"A caixa-preta", por Amós Oz

sexta-feira, julho 07, 2023 Sidney Puterman


O romance do aclamado escritor israelense Amós Oz, lançado em 1987, parte de uma estrutura narrativa original. É um livro sem narrador e sem diálogos. É composto apenas por uma sucessão de correspondências, trocadas entre os quatro protagonistas (Ilana, Alec, Sommo e Boaz) e mais meia-dúzia de personagens, que orbitam ao seu redor.

Eu já havia lido outros títulos de Oz - "Entre amigos" (que narra a convivência dos habitantes de um kibbutz) e "Como curar um fanático" (sobre o extremismo religioso), ambos resenhados aqui no blog. Não à toa me interessei por outros livros do israelense. Me agrada o seu ponto-de-vista ponderado, frente ao tenso compartilhamento do território palestino entre árabes e judeus.

Oz se vale dos seus personagens para humanizar e vocalizar o conflito (que, agora, vive novas ondas de violência e volta a sobressaltar o Oriente Médio, com a tenebrosa aliança entre o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e a extrema-direita). Esta vocalização era, confesso, a isca que me atraía para os seus livros. 

O que procedia, a propósito. Exemplifico. Em muitos momentos ele destaca o preconceito que divide os dois povos. Como na passagem em que um sionista extremado questiona um rapaz judeu, ignorante e violento: "O que é você? Diga-me. Um árabe? Um cavalo?" 

Mais à frente, tira proveito do mesmo personagem para evidenciar a postura da população judaica mais radical contra um dos nomes históricos da política israelense:

"Yitzhak Rabin, na opinião dele, não é um primeiro-ministro judeu, mas  um general americano que por acaso fala um pouco de hebraico truncado e está vendendo o país a Tio Sam", diz o sionista. "Novamente os gentios nos dominam e nós nos aviltamos diante deles".

Lembrando que Yitzhak Rabin - hoje considerado um dos principais condutores de uma política conciliatória judaico-palestina - viria a ser tragicamente assassinado por um extremista judeu, em uma aparição pública (crime que aconteceu oito anos após o lançamento do livro).

O autor, a seu modo, enaltece o ímpeto judaico, quando seu personagem critica, elogiando: "Os judeus construíram um país. Não é um país correto, mas construíram! É completamente torto, mas eles construíram! Sem Deus - mas construíram! Agora vamos esperar o que Deus diz disso".

Faz uma previsão furada, ao comentar "sobre o modo como os exércitos árabes derrotarão Israel na década de 90". Nós, trinta anos depois, sabemos que isso não aconteceu. Pelo contrário - política e militarmente Israel ganhou peso e musculatura no cenário global.

Oz, por várias vezes, mete árabes e judeus no mesmo balaio. Aqui ele se vale de Boaz, o adolescente tosco e idealista, que discorre sobre o pai, a mãe e seu segundo marido:

"Nenhum dos três sabe o que significa realmente viver, inclusive aquele santo Michael com a turma dele dos territórios", diz à mãe, se referindo ao atual marido. "Vivem da Torá, vivem de política, vivem dos discursos e dos debates em vez de viver da vida. É a mesma coisa com os árabes. Eles aprenderam com os judeus como comer a si próprios e a comer um ao outro e a comer gente em vez de comer comida normal. Não digo que os árabes não sejam filhos da puta. Eles são, são até piores. Mas e daí? Filhos da puta também são gente. Não lixo. É uma pena que morram. No fim os judeus vão acabar com eles ou eles vão acabar com os judeus ou então um vai acabar com o outro e de novo não vai ter mais nada neste país a não ser a Torá e o Corão e raposas e ruínas incendiadas".

Apesar do texto agressivo, a mensagem é cordial. Do tipo "se árabes e judeus não arrumarem um jeito de se acertar, vão todos se estrepar". Creio que a ideia dele era essa.

Falando do romance, seu início apresenta os protagonistas debatendo sobre o filho (até então não reconhecido pelo pai), Boaz. Crescido um adolescente problema, o filho rejeita os pais. Michael Sommo, um professor sionista e segundo marido de Ilana, é quem consegue domar o moleque.

Manfred Zacheim é o advogado de Alec Guideon e um leva-e-traz entre seu cliente e o núcleo familiar da ex-esposa. Já Alec Guideon é um escritor internacionalmente respeitado, e que herdou a fortuna do pai, interditado em um asilo.

Com base nesta espinha dorsal, o roteiro se desenrola, com a trama avançando lentamente, enquanto o perfil psicológico dos personagens nos é apresentado. As cartas são chumbo trocado. Acusatórias, reivindicatórias. Um barraco postal.

Passadas algumas dezenas de páginas, porém, a fórmula perde fôlego. As cartas são longas e prolixas. O formato acaba cedendo - diálogos, pretensamente memorizados pelos missivistas, são reproduzidos ipsis literis, o que frauda o propósito original

Quanto mais o livro avança, mais a originalidade rascunhada na primeira parte do livro é engolida pelo estilo sentimentalóide do autor, que gosta de uma sucessão de reminiscências piegas e frugais. Gasta páginas e páginas enumerando tolices da convivência banal à guisa de mostrar como, por trás da rispidez das cartas, os personagens são humanos e se amam. Me enjoa.

O romance mal resolvido entre Alec e Ilana é chato, verborrágico. O não reconhecimento do filho seguido do súbito amor desmedido do pai pelo filho é chato, demasiado. As picuinhas entre os personagens se repetem, de forma estereotipada.

Ou seja, é uma mistura de "O povo na TV" com comercial de margarina.

Pior ainda é que, quanto mais o texto avança, mais as cartas encorpam (houve uma que tomou vinte e três páginas!) e menos há diferenciação entre elas - à medida em que se estendem, parecem todas escritas pela mesma pessoa. Ok, Pedro Bó. São, né. O autor é um só. A ideia, porém, era serem personalidades diferentes, que se expressassem de forma distinta.

Você pode entender minhas opiniões como uma crítica pesada. Ou dizer que tenho pouca paciência para o lirismo. Pode ser. Mas minhas expectativas para este título eram maiores.

Certa vez, notando um livro que eu lia, uma mulher me abordou. Pelo título do livro, ela pressupôs um tema que não tinha nada a ver com o conteúdo em si. Expliquei, mas ela não gostou da resposta e me perguntou: "Então, por que o livro tem esse título?"

Pensei e respondi: "sei lá". Ela me olhou com desdém, como se eu fosse analfabeto. Confesso que eu nunca tinha achado importante saber porque este ou aquele livro tem o nome x ou y. Sempre achei que era que nem nome de cachorro. O dono dá o nome que quer e pronto.

Mas a dona me traumatizou. Então adianto logo: em uma das cartas trocadas, a personagem mulher Ilana diz que o personagem homem Alec falou certa vez: "Como depois de um desastre de avião, deciframos juntos, por correspondência, a caixa-preta de nossas vidas".

Em seguida, ela mesma comenta: "Não deciframos nada, Alec. Apenas trocamos dardos envenenados". Pois é. Era isso. Viu? Xôxo. Eu disse que o livro era meio assim-assim. Agora se a tal dona aparecer e me perguntar o porque do livro se chamar "A caixa preta", a explicação taí.

Ao menos dessa eu escapei.

Companhia das Letras, 301 páginas

P.S.: "De amor e trevas" e "O mesmo mar", também de Oz, já aguardam pela leitura na prateleira. Os adquiri há tempos. Hummmm... mas acho que vão ficar mais um pouquinho por lá. 

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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