"Uma autobiografia", por Rita Lee

segunda-feira, agosto 28, 2023 Sidney Puterman


Uma autobiografia, vírgula. São duas.

Tem a bio da Rita Lee Jones - que cogitou aportuguesar o nome, veja só, para Rita Léa Gomes -, da primeira parte do livro. Ácida. E tem a bio da Rita Lee que começa quando Roberto de Carvalho, um guitarrista carioca que tocava com o Ney Matogrosso, entra na vida da "roqueira" paulistana. Melada.

E eu gosto muito mais de uma delas. Fácil adivinhar qual é e porquê.

Rita Lee foi uma personagem super interessante. Carismática e talentosa, esteve presente em um momento mágico da MPB - os movimentados anos 60. Difícil não associar o período à sua figura psicodélica no palco dos festivais, fazendo backing vocal para Gilberto Gil em "Domingo no parque" e para Caetano Veloso em "Alegria, Alegria".

Ela era letrista e vocalista de "Os Mutantes", trio formado por ela e por uma dupla de irmãos, os Dias. O grupo nunca foi um sucesso de público e se desintegrou com a saída de Rita, ainda no início dos anos 70. Por décadas musicalmente relegados a um efêmero recuerdo dos festivais da Record, foram resgatados do ostracismo nos últimos anos.

Ingleses catadores de relíquias desenterraram os LPs do trio e os elevaram à fina flor do rock alienígena. Viraram uma banda cult (embora acho até que já desfrutassem desse prestígio underground no Brasil).

Curioso é que Rita rejeite este seu primeiro período de estrelato. Mais que rejeitar, ela espinafra Os Mutantes, seus componentes e tudo o que diga respeito aos irmãos Dias, que ela chama indiferente e debochadamente por um nome só - ozmano -, mesmo tendo sido casada com um deles.

Ela vai fundo. Destrincha desde a formação do grupo (que começou com o dobro de participantes e chamava "O'Seis") até as arruaças que faziam de kombi pela cidade de São Paulo. Pior, revela os podres (literalmente) da família quatrocentona dos bróders.

Dá um ar de casualidade aos encontros e desencontros musicais daquela década animada, em que a cultura fervia e o ambiente político oprimia. Fica até desapegado dar essa minimizada na importância dela e de Os Mutantes. Mas ela inverte bastante a narrativa quando retrata o seu período de sucesso solo, a partir da segunda metade dos anos 70.

Doravante estrela nacional e recordista na venda de LPs, ela nos brinda com sua produção industrial como compositora e suas entradas e saídas de hospícios diversos, menos por drogas e mais por álcool - Rita se tornou uma inveterada cachaceira, de ir às últimas e cair de cara no chão. 

Literalmente. Teve inclusive que reconstituir o maxilar e ficar dois meses no canudinho.

O texto de Rita Lee é mordaz. Faz a narrativa da sua vida se tornar bem mais divertida do que se contada por um biógrafo profissional (e, como os três leitores que me acompanham aqui no blog sabem, sou bem rigoroso com biógrafos em geral).

A menina era a terceira filha de um casal improvável ("crescer sendo brasileira entre americanos protestantes/maçons e italianos ultracatólicos me deu uma panorâmica existencial de valores e bizarrices") e não podia dar muito certo ("não é à toa que sou bipolar com um pé no trifásico").

A origem norte-americana é pra lá de inusitada: seus avós eram sulistas que migraram pro Brasil após a derrota na Guerra da Sucessão, sob os auspícios do Imperador Pedro II, também maçom. Foram para o interior de São Paulo, cuja terra achavam parecida com a deles para o plantio de algodão. Daí nasceu a cidade de Americana. Aprendi mais uma.

A netinha, muitas décadas depois, esculacha a perda do cabaço para o cabo de uma chave de fenda, aos cinco anos, molestada pelo cara que foi consertar a máquina de costura Singer da mãe.

Adolescente, Rita - que viria depois a se tornar musa da doce tolice Democracia Corintiana* (algo como a Primavera Árabe, mas sem as pirâmides) tinha pouca paciência pro furdunço ideológico, e se dizia "uma gringa roqueira bocejando para o momento político do país (militares e comunistas se equivaliam na chatice)". Se auto-denominava "uma ET caipira que entrou de gaiata na festa dos sisudos MPBistas que se levavam demais a sério".

"Ou você era esquerdette ou direitette", enfatiza ela. "Para acomodar quem me cobrava uma posição política, me assumi 'hiponga comunista com um pé no imperialismo".

Muita cobrança em prol da divisão, ontem e hoje. Até porque dividir é fácil. Quero ver somar.

Roberto Carlos, o Rei, também não somou. Iniciantes, Os Mutantes procuravam um lugar ao sol e quase conseguiram uma vaguinha na TV Record, no célebre programa Jovem Guarda, mas foram defenestrados com a ajuda do bom moço ("Roberto expressou certo desconforto com a formação 'dois rapazes e uma moça', que de trio já havia ele, Erasmo e Wanderléa, sem espaço no programa para outro").

Rita, parece, levou de boa; mas contou na bio, né. Ou seja, minimiza, mas não perdoa.

Quem ela não perdoou mesmo foram os seus parças de Os Mutantes. Como eu disse lá em cima, ela não economiza para falar dozmano e dos seus respectivos genitores, "uma gente arrogante". Na vívida descrição da roqueira,  a família Baptista era "riquinha, pero pouco asseada. Avançavam na comida antes de chegar à mesa, falavam alto de boca cheia e, para meu completo nojo, bebiam no gargalo da mesma garrafa de Coca-Cola passada de mão em mão. Isso quando não comiam nos próprios quartos, verdadeiros chiqueiros".

Aturou. Mas, com este registro cruel, a vingança foi maligna.

Mas vamos ao que interessa. Rita Lee entrou para a música popular brasileira quando o trio foi convidado para fazer backing vocal para Nana Caymmi no Festival da Record. Era 1967 e o que aconteceu no festival mudou a MPB, que nunca mais foi a mesma. Há documentários à beça disponíveis na rede para quem não sabe bem o que se passou.

O autor da música era um baiano chamado Gilberto Gil, que, ao ver a parafernália eletrônica levada pelos mutas para fazer o backing (levaram errado...), se interessou e convidou o povo para performar com ele em uma outra canção classificada, "Domingo no parque". O grupo estranhou o convite:

"Mas não é festival de música brasileira?"

"É, mas vocês não são brasileiros?"

"Mas a gente não sabe tocar música brasileira, a gente só faz rock."

Foi assim que a guitarra entrou na música brasileira. Passaram a música apenas duas vezes em um ensaio geral e a terceira vez já foi no palco do festival. Os figurinos foram todos de autoria de Rita, que fez uma toalha indiana virar túnica (eu nunca soube que indiano se secava, ainda mais que faziam toalhas) e vestiu "ozmano com capas pretas à la Beatles". Fez um coraçãozinho vermelho no rosto e estreou na História.

Bem, dá para ver que eu acho "Domingo no parque" o ó do borogodó.

Mas eu não tô sozinho nessa visão da menina paulistana. Nelson Motta, quase um Zelig da MPB na segunda metade do século 20 (um Zelig com talento, diga-se), em artigo publicado em 22 de maio deste ano, também corrobora e se derrama:

"Desde a primeira vez que a vi, com 20 anos, nos Mutantes, cantando com Gilberto Gil em "Domingo no parque", no Festival da Música Brasileira de 1967, me encantei por ela, como todo mundo, pelo resto da vida. Como todo o Brasil."

Deixando de lado a confissão do Nelsinho - que dizem que realmente pegou geral -, fica claro que não fui só eu que fiquei mesmerizado com a presença cênico-musical da Rita.

Mais para baladeira e artista pop do que para a roqueira que ela se via, ao trilhar a carreira solo a cantora-artista-compositora Rita Lee seguiu ganhando cada vez mais espaço e se tornou uma campeã na venda de discos - o oposto do seu período nos Mutas, quando não vendiam nada.

Talvez por isso, e pelo relacionamento conturbado que teve com ozmano, ela tenha dado uma bela desprezada nesta sua icônica fase inicial. E, nas ondas do sucesso, valorizado o seu repertório posterior, principalmente após o namoro e casamento com o guitarrista Roberto.

Eu, que vinha me divertindo a beça com a auto-zoação da Lee, a partir daí passei a achar a narrativa enfadonha. Pode ser implicância minha. Mas a bio é boa e a Rita Lee é demais.

Globo Livros, 294 páginas 

* A "Democracia corintiana" foi uma badalação jornalístico-publicitária capitaneada pelos jogadores Sócrates e Casagrande, que reunia conversa fiada, cerveja e música. Como o Brasil estava nos estertores da ditadura, a mídia gostava de estampar a palavra "democracia". Era divertido, mas deu em nada. Como a Primavera Árabe, que ao menos tinha as pirâmides no fundo - o que dava uma enfeitada no bagulho.


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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