"Latim em pó", por Caetano Galindo

quarta-feira, junho 07, 2023 Sidney Puterman


Uma breve e interessante excursão pela história da linguagem e dos idiomas - descendo rios, cruzando mares e desaguando no nosso português. Para quem gosta do tema, um pitéu (apesar, temo, da abordagem superficial). Os mais exigentes talvez digam que o recheio lembre mais um pastel de vento. Gostosinho, mas com mais lero-lero do que conteúdo.

Oito ou oitenta? Talvez a questão nem esteja aí. De bom é que somos apresentados a uma série de exemplos curiosos da evolução das línguas, priorizando as origens do latim e seus desdobramentos. Certamente temos aí a parte mais instigante do texto de Galindo.

Eu, que além de ignorante no geral sou leigo no específico, adorei saber um monte de coisa (a propósito, essa ausência do "s" praticada pelo populacho em uma palavra que o vernáculo determina ser posta no plural também é defendida pelo autor; ele pretende, aliás, um uso bem mais concessivo, se deliciando com "os menino caiu"; eu, mais conservador, acho que aí já é demais).

O bom é que ele volta bastante no tempo. Cata fósseis. Entre outras, conta ele que em archi, língua falada no Daguestão, um verbo pode assumir "mais de um milhão de formas diferentes em situações reais de uso". E eu, bobinho, achando que a maior virtude dos daguestaneses era o sambô.

E também que acredita-se hoje que o sânscrito é irmão do grego e do latim, e não seu antepassado.

Mais: nos recorda que "soer" (costumar) caiu em desuso. Verdade. E - complemento eu - como sói acontecer às melhores tradições d'outrora...

Outro tour linguístico proposto por Galindo é o leque de variações de uma mesma palavra com raiz no latim, e que foi adaptada em cada região europeia de fala românica com o acento peculiar da população local. As derivações, aponta o autor, costumam seguir um padrão reiterado.

É o caso do octo (latim), que virou oito (português), ocho (espanhol), huit (francês), otto (italiano) e opt (romeno). Ou lacte, que virou leite (português), leche (espanhol), lait (francês), latte (italiano) e lapt (romeno).

Legal. Os genuinamente apaixonados pelo latim desfrutaram até 2019 de uma rádio que transmitia diariamente as principais notícias do planeta exclusivamente em língua de missa, a Nuntii Latini, uma emissora da... Finlândia. Não escutou? perdeu.

Eu não sei você, mas algumas expressões sempre me deixaram encafifado. Como a tal "a última flor do Lácio". Ok, vem do poema do Bilac, mas o que o Lácio tem a ver com as calças? Não sabia o burrinho aqui, até o Galindo me contar, que Lácio é a forma aportuguesada de Lazio, região italiana que abriga Roma e que é o berço do latim (a propósito, "lácio" em latim é "latium"). Aí ficou fácil.

A Lazio, time de futebol da bota, eu conhecia. O Lácio, só de ouvir (o Bilac) falar...

Vale mencionar que o latim que pariu essa cacetada de idioma - português, romeno, francês, italiano, calabrês, espanhol, catalão, sardo, dalmático, vêneto e o escambau - não era a língua douta, falada nos ambientes cultos de Roma, e sim a praticada pelo vulgus. O povão. Vulgo o zé povinho (como também ensina Galindo, vulgus nada mais é que "povo").

Ainda assim, para que este idioma praticado pelo populacho atravessasse as épocas, precisava ser registrado por escrito. Verba volant, scripta manent, como qualquer tabelião sabe. "As palavras ditas voam, as escritas permanecem". Mas só no século IV uma espécie de gramática - na verdade, uma lista de como se devia escrever e como não se devia escrever - surgiu, o Appendix Probi

A zorra total que era a grafia começou a ganhar limites. Regras eram delineadas (tipo você deve escrever "todos" e não "todes"). Mas, como é praxe na vida comum, com o passar do tempo boa parte das regras foi para o vinagre - enquanto outras, mais azeitadas pela prática popular, ganharam seu lugar na salada geral.

O português do qual nos orgulhamos hoje foi gestado mais ou menos por esta época, num vatapá (opa, essa palavrinha preta chegou mais de mil e duzentos anos depois) que embolava esse latim vulgar - exportado Europa afora pela invasão romana - com a linguagem dos falantes celtibéricos.

Mas não ficava só nisso aí, não. Vieram para a Península os bárbaros, no caso os vândalos, os alanos e os suevos, no intuito de aporrinhar os romanos e tascarem um pedaço do território, detonando a - mui alardeada nos filmes da Metro - famosíssima pax romana.

Nestas ondas bárbaras, os suevos foram os que privilegiaram (um eufemismo para "atacaram") os lusitanos, e sua presença demorada deixou marcas no idioma galego-português, como, por exemplo, com a queda das consoantes n e l em ambientes intervocálicos. Chique, né?

Traduzindo essa bagaça em miúdos, a tal queda significa a supressão que especificamente o português fez de certas sílabas, presentes, não obstante, no latim e nas outras línguas românicas dele originárias. Confundi? Os exemplos permitem a gente entender melhor. 

O latim vulgar colore virou color em espanhol, couleur em francês, colore em italiano e culoare em romeno. Mas em português esse l entre as vogais (daí o intervocálico) foi limado, ficando cor em português. A mesma coisa com dolor (para nós, dor), caliente (para nós, quente) et cetera - ó o latim aí.

Curioso é que as palavras de uso mais sofisticado derivadas desses substantivos mantiveram em português o "l" de nascença latina, como um marcador genético: colorido, dolorido, caloroso. A beleza dos idiomas é que eles deixam pistas claras como um pé deixa uma pegada no barro.

(Se você está achando complicado, a culpa é minha - garanto que o Caetano faz parecer simples.)

O livro é rico nestas pequenas descobertas agradáveis sobre a língua que praticamos todos os dias, desde que aprendemos a falar (põe tempo nisso). E não discrimina os proprietários da norma culta, os eruditos, daqueles que falam apenas a língua das ruas, os tidos por ignorantes.

Como vemos no texto, aliás, o ignorante pode até fundar a sua própria língua. O autor nos traz o conceito do "idioleto", que considera que cada falante "fala uma versão singular do próprio idioma", sendo, segundo Caetano, "o idioma de apenas um usuário".

Talvez eu mesclar putz com cáspite seja um sintoma disso. É o meu hilário idioma particular, uma farofa que inclui centenas de palavras herdadas de índios, pretos, turcos e galegos. Tenho inclusive minhas prediletas por origem, como saudade, dengo e jururu. Ou almanaque, cafuné e curumim.

Mas palavras são palavras - cantava Bethânia - e um idioma é muito mais complexo que isso. E, para explicar seu funcionamento, o autor não tem como fugir a um desenrolar mais acadêmico do tema. A partir do momento em que o português está estabelecido e oficializado como a língua pátria lusitana, Caetano se debruça sobre o desenvolvimento do idioma no Brasil.

No meu modesto entendimento, porém, é a partir daí que ele dá uma pisada na bola, puxando a brasa pra sua sardinha de teórico e nos caitituando para abraçar a perspectiva que ele, Galindo, criou sobre a formação do nosso português atual.

Falando da influência dos diversos idiomas que conviveram, no Brasil, com o português do colonizador, ele defende - grosso modo - que os idiomas indígenas perderam a prevalência e um eventual monopólio futuro da linguagem brasileira, por conta da presença dos escravos africanos.

Tese ousada e original. E como ela se aplica, na visão do autor? 

Em resumo, o português teria sido a língua comum com que a elite portuguesa se comunicava com a população escrava. Essa mesma população negra precisava do português para se entender entre si, já que vinham de tribos e regiões diferentes da África. Ou seja, os escravos não se entendiam uns com os outros em "africanês" e precisavam do português para interagir e integrar a cadeia produtiva (produtiva para o branco, e cadeia para o negro, troço eu).

Avançando na tese de Caetano Galindo, o idioma português somente teria se disseminado Brasil afora porque os escravos eram o motor da economia nacional e foram distribuídos do Oiapoque ao Chuí - e a língua de uso comum entre brancos e pretos era o português. Disse o autor:

"Se é para pensarmos no português brasileiro como algo que se encontra num caldeirão, é preciso reconhecer quanto o conteúdo desse caldeirão teve que ser mexido e remexido para produzir a nossa atual paisagem linguística. E é preciso reconhecer também que os primeiros e mais importantes desses movimentos foram determinados pela grande massa de falantes africanos que iam carregando e modificando essa língua durante todo o processo" (os itálicos são meus). "Refundado e recaracterizado por eles", conclui.

Todo respeito ao autor e à sua intenção de transformar seu livro - de uma simpática coleção de curiosidades sobre a evolução do idioma ao patamar de uma tese linguística inovadora. Mas não vejo a situação da mesma forma que ele vê.

A mim parece que seu ponto de vista está distorcido por um viés que hoje denominamos identitário - no caso, ele visa atribuir à uma fatia étnica (a preta) uma propriedade que ela não possui (por mais que ela tenha incontáveis méritos, que não estão aqui em questão ou em análise).

Galindo se estende, frisando que "apesar das adversidades, foi a língua falada por negros e mestiços que dominou o Brasil. Somos um país que fala português como fruto direto da presença negra". O autor se entusiasma com a própria tese e chega mesmo a poetizar em cima do tema: "O português brasileiro foi um broto africano, flor de Luanda".

Eu diria que Caetano superestimou a contribuição escrava neste quesito. Mas ele vai além. 

"Talvez não vejamos nosso 'português negro' não porque ele não esteja aqui, mas por estarmos o tempo todo imersos nele. No Brasil, o pretoguês é (...) o único português real".

Sem nenhuma desconsideração pessoal com o autor, julgo a afirmação descabida e pretensiosa.

Fosse real o que propõe o neologismo de Galindo, os portugueses de Portugal, não sujeitos a estes quatro séculos de influência africana, não entenderiam o português refundado, o tal pretoguês. Mas parece que eles não têm problema nenhum em entender o idioma. E nem nós o idioma deles. Afinal de contas, ambos - brasileiros e portugueses - falamos o mesmíssimo idioma: o português.

Não preciso ir longe. Quem acompanha futebol já se familiarizou com a avalanche de técnicos portugueses dirigindo as principais equipes do país. Abel Ferreira, um português multicampeão treinando o clube paulistano Palmeiras, dá entrevistas coletivas semanais e discute acaloradamente com os árbitros locais. Suas entrevistas não têm legenda e os repórteres brasileiros entendem em minúcias cada coice verbal do gajo. Os árbitros já deram a ele 50 (cinquenta) cartões, entre amarelos e vermelhos, pelas barbaridades que ele diz à beira do campo.

Parece que todo mundo entende bem o português do português. 

É inegável que é mais bem falado que o nosso, não porque tenhamos qualquer complexo de inferioridade diante do domínio do idioma por parte do "colonizador", mas porque o discurso dos técnicos portugueses tem mais ideias, mais conteúdo, mais clareza, mais conceitos e abstrações do que o discurso repleto de clichês temáticos e verbais oferecido pelos treinadores brasileiros.

No caso, a diferença não está no idioma, mas no grau de conhecimento e na capacidade de expressão.

O próprio autor nos traz a teoria por trás deste uso: é a diastrática, a variação que o idioma apresenta dentro das diferentes camadas sociais. É como se o português praticado pelo palestrante nativo de Portugal pertencesse a uma camada social superior, advinda de uma bagagem acadêmica superior.

Galindo inclusive se enrola quando faz alusões preconceituosas ao português paulistano, que só teria absorvido formas mais populares da língua quando "transportadas" pelo imigrante italiano, pois antes o quatrocentão se recusaria a absorver o idioma popular, contaminado pelos negros. Creio eu que a contaminação é a pauta identitária, não o processo natural de evolução do idioma. 

Afinal, Galindo diz no início que "as regras de uso de uma língua não podem ser mais determinantes do que o coletivo de seus usuários. Se uma maioria expressiva de falantes se comporta de forma contrária ao que a regra prevê, isso aponta para a necessidade, sim de alterar a regra e fazer com que ela expresse mais adequadamente os os usos da língua na sociedade."

Com isso estou totalmente de acordo. Mas ele se contradiz, ao final, quando afirma que "a narrativa desse embate entre o português brasileiro real e a norma escolar ainda está muito longe de ser resolvida e, nas últimas décadas, assumiu definitivamente o aspecto de um confronto entre os mundos rural e urbano".

Ora, ou a evolução do idioma é orgânica, e determinada pelo seu coletivo, ou ela é um confronto das ruas com a academia. O que acha, na verdade, o autor? Em se tratando do idioma, vale a voz do povo ou o regramento imposto pelos estudiosos? (normatização que, muitas vezes, é uma tentativa elitista de apropriação da língua, em prol de um determinado grupo de interesses em comum).

Se o latim que está no DNA do português que falamos hoje vem do vulgo, e não do latim culto, a tese que o teórico Caetano Galindo defende é a visão culta (a dele, de linguista acadêmico) de uma pretensa particularidade popular, em prejuízo da evolução natural da língua. 

A língua é o uso coletivo dos seus usuários. Estou com ele neste axioma (palavrinha que não vem do latim, e sim importada do grego axios). E, mais, acho que os estudos podem nos contar o passado das línguas, mas não podem modificar o seu presente, nem determinar o seu futuro.

A língua é o que o povo fala, e o povo é todo mundo. Senão, nem tinha serventia a tal da diastrática.

Companhia das Letras, 227 páginas

Obs.: A editora costuma ter uma revisão caprichosa. Não foi o caso dessa pequena edição. O "momumento" na página 21 e o "bossa bronquice" na página 30 não poderiam ter passado em branco  (aproveitando que - por enquanto - a expressão ainda não foi cancelada pelo azedume identitário).

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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