"A arte e a ciência de memorizar tudo", por Joshua Foer

sábado, julho 28, 2018 Sidney Puterman

Eu leio um livro, aí vou e escrevo sobre ele. Meu prazer. Tenho por critério, nesta hora, não ler nada do que foi escrito sobre o dito cujo. Meu combinado comigo mesmo é assim: do publicado pro rabiscado. Deixo as margens cheias de garranchos e faço um apanhadão depois. Se, ao invés disto, eu for ler as resenhas à disposição na rede, seria difícil me livrar delas, depois de tê-las lido; então, deixo de lado. Não leio também as resenhas comerciais, orelhas laudatórias, que existem só para elogiar - o que certamente não é meu compromisso, ainda que seja meu prazer. Mas, ocasionalmente, mesmo que tentando evitar, acabo que não mantenho a distância, porque tem vez que procuro na internet uma imagem diferente para ilustrar o post. Isto pode trazer surpresas. Este "A arte e a ciência de memorizar tudo" é um dos casos. Fuçando frames, descobri que o pálido e modorrento livrinho foi um verdadeiro best-seller no exterior. E também que deu origem a um sem-fim de eventos, palestras e apresentações (é fácil achar o autor palestrando sobre a obra no TED). Reconheço que trata-se de um livro inteligente, ainda que monocórdio, e que fala dessa coisa tão importante e indecifrável que é o cérebro. Ou uma parte dele, a parte que lembra coisas. O tema do livro são os campeonatos de memória e os atletas mentais - como eles chamam os sujeitos que se predispõem a gastar anos memorizando sequências aleatórias de cartas de baralho. Maçante. Ou curioso? A lenda do novo jornalismo Gay Talese talvez fizesse deste um assunto interessante; mas Joshua Foer certamente não é Gay Talese.  Por isso, as longas dissertações sobre a rotina de sujeitos inexpressivos é aborrecida. Não me empolguei. Li aos trancos e barrancos. Mas é inegável que tem seus méritos, bordeando a prosódia de milhares de obras de autoajuda. Porque, ao contar como os outros aperfeiçoam a própria memória, ele - em tese, não tentei ainda - nos ajuda a memorizar. Aliás, escrevendo a obra, resolveu ele próprio se tornar um competidor. Mimimi? Inverteu os fatores para adoçar o produto, isto é, resolveu se tornar um praticante e aí teve a ideia de escrever um livro, jornalista que era? Não interessa. O livro tem bons momentos, que certamente não são os inusitados campeonatos de decoreba elevada à vigésima potência. É que Joshua Foer escreveu um verdadeiro tratado a respeito da memória e como ela vem sendo utilizada pela humanidade nos últimos milênios. Legal. O autor demonstra, com riqueza de detalhes, como a memória já foi um recurso essencial para o conhecimento humano - lembrando que a maior parte do percurso da nossa civilização se deu sem o recurso da impressão. Pois é. Pior é que, nos primórdios do registro intelectual, os antigos rolos de pergaminho eram raros, frágeis e tão fáceis de consultar quanto o código civil brasileiro impresso em tiras quilométricas de papel higiênico. Pudera, o único ponto de acesso ao conteúdo era a primeira linha. Não tinha índice, porque não tinha página. Os livros tinham uma folha só, que, desenrolada, daria uma volta num campo de futebol. Ou no Coliseu. Mas isto seria pouco: nesta antiguidade, a técnica de escrita empregada não possuía pontuação, parágrafos ou sequer separação entre as palavras. Daí a relevância da arte da memória. Você tinha que memorizar o que estava ali, se quisesse acessar aquele conhecimento. Então monges e sábios decoravam o conteúdo escrito, e acessavam o próprio cérebro para repassar a informação armazenada. Maneiro. Grandes nomes do passado e do presente são apresentados a um leitor ignorante (eu) e titãs contemporâneos do esporte mental são entrevistados, com seus feitos relacionados. As estórias, referências e reportagens que recheiam a obra dão um sem número de voltas em torno do tal "palácio da memória": uma mansão edificada mentalmente onde os aposentos imaginários guardam os itens reais que você precisa lembrar. Preciso tentar isso. Embora eu provavelmente vá gaguejar caso você me pergunte de sopetão se o livro é bom, tendo tempo para pensar posso responder mais elegantemente que ele tem suas curiosidades. Como o paradoxo de Baker. As descobertas de Tony Buzan. O Rethorica Ad Herennium de Simônides. Giulio Camillo, conhecido como O Divino Camillo por seus admiradores e por O Charlatão por seus detratores (alguma semelhança com nossas personalidades contemporâneas?). Giordano Bruno, cuja biografia (e suas outras vidas) já foram assunto aqui neste blog, na obra de Hermínio Miranda, "Guerrilheiros da intolerância". Ramon Llull, o palindrômico. Alphonse Loisette, o afamado médico da memória do século XIX e guru do escritor americano Mark Twain, que era tão ou mais obcecado pelos prodígios do cérebro do que milhões de crianças foram por seus personagens Tow Sawyer e Huckleberry Finn (eu era fissuradão nos livros de Twain, atravessei o Mississipi com Tom e Huck). Atente que o título da edição brasileira, na original, é subtítulo; e que nos EUA o título é o sugestivo "Moonwalking with Einstein". O inusitado não é apenas uma jogada de marketing da editora; é, acima de tudo, a essência do que o autor oferece. Porque no palácio da memória referido acima o cidadão grava as informações se valendo de combinações mentais com figuras fazendo ações cômicas e absurdas, como o físico Einstein dançando no estilo de Michael Jackson, e outras associações tão impublicáveis que ele mesmo não publica. Fala do lifelogging, de malucos que resolveram abrir mão de toda a memória escrita e passaram a registrar todo o seu dia - as vinte e quatro horas de cada dia do ano, ano após ano - em uma câmera pendurada no pescoço: café da manhã, banheiro, reuniões, filmes na TV, filas de elevador, etc. Fala dos savants, termo que denomina sujeitos com uma memória prodigiosa - quando eu falo prodigiosa, quero dizer decorar 15 páginas de uma lista telefônica em dez minutos -, mas que nasceram assim, ou seja, não treinam para isso (como fazem os atletas mentais com suas técnicas sofisticadas). Um deles, e talvez o savant mais famoso do planeta, Kim Peek (mundialmente conhecido na pele de Dustin Hoffman como Rain Man), reuniu um conhecimento memorizado equivalente a centenas de enciclopédias, apenas por ter dado uma rápida passada de olhos em cada página. Para tudo o mais que não fosse o espetáculo da memória, Peek, que morreu há pouco, era um absoluto idiota. É impossível que isto não nos leve a refletir sobre que disfunção mental é esta que gera pessoas com superpoderes mnemônicos, por um lado, e uma severa atrofia intelectual, por outro (me parece que o desajuste revela a capacidade normal do cérebro humano em registrar informação, se ele tivesse "autorização" para usar todo este potencial; se não a tem, é porque talvez não tenha o equilíbrio necessário para fazer uso de tal poder). Fora todas as elocubrações que poderíamos fazer com a artilharia mental proporcionada por esta memória sobrehumana, ouso a analogia de que memória não é capacidade de processamento - e sim informação decodificada, catalogada e armazenada. Para efeitos práticos, nem sempre é funcional. Foer diz que todo o processo de aprender a memorizar milhares de números em sequência não o ajudou sequer uma vez a lembrá-lo onde diabos esqueceu as chaves de casa.

Nova Fronteira, 310 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

4 comentários:

  1. Vc tem esse livro pra vender? Estou bem interessado nele e não encontrei pra comprar

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  2. Opa, Amir! Rapaz, fui cheio de confiança te passar os links de onde pensei que você iria achá-lo... e nada! Nem no site da Estante Virtual, que congrega sebos do Brasil inteiro. Achei só um exemplar no Mercado Livre, a R$ 399,00, o que é um deboche. Se eu souber que voltou à venda, lhe falo. Abração.

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  3. Como o livro está esgotado e diante dos preços abusivos cobrados nos sebos e ML, segue o link de um PDF, para quem quiser dar uma olhada: https://b-ok.lat/book/5499018/abf294

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