"O fabuloso Zé Rodrix", por Toninho Vaz

segunda-feira, agosto 21, 2023 Sidney Puterman


Rapaz, eu sou fanzaço do Zé Rodrix. Por isso não sosseguei até achar a biografia sobre ele (como você viu semana passada, sou fã de bios). Mas talvez você nem saiba de quem eu estou falando.

A editora que lançou a biografia sobre o Zé também não confia muito que a galera saiba. Embaixo do nome dele, na capa, colocou "autor do sucesso Casa no campo".

Mais ou menos como uma bio do Tom que se chamasse "O fantástico Antônio Carlos Jobim", sublinhada pela frase "autor do sucesso Garota de Ipanema".

Bizarro. Eu dispensaria o adjetivo introdutório e proibiria o cara do comercial da editora de enfiar o título de uma música sob o nome do autor. Colocar "Stella" embaixo do nome do Fabio, vá lá. Ou "Ursinho blau-blau", embaixo do nome do Silvinho. Mas há que se separar o joio do trigo.

OK, você, que não conhecia o Zé, ao ouvir o nome "Casa no campo", certamente lembrará da letra: "Eu quero uma casa no campo/ onde eu possa compor muitos rocks rurais/ e tenha somente a certeza/ dos amigos do peito e nada mais".

Lógico que você conhece. Todo mundo conhece. Mas provavelmente você não vai comprar a biografia porque leu na capa que é a biografia do cara que escreveu a canção. Quem se dispõe a comprar a biografia de um artista é porque conhece ou admira esse alguém.

Mas vamos deixar isso de lado. Para quem o conhecia, o Zé era o Zé. Um compositor genial e ininterruptamente adrenalizado, dono de uma prosódia única. Discursivo, literal, irreverente, anedótico, lírico, poético. Puro Zé Rodrix. Seu estilo era ele mesmo.

Agradeço a dedicação fraternal do biógrafo Toninho Vaz, essencial para recuperarmos parte da trajetória dessa fera, que acabou a vida atrás das cortinas (por escolha pessoal). O José Rodrigues Trindade, seu nome de batismo, podia se dar a esse luxo. Porque era múltiplo: ator, arranjador,  publicitário e escritor. Assim, ao resgatar seu legado, Vaz nos traz uma contribuição importante.

Mas uma contribuição muito aquém, entretanto, para o leitor que abre o livro sequioso por uma biografia do astro. A obra é mais um compilado de depoimentos, que vão enfileirando seus elogios, entremeados à dissertação cronológica de fatos apurados sobre a vida do biografado.

O texto e a pesquisa ficam muito a dever. A precisão também, inclusive a textual. Vou pegar uma passagem do próprio livro para exemplificar. Na página 103, Toninho menciona a telenovela O Espigão, informando tratar-se de um "mega sucesso da TV Globo, com 150 capítulos que ocuparam quase o ano inteiro de 1974, de abril a novembro".

Opa lá. Abril a novembro não são "quase o ano inteiro". Não pode, né? Mas fui confirmar na Wikipedia. A novela foi lançada em 3 de abril e encerrou em 1o de novembro de 1974. Ou seja, foram seis meses e vinte e oito dias. Então vamos aproveitar a deixa e partir daí. Vaz pesquisou a vida "quase inteira" do Zé Rodrix, da mesma forma que a dita novela durou quase o ano inteiro.

O texto oferecido pelo autor, na verdade, não dá meio copo. Além dos depoimentos óbvios - "ele era inteligente demais", "um poço de sabedoria", "a musicalidade em pessoa", "hiperativo", "faz muita falta" etc -, sobra uma linha do tempo amorfa, pontuada por datas, lançamentos, casamentos e contratos. Tipo "juntei tudo o que eu achei publicado e dei uma organizada". 

Mas foi uma juntada meio aleatória. A ponto do final do livro reproduzir na íntegra um texto de vinte e três páginas (isso mesmo, 23), escritas pelo biografado, sobre seu vício nas salas de bate-papo da internet (quando ainda não existiam as redes sociais). E seguidas por dezesseis páginas com "dezessete perfis" do Zé Rodrix, mensagens de saudade escritas por seus antigos amigos e amigas.

(Entre elas do amigo Etel Frota, que diz: "Três Trovas Tristes/ Meu Zeuzinho foi-se embora, carregou minha alegria/ Partiu, foi antes da hora/ cantar noutra freguesia")

Tudo muito sensível, muito carinhoso, mas sem a substância suficiente para compor o que se espera de uma boa biografia. À vera, é mais um longo calendário, ilustrado com fatos e fotos da vida do biografado. A narrativa é monótona. A despeito da amizade pessoal do biógrafo com o biografado, na bio temos do Zé Rodrix muito mais a aparência do que a essência.

Os elogios repetitivos às mesmas características, ainda que legítimas, privilegiam o estereótipo.

Reiterando que, embora o autor nos traga muita coisa publicada nos jornais, nas revistas e também algum conteúdo compartilhado por pessoas próximas ao biografado, Vaz nem arranha as passagens ocultas da vida pessoal de Rodrix.

Por exemplo, "Quem sabe sabe quem não sabe não precisa saber", o segundo LP solo do autor (cuja capa ilustra este post) - após abandonar o icônico e prolífico trio "Sá, Rodrix e Guarabyra" -, mal é mencionado na biografia. As composições do disco são solenemente ignoradas, apesar de serem, ironicamente, autobiográficas.

A faixa-título discorre sobre alguém que teria passado a perna no biografado. Quem foi? Em que circunstância? Do que se tratou? Que consequências trouxe? Houve alguma reação pós-lançamento? A resposta a estas perguntas inexiste, como inexiste qualquer menção às composições do LP.

"A sua vida inteira você ficou/ tentando achar alguém como eu/ que fosse bom para você enganar, pra roubar, pra tirar vantagem/ E eu que tinha tanta experiência/ Ainda assim caí na sua conversa/ Meus trinta anos de janela acabaram não valendo de nada/ ou quase nada."

"Mas se prepare agora/ pro troco certo/que este você vai receber/ Não vai ser muito agradável ouvir desse jeito a verdade nua/ e crua/ A sua última oportunidade você gastou e vai ficar na saudade/ O que eu tenho pra dizer você vai escutar/ quer queira, quer não".

"Quem sabe, sabe, malandro/ Quem não sabe, não precisa saber, não, não/ E vai ficar a vida inteira dando cabeçada na parede sem entender/ sem conseguir entender porquê."

Escrevi acima esses trechos da letra de roldão, de memória, sem consultar (eu disse que era fã do cara). E a gente há de convir que, numa biografia, uma letra dessa não pode passar ignorada. Ou então não é bem uma biografia.

Além da menção ao livro, apenas uma foto 5cm x 5cm, com a reprodução da sua divertida capa, consta na edição. E a letra que reproduzi acima é apenas uma entre as muitas em que Zé narra passagens da sua vida. Muitas, "mentiroso" que era, se tratavam de narrativas ficcionais. Outras, como a faixa-título, eram um óbvio desabafo.

Fora de dúvida que o fato mais marcante na vida do José Rodrigues Trindade foi ele ter subitamente largado o showbiz e se tornado um recluso publicitário - na verdade, um dos mais talentosos criadores de jingles de todos os tempos.

"É no silêncio de um Chevrolet que o meu coração bate mais alto", cantou Rodrix, em um comercial que deixou sua marca na história da publicidade brasileira (e no seu melhor momento, quando havia algo que podíamos chamar, com propriedade, de publicidade brasileira). Mas, pena, o abandono da promissora carreira de popstar que antecedeu sua migração para uma semi-pacata vida nos bastidores é tratado de forma superficial.

Há ênfase demasiada no seu envolvimento (desimportante) com a maçonaria - inclusive o livro publica o desabafo póstumo da última esposa do Zé, se queixando que não recebeu o pecúlio ao qual teria direito - e em outras circunstâncias menores.

O foco nestas questões seria cabível, tivesse a obra esgotado temas muito mais relevantes na excêntrica carreira de Zé Rodrix. Mas o espaço concedido aos diferentes momentos da vida do biografado não refletem o peso específico de cada um deles; seja na vida de Rodrix, seja na sua importância artística.

A foto utilizada na capa da publicação é ótima. Mas também questiono a representatividade de estampar a capa com uma imagem que reflete um período de "baixa visibilidade" do biografado. Capa é capa. Por que não uma das belíssimas fotos de quando ele estava em seu auge como músico popular? (como a foto da página 9 do livro).

São todas questões que trago na condição de leitor de História, ouvinte de MPB e fã de Zé Rodrix. Não quis em nada diminuir o biógrafo ou seu esforço. Mas o lançamento de uma bio gera expectativas. E expectativas não atendidas geram frustrações.

Por fim, reitero a beleza envolvente de "Casa no campo". Pespegar o título na capa, porém, como chamariz, era dispensável. O talento de Zé Rodrix é muito maior que uma única canção, por mais emblemática que ela seja. 

"Onde eu possa plantar meus amigos/ meus discos e livros/ e nada mais".

Editora Olhares, 325 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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