"Hanns & Rudolf", por Thomas Harding

domingo, maio 21, 2023 Sidney Puterman


Apenas como exercício de imaginação, suponha que você é um jornalista que descobre que seu tio-avô participou da Segunda Guerra Mundial. Como intérprete do Exército britânico. 

Mais: que ele foi um dos primeiros militares aliados a interrogar os criminosos de guerra - e obteve confissões dos responsáveis pelos campos de concentração e de extermínio. Uau.

E não só: que sua investigação foi decisiva para localizar, prender e condenar Rudolf Höss, o comandante-em-chefe de Auschwitz. E que, uma vez preso, o meganha confessou ter dado cabo de dois milhões e meio de civis inocentes, entre homens, mulheres e crianças.

E descobrir tudo isso assim do nada, na bucha. É de fazer o sujeito cair para trás, né?

Pois foi justo o que aconteceu com o jornalista Thomas Harding. E ele descobriu a pontinha do iceberg de toda essa trama em pleno funeral do tio, em 2006. Sessenta anos após o fim da guerra.

O segredo durou seis décadas. O tio, enquanto vivo, sempre se recusara a falar. Mas, com a revelação súbita em pleno sepultamento, Harding se sentiu intimado pelo parentesco e se pôs a pesquisar (ainda sem uma noção real do que seu velho tio havia feito). Certamente o irmão do avô cumprira um papel burocrático, traduzindo documentos, pensou. Mas, à medida em que puxava o fio da meada, constatou que tinha um peixe graúdo pela frente. Ou melhor, dois.

Foi aí que Harding escolheu "Hanns & Rudolf" para título do livro.

E pelo título o leitor já tem uma boa pista sobre a forma que Thomas adotou para contar sua estória. O autor optou por dar peso igual à trajetória dos dois personagens, percorrendo lentamente as origens familiares e o desenvolvimento pessoal, profissional e militar de cada um. Hanns, pelo Império Britânico, Rudolf pelo Terceiro Reich.

A estória é para lá de instigante. Ainda que atrapalhada pela opção do autor de intercalar os capítulos entre os dois personagens, com os pares para Hanns, e os ímpares para Höss, fazendo um certo jogo de amarelinha (com o leitor pulando de um para o outro). O formato deixou um tanto arrastado o desenrolo inicial. Só mesmo a partir do capítulo 15, quando o caçador encontra a presa, eles enfim compartilham a narrativa e a estória se torna uma só.

Bem, a parte boa é que a esta altura o ritmo é outro, já não há mais pachorra, e o leitor está absolutamente mesmerizado, como um sapo cozinhado em água morna (assim diz a lenda).

O relato de famílias judias endinheiradas e patrióticas sendo expulsas de seu país natal pelo nazismo nos remete a "A lebre dos olhos de âmbar", de Edmund de Waal. Pena que o estilo de Harding não seja páreo para o texto elegante de Waal. Mas ambos nos oferecem uma perspectiva valiosa da rotina de uma família judaica de posses, renome e influência no momento da ascensão nazista.

Se no supracitado "A lebre..." os protagonistas estão em Viena e Paris, em "Hanns & Rudolf" os principais atores estão no epicentro do regime, em plena Berlim. Ao descrever, por exemplo, o bar mitzvá dos dois irmãos gêmeos - Hanns e Paul -, Harding nos permite um flagrante de uma rica familia judia no inicio dos anos 30, no coração da Alemanha.

"A família foi conduzida pelo motorista à Neue Synagogue, na Oranienburgerstrasse, a maior da cidade, com capacidade para mais de três mil pessoas sentadas. O enorme domo dourado da sinagoga era dois andares mais alto que os edifícios ao lado. Localizada no centro da área comercial, era o coração da vida judaica em Berlim."

O início do livro revela assim a infância super confortável do avô e do tio-avô, irmãos gêmeos.

Estavam em maio de 1930. Faltava ainda dois anos e meio para o poder cair no colo de Hitler. A vida para um médico bem-sucedido era, então, generosa. Iria chorar de emoção na cerimônia dos filhos. Nem de longe o célebre doutor judeu poderia imaginar que em poucos anos estaria exilado. Muito menos que estaria entre a pequena fração de judeus europeus que escapariam do Holocausto. 

Com a nomeação de Hitler e a escalada das leis raciais, os Alexander vendem tudo - a um preço irrisório, na bacia das almas - e emigram para a Inglaterra. Lá os gêmeos irão crescer, estudar e se alistar. Como sabemos, um deles, Hanns, viria a caçar e capturar Rudolf, o comandante de Auschwitz.

Didático e meticuloso, Harding faz um paralelo destes dois alemães, o detetive judeu e o genocida nazista, de trajetórias opostas. Personagens antagônicos e com biografias desproporcionais. Hanns, até o fim da guerra, era um mero jovem imigrante. Já Höss fez da guerra uma galopante ascensão.

Soldado destemido, após a Primeira Guerra Mundial Höss esteve envolvido em um misterioso assassinato. Estudiosos dos primeiros anos do nazismo dizem que Höss matou a mando de Martin Bormann, que viria a se tornar homem forte do regime.

E que não esqueceu o amigo dos velhos tempos.

Embora com poucas credenciais e muitas limitações - e sempre desejoso de ir para a linha de frente -, o apadrinhado Höss acabou por ganhar a confiança também de Himmler e assumiu a direção de Auschwitz. O maior e mais famoso campo de matança da história.

Com um detalhe peculiar: Rudolf Höss morava em uma casa anexa ao campo, com sua mulher e cinco crianças (dois meninos e três meninas). Prisioneiros judeus eram seus empregados domésticos. O aroma permanente era o dos crematórios. Dizem que as crianças brincavam de polícia e escravo. Chegaram até a recortar uma estrela amarela e pregar no peito do escravo da vez.

Foi um período feliz para os Höss, mas que não durou para sempre. Com o fim da guerra, após matar e incinerar dois milhões e meio de judeus, Rudolf mandou a mulher e os filhos para o interior da Alemanha e conseguiu papéis falsos. Arrumou emprego em uma fazenda, onde cuidava dos animais.

Enquanto isso, Hanns era transferido para lá e para cá durante os esforços da organização aliada no pós guerra. Logo seu perfeito domínio do idioma alemão lhe asseguraria atribuições relevantes.

O mundo, até então, tinha uma noção imprecisa, mal documentada, do que havia acontecido com os judeus durante o curto e sanguinário império nazista. Nas primeiras semanas após a rendição alemã, a prioridade era o rastreio dos criminosos de guerra, "diluídos" em meio à população civil.

Aos poucos, porém, vieram à tona os pormenores sigilosos do genocídio. Oficiais SS se tornaram caçados. A partir daí, quando capturados, eram rapidamente condenados, em julgamentos tendenciosos e politizados, sob constante pressão soviética. O mundo já estava dividido por uma Guerra Fria incipiente.

Percebendo a dimensão do crime praticado nos campos de extermínio, os aliados deixaram os bagres de lado e foram atrás dos medalhões. Rudolf Höss era um deles. 

Neste momento, Hanns, que fora promovido a capitão e investigador do exército inglês, recém mostrara suas qualidades ao rastrear e capturar o ex-poderoso gauleiter de Luxemburgo, Gustav Simon. Três anos anos e meio antes, em 17 de outubro de 1941, Simon havia sido o primeiro gauleiter a anunciar que sua região estava judenfrei - ou seja, com todos os judeus mortos ou evacuados.

Com a chegada dos norte-americanos, Simon desapareceu. E teria morrido incógnito não fosse o tenente-coronel Thomas Tilling convocar Hanns Alexander à sua presença e incumbi-lo de "caçar e prender Gustav Simon". Caso fosse bem-sucedido, aquele seria o projeto-piloto de uma operação em que investigadores iriam procurar por criminosos específicos em meio a população alemã.

Hanns faria o trabalho sozinho.

A narrativa da caça ao nazista de Luxemburgo toma menos de dez páginas - mas foi uma saga que valeria um livro. Hanns cruzou a Alemanha de um lado a outro, totalizando mais de 2.400 quilômetros ao longo de 17 dias, seguindo as mais variadas pistas. 

Pulando de cidade em cidade (Wiesbaden, Belsen, Koblenz, Hermeskeil, Friedwald, Marburg, Dessel, Plettenberg etc), soube que ele trocara de nome, passando a usar o nome da mulher, Henning. As sobrinhas de Gustav deram a Hanns informações obsoletas, fazendo com que ele perdesse o rumo. Foram presas. Acabou por achar o filho de Simon,... Adolf. O filho também mentiu e acabou preso.

Retomou a pista do fugitivo em um hotel, onde estivera com o nome de Hans Woffler. Teria partido para Einbeck, onde trabalhava como jardineiro. Foi lá que Hanns finalmente o capturou, algemou-o e o levou de volta a Luxemburgo.

O sucesso lhe credenciou perante Tilling e ele recebeu a incumbência de ir atrás do paradeiro de um tubarão nazista, o comandante de Auschwitz, que pistas preliminares indicavam que permanecia vivo, em algum lugar da Alemanha.

Não por acaso, a operação se chamava "Agulha no Palheiro".

A localização e a prisão da mulher e do filho mais velho de Rudolf Höss, Klaus, lhe dão o trunfo que precisava para obter a confissão de Hedwit, a esposa, sobre o esconderijo do marido. Depois de ter sido a Rainha de Auschwitz, Hedwit Höss dá com a língua nos dentes e revela a fazenda próxima onde Rudolf zelava pela saúde de vacas e porcos (aos quais, caridoso, não matava).

O grupo conseguiu encontrar onde Höss estava acoitado antes que ele pudesse ser avisado e fugisse. A notícia da prisão correu o mundo. 

"Em 17 de março de 1946, o The News York Times noticiou que, após uma busca de nove meses, agentes britânicos tinham capturado Rudolf Höss, 'provavelmente o maior assassino individual da história do mundo'."

Preso, negou ser quem era. Desmascarado, negou ter feito o que fez. Confrontado com a verdade, fez o que nenhum dos outros capos nazistas fez: admitiu a própria culpa e contou seus crimes. Mas, ressalve-se, sempre agindo sob ordens, claro. Nada do que fez fôra por vontade própria.

Jornais ingleses estamparam nas manchetes: "Dois milhões de pessoas mortas por gás! O Kommandant de Auschwitz confessa!"

Após meras três semanas de cativeiro inglês, o prisioneiro Rudolf Höss apresentava "olhos vermelhos, as faces encovadas, barba crescida e o corpo frágil". Foi entrevistado por Whitney Harris, jovem promotor nos Julgamentos de Nuremberg.

"Fiquei surpreso com a aparência de Rudolf", Harris revelou depois aos repórteres. "Esperava encontrar um homem grande, alguém que transmitisse poder e brutalidade, alguém com carisma. Em vez disso, ele me pareceu um sujeito muito comum, assim como um 'vendedor de mercearia', a quem não daria um segundo olhar se passasse por ele na rua".

Um dos maiores genocidas da história era um sujeito vulgar (veja na foto), de personalidade inexpressiva. Teria fugido e se mantido impune, não fosse o esforço de uma pequena equipe em seguir suas pegadas Alemanha adentro. Integrando esta equipe anônima, o capitão do exército inglês Hanns Alexander foi decisivo para a localização e a obtenção da confissão do criminoso.

Que história.

Judeu alemão, Hanns por toda a sua vida se recusou a falar da guerra - e do seu papel nela. Apenas na sua morte teve o seu segredo revelado.

Sorte nossa que seu sobrinho era escritor.

Rocco, 302 páginas (1a edição) 2014 | Tradução Angela Lobo | Copyright 2013

Título original: "Hanns & Rudolf: the German Jew and the Hunt for the Kommandant of Auschwitz"

P.S.: Na imagem que ilustra o post, a foto de Rudolf Höss algemado e o fac-simile da página 248 do livro sobre uma das fotos que eu tirei em Auschwitz, em abril de 2019, exatamente do local em que o criminoso foi enforcado. Era um lindo dia de sol. O sol brilhar em um lugar como esse é, no mínimo, paradoxal.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: