"Hitler s beneficiaries", por Götz Aly
Volta e meia vem o noticiário com uma estória qualquer de neonazistas. Esse tipo é que nem carrapato, dá num lugar específico. Aqui no Brasil eles geralmente aparecem no Sul. Mas o padrão é sempre o mesmo: um bando de sujeitos aparentando algum retardamento mental, reunidos em vantagem física e numérica para surrar alguém vulnerável.
Além da imbecilidade, um fator comum a todos eles é a total ignorância do que tenha sido o nazismo. Fossem só estes os idiotas, menos mal; pior é que o desconhecimento é coletivo.
Mas sempre é tempo de dar uma revisada.
O nazismo era uma milícia estatal adepta do esculacho, paramentada como uma escola de samba (figurino gótico). Calçavam coturnos, luvas e eram nota dez no quesito capas de couro. Seus membros eram fissurados em tochas, ordem unida e pancadaria organizada.
Bem, noves fora toda esta parte alegórica (marchinha, suásticas, culotes etc), os caras eram basicamente milicianos. Ladrões. Deixe de lado o blablablá da intolerância racial, da perseguição aos judeus, e se concentre no essencial: o nazista roubava. A essência do Estado nazista era, como uma milícia, atacar para roubar (e, eventualmente, vender "segurança").
Sabemos bem como isso funciona.
A leitura do excepcional livro de Götz Aly não deixa dúvida quanto à natureza do regime. Infelizmente não publicado no Brasil. Mas não resisti e encomendei. Valeu a pena - a edição é um minucioso registro contábil da ocupação da Europa de 1939 a 1945 pelo III Reich.
Numa coisa temos que tirar o chapéu para a milícia nazista: mesmo no crime, a organização da alemoada era impecável. Assim, cada país europeu ocupado mereceu o registro detalhado dos recursos desviados. Roubavam e anotavam. E, em moeda atual, foram bilhões de euros surrupiados.
Apenas para não passar batido, quero voltar ao primeiro parágrafo, antes de permitir que as cifras da apropriação tomem conta do nosso bate-papo aqui. Os neonazistas brasileiros (um oxímoro, né?) babam Adolf Hitler - um sujeito que, se pertencesse à família deles, seria expulso a pontapés.
Hitler era um mala. Um esquisitão. Não comia carne, não fodia, não se exercitava e enchia o saco de quem estivesse ao seu redor. Fã da estética do Império Romano, era capaz de repetir a mesma ladainha monotemática, horas a fio, para o seu grupo de comensais (oficiais próximos e o time de secretárias do Führer). Ninguém podia sair enquanto ele falava, nem sequer ousar abrir a boca.
Um pé no saco.
Mencionei isso só para deixar claro que o fascínio pela figura histórica do cara é uma babaquice. Seus idólatras atuais não sabem quem estão idolatrando. Sim, sem ele o nazismo não teria prosperado, nem feito a guerra que dizimou a Europa e provocou a morte de sessenta milhões de pessoas. Danem-se os Hitlerheads. Hitler era, acima de tudo, um babaca.
Ok, volto ao assunto quando comentar a biografia de Hitler. Li recentemente uma ótima, assinada por Ian Kershaw (tão boa, ou melhor, quanto a escrita por Joachim Fest). Em breve (?) aqui no blog.
Preciso falar do livro de Aly, que trata de um tema mais burocrático. Como foi que, em cada país invadido, os alemães regularam a economia. Isso significa falar em impressão de dinheiro, inflação, cupons de guerra, criação de novas moedas, subordinação dos bancos centrais, promoção de títeres, controle do comércio, desvio de recursos, expropriação dos bens etc.
Nem de longe é tão emocionante quanto os abobados neonazistas tupiniquins. Mas é o que temos.
Outra coisa, como o livro foi vertido do alemão para o inglês, sem tradução para o português, e quero reproduzir alguns trechos, irão em inglês mesmo. É basicão. Quem preferir pode jogar os trechos no tradutor do Google ou tirar as dúvidas nos melhores dicionários digitais, tipo Longman, Webster ou um outro qualquer.
Não vou traduzir, mas vou comentar. Vamos pro livro.
Ao rastrear a movimentação financeira da Alemanha nazista (a velha regra do follow the money), o autor deixa evidente como o apoio popular interno ao nazismo derivava do compartilhamento do butim. Era um método. A população alemã foi poupada do ônus de custear a guerra e era obsequiada com o que de melhor havia para ser roubado nos países vizinhos.
De cara já trago um parágrafo essencial, pelo seu poder de síntese.
"The policy of plunder was the cornerstone for the welfare of the German people and a major guarantor of their political loyalty, which was first and foremost based on material considerations", enfatiza Aly. "The unshakable alliance between the state and the people was not primarily the result of cleverly conceived party propaganda. It was created by means of theft, with the spoils being redistributed according to egalitarian principles among the members of the ethnically defined Volk".
Na opinião do autor, o populacho alemão não era persuadido, era subornado - com uma parcela do roubo. O saque era redistribuído na forma de comida, roupas, móveis etc. Mas, ressalto, a maior parte ia para o governo, porque não só os países invadidos eram roubados, como o roubo financiava a própria máquina de guerra.
"Although much of what was confiscated was sold off at bargains prices, state treasuries earned significant revenues from the transactions. The expropriation and sale of Jewish assets in 1938 was not just a one-time emergency measure the Reich took to close gaps in state finances. The procedure served as a model for use in the countries and regions Germany conquered during World War II", explana o autor.
À medida em que avançavam, utilizavam o que era roubado para pagar as contas do avanço.
"Aryanization was essentially a gigantic, trans-European trafficking operation in stolen goods" diz Aly, com todas as letras. O texto é claro. Não vamos deixar que paire nenhuma dúvida. O Estado Racial era na verdade um gigantesco esquema de tráfico de mercadorias roubadas.
"It may have taken different forms in different countries, but the ultimate destination of the revenues generated was always the German war cheast. These funds enabled the Reich to refray its main financial burdens", esclarece, sobre o real destino da receita oriunda do butim.
Assim, apesar da movimentação de uma ciclópica máquina de guerra, o grosso do dinheiro para financiá-la não vinha dos cofres públicos alemães, nem dos impostos pagos pelos cidadãos. Enquanto isso, no único país que reagira à invasão alemã, a Inglaterra, a população juntava moedas para doar ao governo. O cidadão inglês vivia na penúria, mas dava o que tinha para bancar os "nossos rapazes".
Os alemães espoliavam os países vizinhos e escravizavam seus habitantes.
"A significant portion of the Reich's increased revenues came from its annexed territories, from its exploitation of forced labor, and from profit based on dispossession, financial manipulation, and genocide", reforça o autor. "It is clear, therefore, that the increase in the tax burden in Great Britain was more than double that in Germany. Moreover, in stark contrast to the situation in Germany, 85 percent of the increased revenues from taxes and contributions came from British citizens earning the modest sum of 500 pounds or less a year".
De novo: enquanto o Reino Unido dependia dos tributos pagos pelos próprios cidadãos para fazer guerra aos agressores, estes obsequiavam os alemães (militares e civis) com o espólio arrancado das mãos dos demais povos europeus. Assim como os hunos fizeram, alguns séculos antes.
Vale dar uma olhada atenta nos números, ainda que isso tome um pouco mais de tempo.
"In therms of all wartimes revenues, internal and external, low and midlle income Germans, who together with their families numbered some 60 million, accounted for no more than 10 percent of the total sum". Ou seja, de acordo com os valores apurados pelo historiador, apenas um décimo dos custos de guerra recaíam sobre as classes baixa e média do povo alemão.
"More affluent Germans bore 20 percent of the burden, while foreigners, forced laborers, and Jews were compelled to cover 70 percent of the funds consumed every day by Germany during the war", explica. "The middle and working classes derived advantages from the Third Reich's dual emphasis on race and class: 'wartime socialism' combined with a sense of racial superiority and imperial adventurism guaranteed solid support for the regime well into the second half of the war".
Para garantir o abastecimento contínuo de recursos, o exército alemão não avançava sem concomitantemente por em funcionamento sua engrenagem de saque, expoliação, contabilidade e remessa de valores. Nos mais remotos e pobres cantos da Europa que a máquina de guerra nazista alcançou, o procedimento foi idêntico.
Não pense que a arrecadação provinha somente dos países mais próximos, mais ricos ou mais hostis. Os nazistas roubaram dos camponeses russos aos comerciantes gregos. Exemplos?
"The Wehrmacht squeezed 25,000 gold pounds from Jews in Salonika to meet its operating costs for November and December 1942", relata Aly, com informações extraídas dos anais do julgamento de Max Merten, em Atenas. Doze toneladas e meia de ouro roubadas da comunidade judaica de Salônica - e este é só um exemplo, entre duzentos outros.
A propósito, durante décadas não se soube o paradeiro deste ouro. Os nazistas, após a guerra, negaram tê-lo roubado. Os gregos não sabiam de nada. As toneladas desapareceram no ar.
"The transactions remained so secret that, after the war, there was no need for either Germans or Greeks to deny them. No one asked where the gold had gone", pontua o historiador. "According to Merten, the gold of the Jews of Salonika had been lost at sea".
Naufrágio conveniente, né?
"After the war, it must have been common knowledge in Athens financial circles where the gold had gone. It had neither been sunk at sea nor carted off to Germany", afirma, para revelar que "most of it had remained in Greece, where it had changed hands for money".
A expropriação de bens e o assassinato de seus legítimos proprietários funcionava como um sistema de abastecimento em tempos de carência - consequência da guerra - e a supressão dos consumidores assassinados estabilizava o mercado e contribuía para o controle inflacionário.
"The immediate effect of the complete dispossession of a group of victims was an increase in supplies of consumer goods - especially clothing, furniture, kitchen appliances - that were in great demand. The sudden availability of goods stabilized prices", enumera Gotz. "The removal of a significant number of urban inhabitants reduced the number of consumers, which in turn reduced demand at a time when supplies were increasing".
A técnica era um dos primeiros mandamentos dos fundamentos econômicos do nazismo. E, lógico, para ter um subterfúgio "moral" (por mais imoral que seja), um grupo étnico foi oportunamente estigmatizado como inimigo do povo alemão - sem direito à vida e aos próprios bens.
A esta altura, convém reiterar minha opção recorrente pelo texto original em inglês. Não só permite que eu seja corrigido caso tenha distorcido ou mal compreendido algo, como traz verossimilhança a um tema sempre conturbado. Então achei melhor compartilhar alguns destes trechos na íntegra.
Isso (re) explicado, vamos seguir vendo isso juntos.
"Historians who have investigated the legal and moral dimensions of the Aryanization campaigns have generally ignored the financial technique, introduced by Nazi Germany in 1936, of funding military aims by forcibly shifting private investments into government bonds. This scholarly blind spot is all too appropriate, as the Nazi Regime was at pains to conceal the material benefits of its epic-scale larceny".
Como constatamos aqui, pena que os historiadores, em sua maioria, tenham ignorado este esquema de conversão do dinheiro (judeu) confiscado pelo regime nazista. Porque este é um dado importante. O valor era subitamente transformado em certificados de depósito bancário emitidos pelo governo alemão - que, naturalmente, ocultava a manobra.
"During the war, reports about the compulsory conversion of Jewish assets into war bonds were forbidden, and concrete figures about the proceeds earned were kept secret", relata Aly, ao desvendar a estratégia. "Instead, the persecution of Jews were depicted in Nazi propaganda as a purely ideological issue. The defenseless victims of a mass campaign of murderous thievery were treated as enemies whose lives had no value whatsoever".
O autor coloca o dedo na ferida e questiona a atuação dos especialistas na história da guerra: "Scholars should not confuse Nazi propaganda with historical fact", assevera.
Não vou me estender em mais dados, muito menos nas dezenas de páginas que reproduzem os próprios registros nazistas - que controlavam em livros contábeis cada centavo roubado. São mais do mesmo. Foi a descoberta desses registros que permitiu a Götz Aly escrever sua obra.
Voltando rapidamente aos nossos neonazistas, nariz de cera do nosso post, eles não são a ameaça que a mídia pinta (dá ibope). Estes "neonazis" são meras caricaturas, incapazes de reproduzir a essência do regime nazista: uma disciplinada máquina de guerra, movida a roubo e assassinato.
Não são nada além de sujeitos perturbados, que, à falta da fantasia do nazismo, iriam botar uma capa preta, se dizerem a reencarnação do Drácula e saírem mordendo pescoços por aí.
Já o texto de Aly é conteúdo que exige reflexão. A leitura deste que é um dos mais respeitados historiadores alemães nos permite um prisma mais agudo da Segunda Guerra Mundial.
A edição da Metropolitan Books também prima pela forma. Capa dura com uma sobrecapa em papel couchê de alta gramatura. Páginas impressas em papel off-white.
A sobrecapa reproduz um flagrante comum naqueles tempos. Cidadãos alemães e austríacos celebrando, em êxtase, o Terceiro Reich. O populacho, repleto de mães de família, vibrava como quem recebe um time campeão. Porém, como sabemos, no fim o time das mãezinhas perdeu.
Para quem esperava mil anos de boa vida e salsicha na mesa, a alegria dos chucrutes foi efêmera.
Metropolitan Books, 433 páginas | 1a edição, 2007 | Tradução Jefferson Chase
Título original: "Hitlers Volkstaat"
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