"Somos todos Carlito", por Rafael Casé

domingo, agosto 26, 2018 Sidney Puterman

No livro dedicado a Carlito Rocha, peço licença ao próprio - para dizer que, na leitura das suas mais de duas centenas de páginas, a insuperável emoção foi ser transportado para a arquibancada de General Severiano, 70 anos atrás. Ler "Carlito" foi como assistir in loco o Botafogo ganhar do Vasco e conquistar o Campeonato Carioca de 1948. Ô sensação. Era uma dolorosa fila de já 13 anos (e olha que de fila eu entendo, esperei 21 anos pelo título de 89 e conheço seu gosto azedo). Pois no penúltimo capítulo deste seu mais recente livro, Rafael Casé se esmera na descrição dos preparativos, do disse-me-disse e dos lances da decisão do Carioca de 48. Como se ela acontecesse hoje. Com tal vividez, que eu quase pulei nos gols. Mas não foi só a vitória final sobre o afamado Expresso da Vitória que este pesquisador dedicado me proporcionou reviver. Ele conta o jogo-a-jogo do campeonato. Fala de um Botafogo desacreditado, alvo da zombaria dos demais torcedores ("penta-vice"), que estreia em casa tomando de 4x0 do São Cristóvão e que havia vendido Heleno, seu ídolo e principal jogador. E fica claro que falar deste título improvável era sim a melhor forma de revelar quem foi Carlito Rocha. Sem ter a pretensão de classificar a obra como uma biografia - tanto que o subtítulo, "Histórias, crendices e superstições de um homem que amava o Botafogo", já o isenta do compromisso -, Casé ziguezagueia na ordem cronológica para nos exibir um Carlito Rocha muito além do supersticioso dirigente que conduziu o alvinegro ao título de 48: nos concede ver que Carlito foi, definitivamente, um dos maiores nomes da história do clube da Estrela Solitária. Seu passado de esportista, como jogador de pólo aquático, remador campeão, zagueiro e atacante do Botafogo, fala de um Carlito atleta que eu não conhecia. Seu histórico como juiz respeitado - e requisitado - atesta seu caráter. Sua atuação como dirigente nacional expande sua dimensão de estrela alvinegra, tendo sido ele o principal responsável pela ida da Seleção Brasileira à Copa de 1934 (não fosse ele, o dístico de "única seleção presente em todas as Copas" não pertenceria ao Brasil, nem a ninguém). Concorrente derrotado à presidência da CBD em 1958 (vencida pelo belga tricolor Jean-Marie Havelange, que depois roubaria, literalmente, o mundo), foi ao próprio presidente da República, Ernesto Geisel, pedir pelo Botafogo, no fim dos anos 70, ameaçado que estava o clube de perder a sede: "Para mim só existem duas coisas que realmente importam, o Brasil e o Botafogo. Ou melhor, o Botafogo e o Brasil." Quase deu certo. A gestão Borer vendeu General Severiano para a Vale e transferiu o Botafogo para Marechal Hermes. A sede, entretanto, foi tombada pelo Patrimônio Histórico Nacional. A Vale comprou - por meros 10 milhões de dólares -, mas não levou. O tombamento fez com que, mais de uma década depois, o negócio fosse desfeito e o Botafogo voltasse à General Severiano. (Eu também tive uma pontinha do estádio. Ainda nos anos 70, menino de 14 anos, assisti a um treino do time no campo lendário e, quando acabaram as atividades, fiquei circulando pelo clube, fascinado. De repente, corta minha frente o lateral-esquerdo Marinho Chagas, eleito o melhor da Copa do Mundo, e entra em seu Dodge Dart amarelo, conversível, estacionado dentro da sede. Vira a chave três vezes e não consegue fazer o carro pegar. Então ele pede ajuda a mim e a um amigo meu flamenguista, que olhávamos, estáticos e embasbacados, o ídolo. Empurramos, o carro pegou, Marinho agradeceu amistosamente com um aceno com as costas da mão e sumiu na Lauro Sodré. O saudoso Bruxa me deixou esta estória.) Mas voltemos à paixão que importa aqui, a de Carlito. Certa vez, como eu, ele assistia os preparativos do time e, como conta Casé, "um funcionário chegou esbaforido: 'Seu Carlito, seu Carlito. Ligaram de Petrópolis, sua fábrica está pegando fogo.' Sem desviar os olhos da bola, Carlito, muito calmamente, respondeu: "Manda esperarem um pouco, meu filho, porque o treino já vai acabar e resolvo isso." Noutra feita, já agastado com a teima dos jogadores em escapulirem após o treino para jogar, disse que ia rebatizar o BFR como Botafogo de Futebol e Roleta. Ou na data em que definiu como um dos seus dias mais felizes, 12 de outubro de 1931, quando o Cristo Redentor foi inaugurado no Corcovado: de braços abertos para o campo do Botafogo. Na véspera do título de 57, um 6x2 em cima do Fluminense, a frase bíblica do carola Carlito ganhou as manchetes: "Eu vi o dedo de Deus apontando o Botafogo". Premonitório. O jogo valeu uma crônica de Nelson Rodrigues dedicada ao dirigente alvinegro: "Carlito ligou o jogo ao sobrenatural, pôs Deus ao lado do Botafogo e, mais do que isso, pôs Deus contra o Fluminense. (...) ninguém acreditou nem em Carlito, nem na visão, nem mesmo em Deus. (...) Um amigo, pó-de-arroz como eu, veio perguntar-me: 'Viste o Deus de Carlito?' Eu não tinha visto, mas as palavras do meu amigo ficaram ressoantes em mim. 'Deus de Carlito'. E, subitamente, eu compreendi o seguinte; não há um Deus geral (...) O que existe é o Deus de cada um, um Deus de Carlito, um Deus do leitor, um Deus meu e assim por diante. (...) Como não gostar do Deus do velho Rocha? Deus tão cordial, íntimo, terno, que se incorporou à torcida botafoguense e viveu com a torcida botafoguense aqueles eternos 90 minutos." Para os tricolores, deve ter sido eterno, mesmo. Tomar uma sapecada de 6x2 na decisão é duro. O livro, o sétimo de Casé, conta também que Paraguaio, um dos craques do título de 48, foi o primeiro jogador a vestir a mítica camisa 7 do Botafogo (até então não havia numeração). Que uma das festas do título se deu na rádio Mayrink Veiga, quando Lamartine Babo, que havia composto o hino do clube três anos antes, regeu, emocionado, um coro de milhares de vozes a cantar "Tu és o Glorioso, não podes perder, perder pra ninguém". Ô glória. Não posso deixar de mencionar o tocante capítulo que narra a amizade de Heleno e Carlito, que se viram pela primeira vez na praia, com Heleno aos 15 anos, e pela última vez em Barbacena, no hospício em que Heleno morreria. E se o livro não pode ser chamado de uma biografia do Carlito Rocha, acho que pode ter um capítulo justamente denominado como a "Biografia do Biriba". Casé trouxe a vida do pequeno Joá do terreno da troça para a magia. Você é botafoguense e não sabe quem é o pequeno Joá? Então, vá ler o livro. Eu, por mim, ficaria lendo o livro em looping. Podia lê-lo toda semana. Estar sendo derrotado pelo Flamengo por 3x1, sendo eliminado da disputa do título às vésperas do jogo final, e virar para 5x3? Ô benção. A epopeia botafoguense é a mitologia grega de chuteiras. Exuberante, com seus deuses de carne e osso, não me cansa jamais. Súdito reverente, conduzo agora esta lombada para o meu Olimpo particular, minha biblioteca alvinegra. Ela é pródiga em autores e em personagens. Carlito se sentirá em casa, ops, em General, na companhia de Garrincha, Nilton, Heleno, Didi, Quarentinha e Saldanha. E Casé na de Ruy Castro, Sergio Augusto, PC Guimarães, Roberto Porto, Iki Siqueira, Eduardo Neves e tantos mais. E, por que não dizer, na minha também. Não posso esconder - pelo menos, não quero - que ainda tive o direito à cereja (negra, não vermelha) do bolo, ao saber de algumas coincidências que me fizeram passear pelo história de Carlito Rocha: ele, petropolitano, nasceu e morava no número 34 da Rua do Imperador, em Petrópolis, ao lado da Igreja do Rosário, onde, devoto, ia sempre. Nesta mesma igreja, eu, gurizote carioca emigrado, cursei os meses iniciais do meu segundo ano primário, descendo todos os dias a Rua do Imperador e passando pela porta do tal 34. Mas já não havia Carlito, ali, porque nesta época, ele morava em Copacabana, na rua Júlio de Castilhos. E esta era justo a rua de onde eu tinha vindo, Rua Júlio de Castilhos, e mais, nela eu morava no número 34!!! Este era meu endereço quando nasci (chegado da maternidade, que ficava em... Botafogo), em 1961 - ano de título! Coincidências com o eterno símbolo alvinegro que me fazem sorrir, feliz. Esta noite, a propósito, durmi pra lá de feliz. O Botafogo, campeão carioca de 2018 - setenta anos depois do título de 48! -, venceu o rubro-negro Sport no Nilton Santos, por 2x0, gols de Carli e Aguirre. Se você me perguntar por que uma vitória mixuruca me faria dormir feliz, eu lhe diria: qualquer vitória do Botafogo me faz dormir feliz. Por isso, mesmo tão distantes, eu, Carlito e milhões de botafoguenses somos sempre próximos. Dormimos felizes demais por um mesmo motivo bobo. Pros outros...

Editora Gryphus, 241 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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