"Entre anjos e cangaceiros", por Frederico Pernambucano de Mello

domingo, maio 07, 2023 Sidney Puterman


Houve uma vez um gringo que seguiu sozinho o rastro dos piores bandidos do sertão. Filmou e fotografou os facínoras. Fez postais dos cabras para vender na feira. Ganhou fama. Acabou morto com quarenta e duas facadas. Mais de meio século depois, virou filme e mereceu biografia.

É desta que trato.

Frederico Pernambucano de Mello, o famoso biógrafo do cangaço, chamou esta tarefa para si. E começa sua estória lá nos ermos do Oriente Médio. Uma estória pra lá de inusitada.

Diante do alistamento compulsório para defender o exército turco na Primeira Guerra Mundial, o adolescente libanês Benjamim Abrahão Calil Botto deu no pé. Desembarcou no Recife em 1915.

Era oficialmente sírio - porque o Líbano àquela época havia sido incorporado à Grande Síria -, mas dizia a todos ter nascido em Jerusalém e ser conterrâneo de Jesus. Já o pessoal aqui da terra, desde o início, chamava ele de turco, mesmo.

Parentes e amigos da família o receberam em Pernambuco. Deram a ele casa, comida e emprego - atrás de um balcão. Inquieto, resolveu ganhar a vida como caixeiro-viajante e foi dar nos costados do Ceará, mais precisamente em Juazeiro, terra do Padre Cícero, tido mais por santo do que por padre.

Conseguiu cativar o santo homem, que o acolheu na própria casa, e, imprevidente, fez do gringo contador e tesoureiro. Benjamim, que de santo não tinha nada, logo começou a fazer suas contas tortas na jogatina local (sem contar seus métodos heterodoxos de contabilidade).

Metido no jogo e no comércio, se fiando nas costas quentes do padrinho - o tal padim padi Ciço de Zeca Diabo -, deu um passo maior que as pernas e foi jurado pelo principal coronel local, Floro Bartolomeu. Por respeito ao padre, o turco foi humilhado, mas não foi passado no fio da navalha.

O avanço da coluna Prestes fez de Floro comandante do Exército, que, por sua vez, convocou Lampião e fez dele capitão. O apoio não valeu de grande coisa, porém. A coluna recuou, Lampião debandou e Floro foi à capital da República cobrar o dinheiro das provisões, que não chegava.

Nunca voltou. Floro caiu doente no Rio de Janeiro e morreu por lá mesmo. Benjamin pôde enfim repor suas manguinhas de fora e retornar ao cargo de assistente pessoal do Padre Cícero, que santamente o recebeu de braços abertos. 

Ardiloso - ou picareta, para alguns -, fez espalhar aos quatro cantos que o padre estaria por dar sua "última benção". Romeiros de todo o Nordeste afluíram para Juazeiro, enriquecendo a lojinha de artigos sacros recém aberta por Benjamin Abrahão.

O movimento estimulou o Diário de Pernambuco, o maior jornal do Brasil fora do Sul-Sudeste do país, a enviar um repórter para registrar a romaria. Recebido na própria casa paroquial, o jornalista Otacílio Alecrim se surpreendeu com o padre de pantufas, escutando música em uma vitrola de corda, com uma corneta dourada, e assessorado por um secretário estrangeiro.

O artigo, intitulado "O desencanto de Macunaíma", não saiu lá muito laudatório: "Francamente, com um turco e uma vitrola, não há messias que possa ser levado a sério..."

A foto de capa do livro mostra o célebre Padre Cícero de Juazeiro, sentado em uma marquesa de palhinha, tendo ao lado Benjamin Abrahão, que segurava uma edição do jornal "O Globo", do Rio de Janeiro. É que o comerciante e faz-tudo, que não dava ponto sem nó, estava cavando uma boquinha para se tornar correspondente da imprensa do Sul; com a foto, conseguiu.

Faturou também com a morte do próprio padrinho, que se deu pouco depois. Fotografou o cortejo e  vendeu o santo defunto em cartões postais. Filmou o cadáver e cortou mechas do seu cabelo, que foram comercializadas, em saquinhos, vendidas para centenas de devotos. Como se houvesse tal quantidade de cabelo na cabeça do padre, que era santo, mas não era Sansão. 

Com a partida do ícone, porém, Abrahão se viu desprotegido e foi atrás de novas fontes de renda. Com a chegada da Zeiss alemã ao Ceará, na esteira da febre mundial pela pela produção de imagens fotográficas e cinematográficas, Benjamin se apresentou, propondo fazer o que ninguém até então havia feito: documentar e fotografar o bando de Virgolino Ferreira da Silva. O famigerado Lampião.

A audácia de se meter sozinho na caatinga, atrás do líder cangaceiro, sujeito temido, sanguinário e impiedoso, não era de todo desmiolada e desprovida de chance de sucesso. Abrahão e o capitão Lampião haviam se conhecido dez anos antes, quando do combate à coluna Prestes.

Nem por isso não era um excesso de ousadia e confiança do turco, que partiu de Fortaleza em 10 de maio de 1935, como representante da Aba-Film. Por quase um ano vagou de vilarejo em vilarejo atrás do bandido. Em março de 1936, nas "caatingas alagoanas da ribeira do Capiá, soltas bravias do Canapi, então do município de Mata Grande, no limite entre as fazendas Lajeito Alto e Poço do Boi", Benjamin foi detido pelos cangaceiros Juriti e Marreca, "que o tinham prendido e escoltado até o chefe para ser morto".

Lampião, já a esta altura um chefe ponderado, sabedor do seu poder, foi condescendente na saudação ao fotógrafo: "Não sei como você veio bater aqui com vida, cabra velho".

Só troçou. Na condição de ex-secretário particular do Padre Cícero, o turco foi bem recebido. E mais: o próprio Virgolino se entusiasmou com as possibilidades do registro. Posou para dezenas de fotos, organizou o grupo para simulações de combate e às vezes chamou para si a função de cineasta.

Mandou mensagens aos chefes dos subgrupos do cangaço para virem participar das tomadas. Foram convocados os bandos de Salamanta, de Corisco, de Moderno, de Zé Sereno, de Mané Moreno, de Labareda, de Pancada, de Gato, de Canário. Lampião parecia o Orson Welles do sertão.

"Lampião estava pronto para confirmar sua presença na História através da linguagem moderna do cinema", assinala Mello. "Somente a ocorrência dessa troca de postos", diz o autor, se referindo ao gosto de Virgolino pela direção, "explica o número de cenas que irá se obter nos cerca de quinze minutos de película e cerca de noventa fotografias que se salvaram para a história".

A cabroeira desempenhou com gosto o papel de figurantes das próprias vidas. O único arredio foi Moreno, que alertou o chefe: "Capitão, o senhor é o cangaceiro mais velho, o chefe de todos os cangaceiros, mas anda facilitando". Zeloso, arrematou: "Vou ficar com o galego na pontaria, capitão. Fique sossegado. Qualquer coisa, atiro nele e na máquina. Estouro tudo!".

Moreno atirou no que viu e acertou no que não viu. As fotografias e filmagens do grupo foram um sucesso jornalístico imediato, assim foram publicadas, mas geraram uma forte reação do novo governo que se instalara no país - o Estado Novo.

O registro da bandidagem serelepe, que as autoridades há décadas não conseguiam conter, mas que se auto-promoviam como se fossem estrelas de Hollywood, foi um tapa na cara das forças policiais e dos governos locais. Significou o ponto de partida para um esforço concentrado pela captura e aniquilamento do bando.

Aqui Pernambucano de Mello abre um interessante capítulo sobre as relações escusas entre o cangaço e a polícia, que parecem uma reprodução do eterno cotidiano carioca. Corrupção e violência policial se igualam. Conta do arrego recebido pelas volantes e da selvageria praticada pelos macacos contra a população - crimes cometidos justo por aqueles que deveriam defendê-la.

A reação das autoridades constituídas ao histórico trabalho documental de Benjamin Abrahão fez do registro o canto de cisne do cangaço. E também o seu próprio: impedido de vender o resultado do serviço e com uma coleção considerável de inimizades caatinga afora, o turco acabou morto a facadas - quarenta e duas, para ser mais exato - em uma circunstância que jamais foi bem esclarecida.

Lembrando a bizarra morte de PC Farias, tesoureiro e guardião de segredos inconvenientes do governo Collor - morte atribuída aos ciúmes da sua namoradinha, que matou o velho e depois teria se matado de amor -, Abrahão foi esfaqueado e estripado por um aleijado que não andava. Um certo marido traído. Versão inconvincente. No mínimo.

Aqui se encerra a trajetória do sírio que veio adolescente para o Brasil e produziu o que nenhum nativo foi capaz de produzir. O imigrante enriqueceu a narrativa do cangaço. E, graças ao trabalho dedicado do pesquisador Frederico Pernambucano de Mello, sua picaresca biografia fica aqui preservada para a posteridade.

O livro abre também diversas janelas sobre a cultura nordestina e seu tradicional universo político. Ressalvo, porém, que o rico texto do autor é idiossincrático. Muito do que é trazido de bandeja se torna de difícil digestão, temperado pela prosa engalanada de Mello. Mas que tem lá seu sabor.

Destaco também o delicado projeto gráfico, que fez do belo alfabeto árabe a vinheta da edição.

Por fim, vale frisar que o autor não afirma, mas dá margem para supormos que a morte de Benjamin, em 7 de maio de 1938, tenha se dado a mando do próprio Lampião - ainda que Mello compreenda outras hipóteses. Vá saber.

E o próprio rei do cangaço foi emboscado pouco mais de dez semanas depois. A 28 de julho, em Angico, nos grotões do Sergipe. Ao amanhecer.

Até hoje muitas versões cercam a morte de Lampião e Maria Bonita - mas a caçada feroz que precedeu sua morte teria sido estimulada pelos ares de celebridade do cangaceiro, cujas fotos, estampadas na capa dos grandes jornais do país, enfim atiçaram a sanha do governo e das polícias.

O turco, na sua inocência aventureira, ilustrou e pôs o ponto final na história do cangaço.

Editora Escrituras, 351 páginas  | 1a edição, 2012

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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