"Arrancados da terra", por Lira Neto

sexta-feira, julho 14, 2023 Sidney Puterman


O livro traz a história da diáspora dos judeus de Portugal. No seu bojo, conta da Inquisição portuguesa, da civilização crescente dos Países Baixos, da invasão holandesa ao Brasil, da sua subsequente expulsão e da fundação de Nova York.

Um perímetro histórico de respeito. Haja fôlego.

Lira Neto, seu autor, faz esta navegação enfurnado em bibliotecas, desencavando miudezas e decifrando documentos centenários semi-ininteligíveis. Já nós, seus leitores, seguimos confortavelmente aboletados na poltrona. Vida boa essa de leitor, não canso de agradecer.

E, mais, tiro o chapéu para a habilidade do escritor na construção de uma narrativa factual consistente, e, além disso, cativante, com tão pouco material à disposição. Fez muito com pouco.

Por correção, há que se frisar que, se a promessa de "Arrancados da terra" é revelar como um grupo de judeus saídos do Brasil foram dar lá nos cafundós da América do Norte, para então fundarem a maior e mais rica cidade do planeta, os finalmente não foram exatamente estes.

Mas Lira Neto é competente em seu itinerário histórico e nos faz apreciar o caminho. O percurso acaba mais saboroso que o destino. Ao qual a gente chega na dúvida de qual conclusão a tirar.

A primeira etapa é a detalhada descrição da Santa Inquisição em Portugal e sua obstinada perseguição aos judeus. Ainda que menos sangrenta que sua homônima espanhola, seu objetivo-mor foi atingido. Toda a próspera e antiga comunidade judaica portuguesa no século XVI foi espoliada, morta e erradicada, em nome da igreja de Jesus Cristo.

Pra não deixar passar batido.

Uma parte relevante dos judeus que lograram emigrar foi para Amsterdam. A capital holandesa era então um dos principais portos europeus. A rica e tolerante sociedade local já possuía, àquela época, preocupações humanistas e "politicamente corretas". Todos os credos eram legalmente permitidos, ainda que entre quatro paredes.

Com o passar dos anos, a população judia portuguesa exilada encontrou nos Países Baixos um lar para chamar de seu. Mas, como sabemos que é característico na história dos judeus, essa "paz" não durou por muito tempo. Guerras e contextos políticos (sempre com um viés religioso, naqueles tempos) tornaram a permanência na Holanda menos prazerosa. 

Sem contar que nem todos os imigrantes judeus conseguiram progredir no novo país. Assim, por um vasto leque de razões, dissecadas por Lira Neto, quando os holandeses criaram a Companhia das Índias, muitos na comunidade judaica resolveram se aventurar no Novo Mundo. 

Na verdade, os judeus contribuíram como financiadores e também como colonizadores na experiência tropical holandesa. E, durante alguns anos, o Brasil pareceu aos judeus o paraíso. 

Ainda que também aqui (onde não?) sua situação fosse controvertida. Aceitos, mas indesejados. Pelo lado holandês, se no início eram parte da viabilização da empreitada, com o passar do tempo a holandesada começou a reclamar do monopólio judeu do comércio. E da riqueza. E do conforto.

Nada a que os judeus não estivessem acostumados. Afinal de contas, serem bem-vindos era uma situação rara nos séculos de convivência dos judeus com os gentios. Mas isso não era nada. O problema maior estava do outro lado. Com os portugueses. Os "invadidos".

Como seria de imaginar, Portugal queria Pernambuco de volta.

Após um longo contencioso, com milhares de mortes de ambos os lados, os holandeses foram expulsos do Brasil. Ops, quase todos. Os holandeses judeus com suposta origem portuguesa eram vistos como traidores da pátria lusitana. Por isso, muitos foram presos e impedidos de partir. 

Muitos eram filhos de imigrantes portugueses. Outros, não. Os que falharam em comprovar não serem portugueses de nascença foram mandados para Lisboa. Em chegando lá, foram postos a ferros. Como rezava a cartilha católica, foram interrogados e torturados. Parte significativa dos torturados foi condenada e executada.

Não era fácil ser judeu. Quase nunca foi.

Centenas de judeus, porém, que conseguiram convencer as autoridades portuguesas no Brasil de que não tinham nada a ver com Portugal, que eram nascidos em outros países (França, Holanda, Bélgica, Alemanha etc), ainda que descendentes de portugueses fugidos de Portugal, meio século antes, foram embarcados de volta para a Holanda.

Foram distribuídos entre diversos navios. Um destes navios, entretanto, foi colhido por uma tempestade, separado dos demais e atacado por piratas. Os sobreviventes chegaram à Jamaica. Lá, alguns dos passageiros embarcaram em um navio francês, com destino a um porto holandês situado ao norte das Américas, em uma ilha chamada pelos seus ocupantes europeus de "Nova Amsterdam". Ou, no idioma nativo dos índios locais, "Manna-hata".

A tal ilha que hoje chamamos Manhattan.

Entre estes passageiros havia 23 judeus. A história deles na região insalubre, que viria tempos depois a ser negociada pelos holandeses com os ingleses, é imprecisa. Lira Neto nos trouxe até aqui para nos revelar, no alpendre de casa, que toda esta narrativa é controversa.

Parte do que sabemos sobre a chegada dos judeus permanece uma incógnita. Mas é certo, e comprovado, que eles chegaram. Só que já havia judeus lá em Nova Amsterdam. Que, inclusive, os teriam ajudado (ou não). Mas não há prova cabal que ateste que os judeus "brasileiros" permaneceram naquela que se tornou Nova York. Ou que tiveram influência no seu desenvolvimento.

Como eu disse acima, o trajeto é divertido, mas o destino é nebuloso.

Em 1o de maio de 2012, o então presidente Barack Obama encaminhou, por meio da sua assessoria de imprensa, uma declaração pública, assinada de próprio punho.

"Há 358 anos, um grupo de 23 refugiados judeus fugiu do Recife, Brasil, acossado pela intolerância e opressão. Para eles, a fuga marcou o fim de mais um capítulo de perseguição para um povo que vem sendo posto à prova desde o momento em que passou a professar sua fé. Quando esses homens, mulheres e crianças desembarcaram em Nova Amsterdam - hoje a cidade de Nova York -, encontraram não apenas um porto seguro, mas as sementes de uma tradição de liberdade e oportunidade que uniriam para sempre suas histórias à história americana".

Não, estes judeus não eram brasileiros, nem fundaram Nova York. Mas a lenda é saborosa.

Companhia das Letras, 399 páginas



Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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