, haveria rastros na literatura. Nada em termos de atos do governo inglês poderia ser levado à frente sem passar pelo Parlamento inglês, a Câmara dos Comuns e a dos lordes.

Não sou politicamente correto. Então não tenho pudor em dizer que o Paraguai era tão importante para os ingleses como o Acre é para você...

E até mesmo aqui. Os paraguaios eram, no máximo, um furúnculo diplomático. Para o governo brasileiro, sua relevância era o curso navegável que levava do Sudeste a Cuiabá. Para sair da capital e chegar a Mato Grosso, o rio passava por um trecho de terras paraguaias. Fora isso, não havia porque desembarcar naquele matagal. Ninguém montaria uma frota para roubar umas vacas.

Já Solano Lopez, filho (?) de Carlos Antônio Lopes, sucessor de Francia, ansiava por acesso ao mar. A única alternativa viável era o cobiçado porto de Montevidéu. Uma guerra por um porto.

Na rocambolesca narrativa de Julio José Chiavenatto, Carlos e Solano são uma extensão dos ideais superiores do El Supremo. Como na caricatural (para nós, né) dinastia norte-coreana (os Kim: Il-sung, Jong-il e o atual, Jong-un), os Lopez são seres distintos ungidos por um poder celestial. Solano (o Jong-un paraguaio), que iniciou a guerra, é pintado como um santo e um herói.

O jornalista cita, mas desqualifica como tendenciosas, as afirmações de que Solano era um tirano carniceiro, que vivia como um nababo em um país miserável, que tinha Napoleão por ídolo e que, enquanto era um estudante ricaço na Europa, acabara enrabichado por uma prostituta irlandesa (com a qual se casou e trouxe para o Paraguai, e se tornou a mãe de seus filhos).

Vendo a si mesmo como um Napoleão de hospício reencarnado no charco, Solano imaginou reinar sobre a América do Sul, se aproveitando da divisão política entre os argentinos e da frouxidão brasileira, para selar uma aliança com a então liderança uruguaia e conquistar acesso ao mar.

(Estrondam os bumbos do "Trovão Imperial", no seu sedoso fardamento negro e dourado. É pacífico que nossa maior vocação militar sempre foram as bandas.)

Já os planos do tiranete belicoso deram com os burros n'água. Não faltaram ambição e ousadia, mas lhe faltou bestunto. Foram tantas as trapalhadas e decisões equivocadas, que, ao dar um passo maior que as pernas, o stubby-legged (como muitos livros estrangeiros o descrevem, pelas suas perninhas curtas) levou sua jovem nação a uma ruína catastrófica, com repercussões que se espraiam no século 21.

A estória trazida por "Genocídio americano: a Guerra do Paraguai", entretanto, reescreve de forma fantasiosa (e com aspirações ideológicas) o que na realidade se passou.

Procurei me informar sobre o que havia de melhor e mais consolidado na literatura sobre a Guerra do Paraguai, para corrigir a minha ignorância da adolescência e me inteirar um pouco mais, enfim, sobre o maior enfrentamento bélico da história do Brasil.

(Dez e meia da manhã. Passa um recruta, todo fardado, com um copo de cerveja na mão, papeando.)

Apesar do papel bisonho, nossa riqueza foi suficiente para vencer a guerra. Como? Já disse que aprendi uma coisa ou outra lendo "Maldita Guerra", do Doratioto. Lógico que vou falar dele aqui.

Há muito o livro de Chiavenatto caiu na obscuridade. Antes assim.

Editora Brasiliense, 207 páginas  |  23a edição  |  Copyright 1979

Obs.: Como você pode ver na capa, que reproduzi acima (é o meu exemplar mesmo), há uma tarja com os dizeres "O livro que mudou a história oficial do Brasil". Mudou nada. Mas, por alguns anos, confundiu.


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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