"Onde estão as flores?", por Ilko Minev

terça-feira, agosto 01, 2023 Sidney Puterman


A narrativa dos campos de concentração feita pelo judeu búlgaro Ilko Minev é bem mais amena do que aquelas às quais nos acostumamos a ler. Perto das atrocidades que caracterizam este capítulo da História mundial - o Holocausto -, o relato de Minev é fichinha.

Não que não fosse infernal. Foi. O autor disserta em primeira pessoa sobre a aliança entre a Bulgária e a Alemanha nazista. E conta, em minúcias, como superou as duras condições dos campos de trabalho escravo, às margens do Danúbio.

Com um porém: diferentemente da maioria dos relatos de prisioneiros judeus, Minev, por meio do seu personagem Licco Hazan, descreve um cenário onde não havia maus tratos ou barbárie - apenas frio, roupas inadequadas, dormitórios abarrotados e falta de comida.

Bem ruim. Naturalmente, passar dois anos nas circunstâncias acima descritas seria trágico para qualquer cidadão contemporâneo - mas para um judeu europeu na década de 40, preso em um campo de concentração nazista, eram condições surpreendentemente toleráveis.

Para você ver.

Segundo Minev/Hazan, a Bulgária não era hostil contra seus judeus, como outros países do Leste Europeu. O autor credita a convivência "harmoniosa" entre cristãos e judeus búlgaros ao pequeno percentual da população judaica no país - 1%. Já eu, particularmente, sou cético quanto a criação de teses com base neste percentual. Os judeus alemães também eram poucos (menos de 1% da população alemã) e foram quase todos criminosamente mortos.

Certamente o carinho do autor por sua terra natal influenciou numa eventual condescendência.

Mas a situação na Bulgária era tão mais palatável que na Polônia ou Ucrânia que dava até pra dar no pé. Por conta da ajuda influente de seu antigo patrão judeu, que havia escapado do país antes da chegada dos nazistas, Licco conseguiu fugir do campo, obter novos papéis e viajar para a Turquia.

Era janeiro de 1944 e faltava um ano e meio para a guerra acabar. Os boches, porém, já recuavam.

A Cruz Vermelha conseguiu para ele e Berta - a mulher que recém conhecera na fuga da Bulgária e com a qual no mês seguinte se casou - um visto de imigração para o Brasil. Seus documentos falsos atestavam que ele era cristão e "técnico em engenharia". Tal despiste era necessário: o Brasil do governo Vargas não aceitava a entrada de emigrantes judeus, nem de gringos sem qualificação.

O casal Hazan viajou com conforto de Istambul para Gibraltar, na segunda classe do MS Formosa (coincidentemente, no mesmo navio em que meu avô havia desembarcado no Brasil, catorze anos antes, em 1930). De lá o plano era seguir para Santos, a bordo do Jamaique, mas saltaram em Belém e dali rumaram para Manaus, onde se estabeleceram. Nunca mais deixaram a Amazônia.

Ao detalhar a vida do casal em solo brasileiro, o livro passa a ter o empreendedorismo do imigrante como pauta. E, de emprego em emprego, Licco se torna um bem-sucedido empresário regional.

Apesar da orelha reforçar que se trata de uma obra ficcional ("Licco Hazan, o narrador deste romance [...]"), o texto é uma coerente costura de fatos triviais. Ao contar a história de Licco, Minev entrega conteúdo pessoal e histórico, em sequência cronológica e com minuciosa ambientação geográfica.

Sua história é a de uma vida intensa, mas vida comezinha, como a de cada de nós. Exceto o período de prisioneiro e a (grande) aventura da fuga, não há maiores dramas, nuances ou subtextos na linha de vida de Licco. Em todos os momentos difíceis que vivenciou ele se saiu melhor que os demais, por mérito ou acaso, e foi poupado sem danos ou cicatrizes.

Suponho que a narrativa de Licco Hazan seja a descrição de fatos acontecidos. O livro traz muitas passagens banais, com especificidades difíceis e sem sentido de serem inventadas. O texto poderia até mesmo ser resultado da junção de duas ou mais narrativas reais, mesclando um refugiado judeu a um imigrante europeu qualquer. Mas, repito, não há nelas traço de ficção.

Talvez quem possa ter contribuído para um núcleo ficcional sejam os parágrafos relativos ao seu irmão David. Depois de também fugir do campo de concentração, permaneceu como guerrilheiro na Bulgária. Confiante no credo comunista, ficou no país no pós-guerra e se tornou dirigente do partido. O personagem dá margem a descrever o que se deu em seguida nos países sob a Cortina de Ferro.

As observações do narrador sobre os conflitos em Israel e no mundo comunista, o frágil desenvolvimentismo brasileiro, nossa burocracia excessiva e corrupta, nossas dificuldades sócio-econômicas, poderiam vir de Hazan ou de Minev, tanto faz.

Fato é que é uma estória bem contada. O texto é simples, sem firulas. Neste caso em particular, a vida do judeu búlgaro que fugiu de um campo de concentração nazista conta muito mais sobre o que é o Brasil (e suas idiossincrasias) do que sobre o conflito europeu que ele deixou para trás.

Me emocionei com a vida e a morte do singelo personagem. Uma bela vida. Seja real ou fictícia.

Editora Virgiliae, 247 páginas  | 1a edição, 2014

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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