"A longa estrada para casa", por Ben Shephard

sexta-feira, abril 28, 2023 Sidney Puterman



Dar um destino aos refugiados de guerra permanece na agenda do dia. Há hoje no planeta diversos conflitos em andamento - e onde há guerra, há gente desalojada. Na tentativa de acolhê-las, entidades internacionais, subvencionadas pelos países ricos, fornecem auxílio humanitário.

Neste mundo desigual, com ricos e pobres em suas respectivas extremidades, a tecnologia encurta distâncias. Celulares com acesso às redes sociais conectam os extremos e possibilitam imagens em tempo real - o que constrange, mas não é suficiente para dar um basta às tragédias.

E, se a violência é onipresente agora, imagine há 80 anos atrás - em 1943. A Europa em guerra e em destroços. A Alemanha nazista ocupando quase todo o continente: da França à União Soviética, da Grécia à Noruega. Neste cenário simiesco, os alemães escravizaram as populações locais, despachando-as para a Alemanha, para trabalharem pelo Reich.

Este domínio imperial protagonizado pela Wehrmacht e pela SS durou pouco anos, porém. A União Soviética logrou reagir à invasão nazista, financiada a fundo perdido pelos Estados Unidos. Os próprios norte-americanos desembarcaram na Normandia. Os nazistas recuaram.

E, com a retomada gradativa de espaços pelos Aliados, à medida em que os alemães iam sendo empurrados de volta para o seu país, milhões de estrangeiros, retidos na Alemanha, se viram livres da escravidão, mas apartados da sua terra natal. A guerra na Europa acabou; mas não para eles.

Estes ex-escravos, sem pátria ou lar, são o tema do livro. É aí que a narrativa tem início.

De pronto faz uma interessante contextualização sobre o trabalho escravo em território alemão. De como, com a consequente derrota alemã, o continente foi dividido entre a União Soviética e o Ocidente, gerando uma intrincada logística: os milhões de antigos escravos e prisioneiros que ocupavam a Alemanha precisavam, antes de mais nada, serem tratados, desinfetados e alimentados.

E, depois, precisavam ser mandados de volta. O "para onde" é que se tornou o grande problema.

Os judeus sobreviventes não tinham para onde ir. Ucranianos idem. Os russos tinham a Rússia, mas preferiam se suicidar - e o faziam - a voltar para a terra natal. Não era capricho. Sabiam como Stalin tratava os retornados.

Instituições como a Unrra, o  Shaef, a Cruz Vermelha e os exércitos americano e britânico tentavam administrar o caos. Como bem conta Shepard, não conseguiam. A estrutura era pífia, o transporte era nenhum, as provisões eram insuficientes e mais da metade destas acabava roubada.

O trabalho de Shephard nos permite observar este momento crítico do pós-guerra imediato. 

O enorme contingente de poloneses foi reunido em grandes campos para PDs - a denominação técnica para os refugiados, "Pessoas Deslocadas", ou "Displaced Persons",  no original -, gerando contínuas crises com a administração americana.

O livro narra o lento e intrincado repatriamento de seiscentos mil poloneses, que resistiam a retornar - seja porque o pedaço da Polônia de onde eram originários agora se tornara território soviético, seja pela falta de emprego, seja pelo temor que contrastava com a segurança oferecida pela vida nos campos polacos (segundo os americanos, os mais sujos e corruptos).

O mesmo aconteceu com os judeus. Os sobreviventes dos campos de extermínio e os duzentos mil judeus vindos da União Soviética se tornaram um baita problema a resolver. Os britânicos queriam que eles retornassem aos seus países de origem, mas os judeus sabiam que não seriam bem-vindos: os que retornaram à Polônia foram comumente alvo de pogroms e da recusa dos poloneses em lhes devolver as antigas posses e moradias.

Os americanos eram favoráveis à ida dos judeus para a Palestina - uma opinião de peso. Nesta questão ninguém era mais capaz que os Estados Unidos de fazer a balança pender para um determinado lado. Eles praticamente financiavam tudo, do trabalho humanitário à reconstrução dos países. Grã-Bretanha incluída. Mas remeter os judeus para o Oriente Médio era uma solução mal vista por boa parte do planeta.

Principalmente pelos árabes que habitavam a Palestina.

O governo americano investiu nesta opção. O povo norte-americano, que não queria se tornar o destino dos judeus, pressionava por ela. David Ben Gurion, o líder sionista, atuava firmemente para que os judeus reunidos na Alemanha imigrassem para a Palestina.

Mas, reitero, o problema é que já havia um povo na Palestina.

Um comitê internacional foi criado no início de 1946 para discutir a questão. Com uma primeira reunião de 16 dias em Washington, uma outra logo em seguida em Londres, e mais duas em abril, na Alemanha e na Suíça, o que foi debatido neles até hoje influi na geopolítica mundial.

Decidiu-se pelo envio de 100.000 PDs judias para a Palestina. A proposta era a divisão da Palestina em duas metades, uma sob controle judaico, outra sob controle árabe. A Grã-Bretanha era contra o envio e também contra a divisão. O acadêmico libanês Albert Hourani advertiu: "Qualquer tentativa de trazer mais judeus para a Palestina inevitavelmente acabará em guerra".

"A questão não é entre o certo e o errado, e sim entre a menor e a maior injustiça", opinou Richard Crossman, político inglês que integrava a comissão e se notabilizou por sua atuação pró-sionismo."A injustiça é inevitável e temos de decidir se é melhor ser injusto com os árabes da Palestina ou com os judeus".

Há quem defenda que, se naquele momento o Reino Unido tivesse se proposto a receber 25.000 PDs judias, poderia pressionar para que os Estados Unidos aceitassem outras 50.000 PDs judias e a manifestação internacional pró-movimento sionista teria sido esvaziada. O que certamente acarretaria na não-existência do Estado de Israel. É uma hipótese válida. Mas o "se" não vale.

Passos decisivos para a criação do Estado de Israel foram gestados nesta Europa em crise.

Para tentar reduzir esta catástrofe humanitária que paralisava os esforços pela normalização, a Grã-Bretanha resolvera quebrar as promessas feitas aos poloneses e se esforçava para repatriá-los todos, inclusive o Exército de Anders, que reunia 100.000 poloneses em solo italiano e mais 60.000 ex-combatentes no próprio Reino Unido. Seu destino seria a Polônia satélite comunista.

Os bálticos eram um outro problema de solução delicada: em sua quase totalidade, letões, estonianos e lituanos tinham vindo para a Alemanha voluntariamente. Muitos ocuparam altas funções na SS. Mas, com o fim da guerra e a derrota alemã, sua narrativa mudou. Viraram a casaca.

Para evitar serem tratados como os cidadãos alemães em que se transformaram, os bálticos alegaram terem sido obrigados a vir para a Alemanha. Isto os qualificava a serem considerados PDs - e também evitava o repatriamento para um Báltico agora totalmente soviético.

Ou seja, todos tinham um ponto em comum: ninguém queria ir para a União Soviética.

Se era essencial o esforço humanitário, se a Unrra foi uma entidade fundamental para dar abrigo, alimento e organizar o repatriamento das PDs, súbito tornou-se politica e economicamente essencial que a Unrra encerrasse suas atividades. O momento político.

Em meados de 1946, um ano após o fim da guerra, a Unrra administrava quase trezentos campos, com mais de 750 mil pessoas, em um território que ia da Áustria a Dinamarca. Embora a ideia dominante no exterior fosse de que os refugiados eram em sua maioria judeus, os números reais contavam 420 mil poloneses, 190 mil bálticos, 100 mil judeus e 20 mil iugoslavos.

O contexto geopolítico mudara de eixo. A derrotada Alemanha já não era ameaça e a "aliada" União Soviética passou a ocupar o posto de "a grande inimiga". Os campos estavam tomados de informantes, numa feira internacional de contra-espionagem. Dizia-se que a intenção norte-americana era criar exércitos poloneses e bálticos com as PDs. 

Ira Hirschmann, enviado especial à Europa por Fiorello LaGuardia - ex-prefeito de New York e futuro diretor geral (desmontador) da Unrra - para avaliar a situação nos campos, se impressionou negativamente com o que viu, particularmente pelo contraste entre os campos para as PDs bálticas e aqueles para as PDs judias.

"Bem-cuidados pela Unrra, os bálticos tinham estabelecido uma vida comunitária em que faltava a tensão típica de um campo judeu", avaliou, surpreso com as instalações para os bálticos, que incluíam uma salão para recreação e concertos. "Os bálticos faziam o papel de vítimas da guerra e exploravam a caridade da Unrra", observou.

"Os campos para judeus estavam superlotados e sujos", constatou, "repletos de judeus que vinham da Polônia em uma proporção de 2 mil por dia". Grupos chegavam a pé, exaustos, da Cracóvia e da Silésia polonesa, a 450 quilômetros do campo para refugiados.

Horrorizado, Hirschmann encontrou 1.800 homens e mulheres "amontoados como gado em matadouro, e para essas pessoas só havia três banheiros". O exército americano parecia confortável com a situação e dava prioridade ao atendimento às necessidades da própria população alemã (em oposição às diretrizes do presidente Ike Eisenhower).

Para motivar os poloneses a voltar para o seu país, LaGuardia criou a Operação Cenoura - oferta de uma cesta básica estimada para 60 dias de duração, com 43 quilos de comida por pessoa - e financiou ações de marketing publicitário que incluíam filmes, como The Road Home, e panfletos didáticos.

O texto ia direto na jugular, no estilo perguntas e respostas. "Eu serei bem vindo tendo adiado a minha volta por tanto tempo? Haverá qualquer discriminação contra mim por esse motivo?" O próprio impresso respondia: "A Polônia dá boas vindas a todos os poloneses que irão trabalhar para a reconstrução do país".

Só faltou colocar no pé do texto: "Assinado, Stalin".

Seja graças ao suborno alimentar, seja graças à ingenuidade coletiva, o plano deu certo por algum tempo. Os próprios funcionários da Unrra se envergonhavam, e comparavam a estratégia a "uma isca para fazer os poloneses morderem o anzol".

Milhares de poloneses, porém, não caíram no truque. No ano seguinte, a Unrra se renderia e deixaria que eles seguissem sua vida na própria Alemanha ou em outros países mundo afora.

Com a passagem do tempo e a alteração gradativa da política internacional, o objetivo principal deixou de ser o repatriamento das PDs e sim seu reassentamento em outros países, carentes de mão-de-obra. A Unrra foi desmontadada e em seu lugar foi criada a IRO - International Refugees Organisation.

A Guerra Fria era o novo contexto geopolítico. A maior parte dos refugiados queria apenas estar o mais longe possível da União Soviética. Mas tinham que passar pelo crivo dos critérios de imigração de cada país - e nem todos, ou melhor, a maioria das PDs não era lá muito desejada.

O sonho de consumo dos países candidatos a receber imigrantes eram as PDs bálticas - louras, de olhos azuis, cujos campos eram "limpos e organizados". Grã-Bretanha, Canadá e Australia fizeram o possível para arrebanhar o maior número possível delas. 

Húngaros, techecos, eslovacos e iugoslavos eram aceitos, sem euforia. Mas poloneses, lituanos, ucranianos e judeus eram evitados - estes últimos, até pelo Brasil, que, segundo Shephard, recebeu 29 mil PDS, com a única exigência que não fossem judeus ou asiáticos e que viessem sem dependentes. Os argentinos receberam 50 mil, incluindo 17.500 poloneses.

A nova conjuntura internacional incluía também o debate sobre a questão judaica na Palestina. Apesar de rechaçados pelos britânicos, que tinham o mandato na região, os judeus continuavam a afluir para o Oriente Médio, na esperança de fundarem um Estado Judeu na sua terra de origem, ocupada nos últimos séculos pelos palestinos.

O autor relata o esforço sionista e dá detalhes da frustrada travessia do Exodus, o icônico navio que partiu da França com 4.500 judeus europeus sobreviventes do Holocausto e que foi impedido por uma frota de oito vasos-de-guerra britânicos de aportar na Palestina, tendo que voltar para o porto francês de Séte e daí para Hamburgo.

Estas PDs judias forneceram uma narrativa determinante para a vitória do sionismo e a criação do Estado de Israel - cujo grande eleitor foi os Estados Unidos. Mas elas mesmas tiveram enorme dificuldade para se assentarem em Israel, que, na prática, também facilitou muito pouco a absorção deste contingente europeu de sobreviventes da guerra.

Uma boa parte dos judeus emigrou para os Estados Unidos, que se tornaram o principal destino das PDs remanescentes - principalmente bálticos e alemães. Como se veio a descobrir no fim da década de 50, uma quantidade enorme de criminosos de guerra nazistas se estabeleceu no país, em um período onde a principal exigência era a posse de um passado anticomunista.

Na década de 60, com o julgamento em Tel Aviv de Adolf Eichmann, figurão da máquina de extermínio nazista, houve um novo olhar sobre a matança industrializada de judeus pela Alemanha. Criou-se o nome e o conceito do Holocausto, quase vinte anos após o fim da guerra.

Também a partir daí ganharam forma os movimentos internacionais exigindo à Alemanha reparação financeira pelo trabalho escravo imposto a milhões de cidadãos estrangeiros. O país tentou se furtar aos pagamentos, alegando que seria a repetição de Versalhes e da República de Weimar.

Durante décadas, o Estado Alemão rejeitou todas as ações individuais e, dependendo do governo e dos interesses político-econômicos, fez acordos pontuais indenizando instituições representativas de vítimas da guerra, principalmente poloneses.

Apenas nos anos 90, com a queda do Muro de Berlim, algumas ações individuais foram exitosas, ainda que a duras penas. Novos acordos foram feitos, mas a exigência de comprovação imposta aos postulantes, que precisariam provar que foram obrigados a ir para a Alemanha, dificultava as reparações. Toda a documentação do período havia sido destruída.

E, pior, cinquenta anos após o fim da guerra, os sobreviventes se esvaíam a uma taxa de duzentas mortes por dia. Em pouco tempo já não haveria a quem pagar. As grandes indústrias alemãs, principais beneficiárias do trabalho escravo, contrataram historiadores para recontar a História.

A maioria das PDs criou raízes no seu novo país, ainda que tentando manter sua identidade étnica. Mas este vínculo nacionalista foi rejeitado pelas novas gerações. O eventual retorno das PDs aos seus países de origem não era bem recebido pelos que lá ficaram - principalmente quando quem retornava tinha pretensões de reclamar o que lhe pertencera no passado.

Ao ler o título e ver a foto de capa*, com um casal carregando um par de malas e um estrado de molas, em meio a uma cidade em ruínas, a ideia que formamos é que, após a guerra, cada um pegou seus trapos e foi achar um lugar para morar, ou retornaram vagarosamente aos seus lares abandonados.

Mas "A longa estrada para casa" não leva ninguém para casa nenhuma. É o relato de milhões de sobreviventes, ex-escravos e ex-prisioneiros, que não tinham para onde ir ou casa para voltar. Seus países foram destruídos, sua soberania perdida e seus parentes foram mortos.

Como bem encerra Shephard, "quando o imigrante tenta manter sua identidade abraçando o velho país, aquela identidade fica idealizada. Ao voltar para ela, ele vê a princípio só aquilo que quer ver; na segunda ou terceira visita ele pode ver aquilo para o qual não está preparado; pode perceber que seu país ideal nunca existiu ou deixou de existir".

Editora Paz & Terra, 614 páginas  |  1a edição, 2012  |  Tradução Vera Joscelyne  |  Copyright 2010

Título original: "The long road home"

* A foto escolhida para a capa da edição da Paz & Terra induz a erro e foi um equívoco da editora. A ficha técnica do livro, negligentemente, é omissa e não contribui para elucidar. As edições em inglês (uma pela Pengoin e outra pela Anchor) e a edição em francês ("Le long retour 1945-1952: L'histoire tragique des déplacés d'après-guerre") utilizam imagens de civis em meio às ruínas. A capa da Anchor traz várias fotos - incluindo distribuição de alimentos e ex-prisioneiros perfilados, ainda de uniforme, segurando a bandeira de Israel - e é a mais representativa.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: