"A vida por escrito", por Ruy Castro

segunda-feira, agosto 14, 2023 Sidney Puterman


Tido por muitos como o maior biógrafo brasileiro, o jornalista Ruy Castro tira um tempo para escrever uma coisinha ou outra sobre a arte da biografia. Puro néctar. O subtítulo "Ciência e arte da biografia" dá um ar técnico à edição. Mas antecipo que é menos um curso e mais um bate-papo.

Bate-papo, aliás, é a suprema ciência do Ruy, que escreve como quem conversa.

Generoso, ele dá o passo-a-passo de como escrever uma biografia. Da escolha do biografado à pesquisa, da redação final à impressão do livro, do tamanho da equipe à forma como é remunerado.

Se você sonha, porém, em se tornar um biógrafo, não se iluda com as doces promessas do autor. Porque à vera, mesmo, nada do que ele revela faz mágica. Não há transferência de talento por osmose. Ninguém vai virar um baita biógrafo apenas por ter a leitura do livro do Ruy no currículo.

Bem, não que ele não creia na hipótese. Sugere mesmo uma universidade dedicada à biografia. Situa a atividade - como diz na capa - entre a arte e a ciência. Mas, cá para nós, a pequena apostila de capa colorida é, sobretudo, um mimo para o leitor assíduo das suas bios.

Porque ele revisita cada uma delas. Destrincha os detalhes, dá informações internas, faz uma espécie de making of de cada uma das suas publicações. Quem leu-as todas tem aí um banquete copioso. Já eu, para minha sorte, ainda tenho uma ou duas para ler. O livreto só aumenta a vontade.

Curiosamente, a leitura de biografias é considerada um estilo à parte. Ué. Percepção curiosa. Para mim, tudo é vida e tudo é fato. Seja como for, eu gosto; ainda que discorde do viés. Há quem desdenhe: "Esse aí gosta é de ler biografia". Não vou refutar. Deixo isso por conta do Ruy.

"Sempre gostei de ler biografias", revela o biógrafo, abrindo o livro. "Tem a ver, talvez, com o meu (nosso) lado voyeur - a possibilidade de espiar o lado B das pessoas que admiramos ou por quem temos curiosidade".

Discordo até do Ruy, neste aspecto. Vejo o panorama aprofundado sobre a vida de um certo alguém como uma expedição às entranhas de uma época. A bio permite que eu me transporte para uma década que não é a minha, para um século que não é o meu.

Mas Ruy endossa esse meu ponto-de-vista, com uma definição, lógico, muito mais bem escrita. Diz ele que levantar o passado "não implica nostalgia ou saudosismo, mas uma obsessão em descobrir como eram o dia a dia e a cultura quando ele ainda não existia".

"O passado é um país estrangeiro", compara. "Às vezes, parece distante. Porém, quando se mergulha nele, descobre-se que pode estar logo ali. E dispensa passaporte, visto e vacina", arremata.

O condutor precisa ser profissional, contudo. Ruy desautoriza as biografias autorizadas e não faz gosto das autobiografias: "Nenhuma autobiografia é confiável".

Mas alerto que o simples fato de ser escrita por um biógrafo profissional não é selo de qualidade da biografia. Sei disso por experiência própria. Nem sempre nossas altas expectativas são atendidas.

Porque algumas vezes o biógrafo é esforçado, reúne uma lauta pesquisa pessoal e põe nas livrarias uma edição sobre um nome instigante. Mas o trabalho publicado é frágil no texto, pouco original na seleção das informações e carece de entrevistas com quem cruzou a vida do ente biografado.

Já topei com diversas deste quilate, para minha tristeza. Elas frustram o interesse do leitor. Por exemplo, dois calhamaços que li, dedicados aos compositores Adoniram Barbosa e Dolores Duran. Resenhei-as aqui no blog. Aquém dos biografados e além dos fã-clubes. Entulhadas de devoção e redundância, pobres de substância. Tudo nelas já era do conhecimento público, só foram reempacotadas. E mal.

Já o velho jornalista Ruy Castro, pesquisador e entrevistador de mão cheia, meticuloso e obstinado, traz sempre um excesso de conteúdo inédito. E não só - desenvolveu ainda a arte singular de fazer de uma biografia entretenimento puro.

E até hoje nenhuma biografia ficou pior por ter sido magistralmente escrita.

Sobre o próprio livro, diz ele que "mais do que um manual de como escrever uma biografia, é um relato da experiência de alguém que, depois de vinte anos nas principais Redações de jornais e revistas do Rio e de São Paulo, descobriu um novo mundo a ser explorado pela única ferramenta que o acompanha pela vida: a palavra".

Para mim, particularmente, ainda mais bacana foi saber que a centelha da paixão pela biografia foi acesa em Ruy quando da leitura de "Noel Rosa", bio escrita a quatro mãos por João Máximo e Carlos Didier. Foi uma das primeiras biografias que li. Tenho até hoje o tijolaço. Um tesouro. Me fascinei com o talento e sofri as dores do Poeta da Vila até o seu fim.

E ainda desfrutei da graça do Rio de Janeiro suburbano e boêmio dos anos 20 e 30. A Vila.

Este é o verdadeiro prazer da biografia: ser tomado pelo brilho e intensidade de vidas vividas em momentos-chave da história e da arte, como se estivéssemos lá. Como não nos render?

Ruy fala de autores e obras clássicas, como "O mundo que eu vi", de Stefan Zweig (postado aqui no blog) e "Memórias do cárcere", de Graciliano Ramos, e ainda dá uma desdenhada no célebre texto de Gay Talese, "Frank Sinatra está resfriado" (também postado aqui no blog).

Discorre também sobre biografados e candidatos a, como Phillip Roth, Woody Allen, Dorival Caymmi, Dercy Gonçalves e Tom Jobim. E ainda sobre biografar épocas e movimentos, como os anos 20 e a bossa nova.

Como bom jornalista, Castro traz também depoimentos contrários ao ofício dos biógrafos. Tipo o da biógrafa (e também jornalista) americana Janet Malcolm, falecida há dois anos, em 2021. "O biógrafo é um arrombador profissional que invade uma casa, revira as gavetas que possam conter joias ou dinheiro e foge exibindo em triunfo o produto de sua pilhagem".

Exatamente como Roberto Carlos se sentiu ao ver uma biografia sobre ele chegar às livrarias. Não se conformou, foi à Justiça, interditou a obra, retirou o livro do mercado. Outros artistas aderiram à censura prévia sobre as próprias vidas. Mas, em uma decisão célebre e acertada do Supremo, a ministra Carmen Lúcia vaticinou, para a história: "Calaboca já morreu".

Mas isso é tema para outro post. Vamos voltar à madame Janet Malcolm.

Ela não alivia também a sua outra classe, a dos jornalistas. "Todo jornalista que não seja estúpido demais ou muito cheio de si para não perceber o que acontece à sua volta sabe que o que ele faz é moralmente indefensável". Segundo Ruy, ela quis dizer que "todo jornalista molda seu texto seguindo suas próprias inclinações e que tal texto reflete mais o autor do que a suposta realidade que ele descreve".

O Ruy biógrafo se defende, entretanto. "Se Janet pensa tão mal dos biógrafos, o que dirá dos historiadores, que são biógrafos seriais?". E ressalta que a biografia "é uma prática tão sujeita a distorções quanto o ensaio literário, a escavação arqueológica ou a extração dentária, e nem por isso todos os ensaístas, arqueólogos e dentistas devem ser condenados à morte".

Eu, como já disse, gosto de biografias. Certamente porque gosto de História. E parte do segredo para me divertir com ambas é mérito de quem as escreve. E isso demanda vocação, método e tempo.

"Sem apuração bem feita, não há biografia", diz o mestre das biografias. "A fórmula da apuração é simples: começa pelo levantamento de tudo o que já se sabe sobre o biografado e só então se parte para a busca de tudo o que não se sabe".

É isso. Eu, a História e toda a apaixonada torcida alvinegra queremos saber isso: o que não se sabe. Os itálicos, dele, revelam onde está a ênfase. Que conclui: "A primeira etapa pode levar três meses; a segunda, três anos". E emenda: "Eu disse que era simples; não disse que era fácil".

Por essa e por outras, reitero - quem gosta de ler, precisa ler Ruy Castro. É craque.

Companhia das Letras, (meras) 191 páginas  | 1a edição  |  Copyright 2022

P.S.: Se eu fosse cunhar um slogan para vender seus livros, diria: "Bio é com o Ruy. O resto é obituário." Hummmm... seria injusto com inúmeros biógrafos talentosos? Sim. Mas o Ruy merece o chiste.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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