"Tenentes", por Pedro Doria

sexta-feira, fevereiro 07, 2025 Sidney Puterman


Muita gente já escutou a expressão "os dezoito do Forte". Hummmm... corrigindo, talvez não "muita gente". Do nosso mundinho contemporâneo, uma meia dúzia, vá lá. Acho que a expressão não circula muito nas redes sociais. Eu costumava lê-la nos jornais, referida em uma matéria ou outra.

Aliás, é dos jornais que vem o contador desse causo.

Pedro Doria não é historiador. É jornalista. Contador de estórias. Vem bem a calhar. O brasileiro é desmemoriado - portanto, é preciso alguém que conte estórias. Tudo bem, também, que o brasileiro é desinteressado. Não quer saber de estórias do passado. Pois é. Pobres de nós.

Xingamos governos, torcemos para políticos, idolatramos sujeitos carismáticos que tudo o que fizeram na vida foi... serem carismáticos. O Brasil é um lugar bom para isso. Somos patriotas, comunistas, fascistas, progressistas, reacionários etc. Só não sabemos mesmo o que é que cada coisa dessas significa.

Isso não vem de agora, como podemos ver.

"Tenentes", cujo subtítulo é "A guerra civil brasileira", conta da má-criação de alguns militares contra o governo legalmente estabelecido. Essa birra, da qual trata o livro, foi há muito tempo atrás, na década de 20 do século passado. Espocou primeiro na Capital Federal, em 1922, e ricocheteou dois anos depois em São Paulo. Doria narra os dois acontecimentos. Aqui, vou enfatizar o primeiro.

Porque uma "guerra civil" passada toda na orla da Princesinha do Mar é do balacobaco.

Os tenentes envolvidos não agiram sozinhos. Tinham vínculos ocultos com marechais. Zero surpresa. É notório que militares de baixa patente sempre aliciaram medalhões das Forças Armadas, no intuito de tomar o poder da mão dos civis.

Tecnicamente, chamamos isso de "golpe", quando dá certo, e de "tentativa de golpe", quando dá errado. No caso, dá pra chamar também de "patuscada".

Você percebeu que eu pus um monte de aspas no parágrafo acima. Poderia ter posto mais. No "legalmente" também. Porque nas primeiras décadas da República as eleições eram tão limpas quanto as de Eurico Miranda no Vasco. OK. Saco. Você também não sabe quem é. Paciência.

Mas o fato é que houve eleições, havia uma queda-de-braço entre um grupo político e outro, e o que tinha o apoio dos militares perdeu. Então o Chiru, milico filho caçula de um ex-presidente da República, o Marechal Hermes da Fonseca, concatenou uma sublevação militar para derrubar o presidente Arthur Bernardes, que nem empossado fora ainda. 

A operação foi canhestra. Tipo aquela explosão do Guandu que Bolsonaro cogitou fazer e depois disse que jamais pensou nisso. Em termos de ridículo, nada muito diferente de janeiro de 2023, com aquele monte de gente ignorante invadindo Brasília pra quebrar vidraça e derrubar relógio velho.

Há quem lembre dos que rezavam para os pneus e esperavam alienígenas, mas vou pular essa parte.

Se a bizarrice de 2023 teve muito povo e pouco tiro, porém, a guerra civil de julho de 1922 teve muita gente morta, com tiro de canhão disparado do Forte de Copacabana contra o Ministério da Guerra, no centro da cidade do Rio de Janeiro.

Deu o óbvio. Os imbecis erraram os tiros. Destruíram sobrados e mataram mulheres e crianças. Não só eram inocentes - sequer tinham a mínima ideia que estavam prestes a tomar um tiro de canhão na cabeça. Um elefante que caísse dos céus não os surpreenderia mais do que isso. O governo, pior, não sabia que o canhão do Forte tinha potência suficiente para bombardear a cidade.

É que nenhum inteligente havia feito as contas: os canhões não conseguiriam lançar seus maiores obuses de Copacabana à Praça da República, mas, diminuindo a carga, era possível aumentar a distância que a bala de canhão percorreria. Essa é fácil, né? Mas ninguém no Ministério cogitou.

Não é piada. Se for, é do Pedro Doria. Só estou vendendo o peixe pelo preço que comprei. 

Leia o livro e descubra o que fizeram dezenas de personagens que você conhece bem. Isso, você. Duvida? Você já deve ter tomado um açaí na Siqueira Campos, pego um uber na Calógeras, desviado de bode na Xavier de Brito, entrado na Epitácio Pessoa e seguido pela Borges de Medeiros, torcido por um time que mandava seus jogos em Marechal Hermes. Pois é. Desconhecidos íntimos.

Esse elenco aí de cima estrelou uma tragédia com foros de comédia.

Se eu te disser que os 18 do Forte trocavam mensagens com o governo pelo telefone de um puteiro, que a mira do canhão era ajustada de acordo com a tagarelice do Ministro da Guerra (que era o próprio alvo do  canhonaço) e que, na única noite da revolução, todos os pretensos aliados abandonaram os 18 do Forte à própria sorte - você acreditaria?

Que os 18 recusaram a proposta de rendição e saíram do Forte a pé, com um revólver e uma metralhadora na mão, para ir até o Catete afrontar o presidente? Que os 18 eram na verdade 28, mas que, cinco minutos de caminhada depois, viraram onze, e logo depois eram apenas quatro?

Que um desses quatro, ainda dentro do quartel, saíra na porrada com um oficial legalista, que o jogara muralha do Forte abaixo, nas pedras do Posto Seis, e que, todo escoriado, voltaria, em farrapos, para montar sentinela e que se tornaria um dos quatro que iria ao confronto final na Rua Barroso?

Que dia maluco. Tão maluco que, quando os tenentes saíram do Forte, para uma marcha suicida, um jovem engenheiro, que morava em Paris e passava uns dias no Rio de Janeiro, ao ver os tenentes marchando, pediu, como quem pede um pão, para se unir a eles - e ganhou um "sim" e uma espingarda?

Trajado como um dândi, de gravata e paletó, o tal engenheiro, o gaúcho Octavio Correa, morreria meia hora depois, após caminhar um escaldante quilômetro e meio no sol. A última caminhada da vida foi, pelo menos, suada. Já o tal tenente, que saíra na porrada poucas horas antes, seria duas vezes furado a baioneta nas areias da praia. Seu nome era Newton Prado.

O audacioso líder dos tenentes, o jovem Siqueira Campos, foi baleado no teatro de guerra que se tornou a esquina da Avenida Atlântica com a Rua Barroso. Hoje a rua se chama... Siqueira Campos.

O valente e tresloucado gesto dos jovens militares não deu em nada. Pelo menos, não em relação ao governo que queria derrubar. Defende Doria que os 18 do Forte germinaram duas revoluções: a de 1930, civil, e a de 1964, militar. É uma linha de raciocínio.

A mim pareceu mais uma pantomima suicida.

Certamente a Guerra Civil de 1924, em São Paulo, foi um desdobramento temporão dos 18 do Forte. Um conflito que resultou na morte de quinhentos inocentes, bombardeados pelo próprio governo do estado, no afã de proteger seu poder. Conseguiu, mesmo deixando São Paulo semi-destruída.

(É que o governador, em pânico, abandonou o palácio e mandou bombardear a cidade.)

Por fim, dos 18 do Forte, o que alcançaria a posteridade como o mais célebre dos tenentes revoltosos sequer estava na guerra de Copacabana. Caíra de cama, febril. Sua lendária determinação seria posta à prova justamente no rastro da fuga dos revoltosos paulistas, interior do Brasil afora.

Seu nome era Luís Carlos Prestes. Mas aí já é outra estória.

Editora Record, 251 páginas  |  1a edição, 2016


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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