"A retirada da Laguna", por Alfredo D Escragnolle Taunay

segunda-feira, julho 28, 2025 Sidney Puterman


Em dezembro de 1864 o exército paraguaio invadiu o que é hoje o estado brasileiro de Mato Grosso, dando início ao evento denominado de "A Guerra do Paraguai". O objetivo tático do invasor era o ganho territorial - e o estratégico, o controle da navegação do rio Paraguai.

Era um ataque diversionista. O verdadeiro teatro de guerra eleito por Solano López, presidente paraguaio, era mais ao sul. Dois meses depois, o Paraguai invadiria a província argentina de Corrientes. Em junho, toma a cidade brasileira de São Borja. Em agosto, ocupa Uruguaiana.

Assim tem início a Guerra do Paraguai. O confronto, um divisor de águas na história do Império, demorou mais de um século para receber um estudo à altura da sua importância. Afora a literatura produzida pelo próprio exército brasileiro, entretanto, pouco se pesquisou e escreveu.

Somente quando uma psicodélica análise pró-Paraguai foi lançada aqui, no fim dos anos 70, o assunto voltou à baila. A obra, sem fundamentação histórica, exaltava o Paraguai e descia a lenha no Brasil, na Argentina e na Inglaterra. Como estávamos sob uma ditadura militar já amolecida, com os generais há quinze anos no poder, o texto - que atacava o exército brasileiro - vinha bem a calhar.

Fez sua espuma e depois caiu no esquecimento. O Paraguai era a terra da muamba e ninguém estava realmente interessado no que ele havia sido (ou não) um dia. Ficou no vácuo.

Demoraria ainda duas décadas para que uma contextualização histórica embasada viesse preencher essa lacuna no estudo da História do Brasil. "Maldita Guerra", de Francisco Doratioto, aborda a intrincada política no Prata do período, faz uma minuciosa cronologia da guerra sob a ótica das nações envolvidas e decupa também os seus desdobramentos.

Apoiado em sólida e extensa documentação, Doratioto refutou as afirmações de "La Guerra del Paraguay: gran negocio!", do argentino Leon Pomer. Estas mesmas ideias tinham sido replicadas em "Genocídio americano" de Julio Chiavenatto, editado no Brasil dez anos depois.

Doratioto se valeu das pesquisas nos recém-abertos arquivos diplomáticos dos países envolvidos e também das memórias escritas no durante e no pós-guerra, entre os quais desponta este "A retirada da Laguna", de Alfredo D'Escragnolle Taunay, publicado em 1868 (ainda com a guerra em curso).

Com os três livros em mãos, aproveitei o frio mês de julho em Petrópolis para me aventurar um pouco no assunto. Li o sóbrio trabalho de Doratioto, a alegoria ideológica de Chiavenatto e o doloroso diário de guerra de Taunay - tio-bisavô do Dionísio, meu antigo parça de peladas na Lagoa.

Taunay, diferentemente dos outros autores que citei, não escreve sobre as implicações da guerra e o contencioso político do Império na bacia do Prata. Biografa um episódio - a sua frente. A brava retirada da coluna militar brasileira que marchou de São Paulo ao Paraguai.

Acho melhor eu dar uma situada. Estávamos no início da segunda metade do século 19. Mato Grosso era uma província remota e de difícil contato com a capital do Império, o Rio de Janeiro. Quando o Paraguai nos invadiu, até que a notícia da incursão paraguaia chegasse ao governo, e que um protótipo de exército fosse organizado para defender o país, levaram-se três longos meses.

Não era uma tarefa fácil. O Brasil não possuía um exército regular extenso e bem treinado. O que havia era uma guarda nacional, incapaz de dar conta do serviço. Nosso maior poder disuasório era a Marinha - mas construída para o mar aberto. Não era preparada para uma guerra fluvial.

Urgia uma resposta, porém. Diante da invasão, alguma atitude o governo brasileiro tinha que tomar.

Aos trancos e barrancos, somente em abril de 1865 saímos do lugar. Um batalhão com 568 soldados partiu de São Paulo. Chegam a Campinas e ficam lá por dois meses. Em julho se estabelecem em Uberaba, onde se unem aos 1.212 homens da Brigada de Ouro Preto. Permanecem na cidade por um mês e meio. A coluna era um desafio operacional. Difícil manter a coesão, praticar a ordem e alimentar o povo. O número de desertores chega a uma centena.

Apenas em setembro de 1865 a força brasileira parte rumo à Cuiabá, somando 1.575 homens e 200 mulheres (que acompanhavam os soldados). Em dezembro, um ano depois da invasão do Mato Grosso pelos paraguaios, chegam a Coxim, a 560 quilômetros de Corumbá.

O grupo foi encorpado por destacamentos goianos e somava agora mais de dois mil homens. Ficam em Coxim por seis meses, até junho de 1866. Marcham por três meses e, em setembro, atingem a vila de Miranda. Um terço dos homens morrera. Somente em janeiro de 1867 retomarão o avanço.

"Dois anos quase haviam decorrido desde a nossa partida do Rio de Janeiro", escreve Taunay. "Lentamente descrevêramos imenso circuito de dois mil cento e doze quilômetros. E já um terço da nossa gente perecera".

As doenças tropicais e suas febres dizimaram a coluna: a varíola e o béri-béri.

No dia 11 de janeiro partem para Nioaque, marchando 210 quilômetros. Lá chegam com 1.300 homens. A coluna prossegue e, na primeira semana de março, alcançam a antiga colônia militar de Miranda. É quando a narrativa de Taunay encorpa e se torna mais substanciosa.

Certamente por escrever sobre o assunto mais repercutido da sua geração, o autor não se deu ao trabalho de contextualizar os acontecimentos prévios. Eram de domínio público e ele não gastou mais do que algumas linhas com isso. A guerra contra o Paraguai já completava dois anos.

E o confronto real, à vera, se desenrolava longe dali, em outro cenário, do qual chegavam apenas notícias esparsas e remotas. Enquanto isso, as forças brasileiras das quais Taunay fazia parte jogavam a série B do confronto nos pântanos do Mato Grosso.

Ali o exército paraguaio havia arrasado as principais cidades e vilarejos brasileiros. Roubaram, estupraram, sequestraram e queimaram. Só restaram ruínas. À chegada da coluna brasileira, os invasores recuaram e ficaram à espreita. Esta seria a tônica do enfrentamento.

O exército brasileiro foi atrás das forças de Solano Lopez, que se retiraram com estudada lentidão.

A perseguição brasileira aos paraguaios foi, desde o princípio, assim: um jogo de gato e rato. Nossas forças eram maiores em número e com uma artilharia poderosa; os invasores eram em menor número e maltrapilhos, mas eram nativos da região e tinham a cavalaria que não tínhamos.

(Nos faltavam cavalos, porque os que no princípio tivéramos morreram ou foram comidos.)

Com base na desproporção de forças e na missão de dar combate ao invasor, um Exército brasileiro despreparado, hesitante e com uma liderança frágil resolveu ir atrás dos fugitivos até o Paraguai. Má idéia. Os brasileiros não tinham linha de suprimento, estratégia, conhecimento ou disposição.

Alfredo D'Escragnolle Taunay, que nos conta esta aventura, era oficial do Exército brasileiro e integrava o Corpo de Engenheiros da expedição. Embora ele em momento algum se posicione como agente dos acontecimentos ou relate suas experiências pessoais (o que fez ou deixou de fazer, se teve frio ou fome etc), ele foi testemunha viva de tudo o que aconteceu na retirada da Laguna.

Sempre disposto a enaltecer a coragem e a dignidade dos nossos oficiais, dos nossos soldados e do nosso povo (a abordagem ufanista era uma praxe, à época, ainda mais em um período de guerra), o autor evita críticas claras e diretas aos comandantes. Mas é possível lê-las nas entrelinhas.

Porque, para quem sabe ler, pingo é letra. Muitas vezes, até de forma mais ostensiva, ele criticou o comando por não tomar as decisões na hora certa ou em hora nenhuma - fosse pelo excesso de cautela, por tibieza ou por ignorância. Reclamou também pelo chefe se deixar liderar por gente local.

Em miúdos, demoramos demais para chegar; quando chegamos, não estávamos à altura da tarefa; mesmo assim, avançamos na tática arame liso (cerca, mas não machuca); e, ao entrar no país alheio, caiu a ficha de que não tínhamos o que fazer lá.

Em seu relato histórico, Taunay esmiuça como um grupo despreparado, exaurido e faminto de homens, chegado a terra inóspita e estrangeira, não vê outra alternativa senão voltar. A partir daí, enfrenta a via-crucis do retorno - nas piores condições possíveis e sob constante fogo inimigo.

Esta é a "retirada da Laguna". Os brasileiros chegaram, enfim, ao território paraguaio, após dois anos de marcha, e perceberam que não eram capazes de nada, sequer de sobreviver no terreno hostil. Nada restava senão dar a ordem para o clássico meia-volta, volver. Mas voltar não seria simples.

A descrição que Taunay faz da retirada é minuciosa. Para que tenhamos uma ideia, vou reproduzir alguns trechos do seu diário destes trinta e cinco dias infernais. Com a tropa sem ter o que comer. Com os paraguaios emboscando os brasileiros em um terreno do qual era íntimos. Astutos, colocavam fogo no mato, no intuito de cercar e queimar vivo o Exército Imperial.

"Imensas línguas de fogo nos lambiam, ora alçando-se aos céus, ora deprimidas pelas correntes de ar variáveis e rápidas, que as impeliam, silvando furiosamente por cima de nossas cabeças", descreve. "Vários homens sofreram queimaduras profundas e um até caiu morto, asfixiado".

Os alagadiços e os rios, obstáculos naturais, eram súbito engordados pelas chuvas. O avanço se tornava inviável e não havia como se proteger do aguaceiro. As noites eram úmidas e geladas. 

"Quase diariamente sucedia que o sol, fraco de manhã, após as noites glaciais, tornava-se depois escaldante", relata Taunay. "Neste mesmo dia, proveio cedo novo dilúvio, que transformou em furiosa torrente um ribeirão já por si volumoso, e nos forçara a uma terceira parada, tão cruel quanto as precedentes. Morríamos de frio e estávamos a jejuar". 

Os homens não tinham com o que se alimentarem, exceto com as migalhas de uma cota de ração insuficiente e com o abate do gado esquálido e esfalfado que os acompanhava. 

"Ia matar-se um boi estafado, quase agonizante. Formara-se um círculo em torno do animal; cada qual mais ansioso esperando o jacto do sangue; uns para o receberem num vaso e o levarem, outros para o beberem ali mesmo", testemunhou o escritor.

"Chegado o momento, atiraram-se todos a ele", continua. "Mal tinha o magarefe tempo de cortar a rês; era quase necessário arrancar às mãos dos soldados os nacos. Os resíduos, as vísceras, até o couro, tudo se despedaçava ali mesmo e era logo devorado mal assado ou cozido".

O inimigo não eram somente os paraguaios, o fogo, o frio e a fome. A tropa lutava contra os homens e contra a peste: um surto de cólera matou mais de uma centena e fez com que dezenas tivessem que ser carregados. Pior: o desespero chegou a tal ponto que os doentes foram abandonados.

"Por mais silenciosos e tristes houvessem sido os preparativos, não foi sem gritos e ruídos estranhos ao ouvido e cuja causa assombrava o espírito, que chegou o momento do abandono", narra o oficial. "A todos nós foi intolerável. Deixávamos entregues ao inimigo mais de cento e trinta coléricos".

A coluna brasileira era então uma enorme tropa de zumbis, apáticos, tentando voltar pelo meio do mato, atravessando rios, desaparecendo afogados e tendo que puxar canhões na sua retirada. Não era por masoquismo: a artilharia era a única proteção contra o inimigo. Deixá-la para trás era, também, doar seu poder de fogo para os perseguidores.

Que, aliás, estavam sempre nos calcanhares da coluna. As escaramuças eram constantes. Os paraguaios atacavam a retaguarda ou qualquer grupo que desgarrasse do corpo principal. Capturados, os brasileiros eram torturados, sangrados e degolados. Tentando evitar as emboscadas fatais, a tropa se perdeu e demorou a retomar a direção da volta.

Ao conseguirem enfim retornar à Nioaque, encontraram uma cidade-fantasma, com mortos insepultos pelas ruas. A antiga cidade era um amontoado de destroços, à exceção da igreja. 

"Aqui e acolá jaziam muitos cadáveres, todos de brasileiros. Constatamos que muitos dentre estes infelizes mortos haviam servido em nossas fileiras", reconhece o oficial. Eram soldados que haviam se separado da tropa por conta própria. "Desertando por ocasião do exacerbamento de nossas misérias, e morrendo de fome pelas matas".

Os paraguaios, não conseguindo cortar a retirada brasileira, se anteciparam para chegar antes à Nioaque, para arrasar o que restava da cidade. Mataram todos os que, desavisados, pensavam estar seguros no vilarejo abandonado - desertores, idosos e inválidos.

"Fora um deles, de pés e mãos amarrados, sangrado como um porco", conta. "Jazia outro, crivado de feridas, e uma velha, estirada a seu lado, de goela aberta e seios decepados, nadava no próprio sangue". A cidade brasileira de Nioaque era toda ela um cemitério.

Após a carnificina, os inimigos partiram. Mas cuidaram de deixar uma surpresinha de despedida.

"Tudo haviam saqueado e queimado, salvo a igreja, poupada não por espírito religioso, mas, pelo contrário, com o fito de a utilizarem num ardil infernal". O escritor detalha a armadilha paraguaia: esconderam um barril de pólvora com rastilhos, sabendo que os brasileiros utilizariam a igreja - único imóvel ainda de pé - como abrigo. O estratagema diabólico funcionou. 

"Para melhor nos enganarem haviam os paraguaios espalhado a pólvora sóbria e desigualmente seca com o minucioso cuidado e os cálculos ardilosos do selvagem que prepara os seus malefícios", diz. "Deu-se a explosão. Pouco faltou para que todo o edifício voasse aos ares. Da igreja saíam, dentre turbilhões de fumo, irreconhecíveis formas, fantasmas enegrecidos e avermelhados pelo fogo". 

A descrição deste epílogo da retirada abala o mais frio dos leitores.

"Ardiam uns com as roupas em chamas, outros completamente nus e cuja pele pendia em frangalhos, soltavam urros; alguns ainda rodopiando como alucinados já se debatiam nas angústias da agonia", prossegue o autor. "Um sargento, cujas carnes se achavam inteiramente desnudadas, implorava, por misericórdia, que o acabassem com uma bala ou um pontaço".

Assim terminou a retirada da Laguna. Sem conquista ou glória que não fosse o próprio fato da sobrevivência. A historiografia oficial representou-a como um episódio heroico. A leitura do livro, entretanto, nos revela um desempenho melancólico e um sacríficio desnecessário.

Isto posto, salvo as dificuldades naturais trazidas pela linguagem da época, às vezes demasiado formal e pomposa, a narrativa é potente. Taunay contribui decisivamente para entendermos este conflito isolado. Se a retirada em si se deu na periferia do confronto e não teve influência no contexto da guerra, sua obra permanece um relato fundamental para a compreensão do evento.

Edições Melhoramentos, 256 páginas  |  12a edição, 1942  |  Tradução  Afonso D'Escragnolle Taunay

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: