"O príncipe vermelho", por Timothy Snyder

sexta-feira, janeiro 14, 2022 Sidney Puterman


Para se entender o século XX - que muitos dizem ter começado em 1914 - é preciso entender suas origens. E saber que, em seu início, ele ainda pertencia aos europeus. Tudo o mais era periferia: o Oriente era muito distante e a América uma remota franquia europeia.

A segunda metade do século anterior, o Dezenove, era um cenário de convulsões nacionalistas - e fazia ferver, sob a tampa, um caldeirão de ambições. Povos se inflamavam, monarquias ruíam e países surgiam. Alemanha e Itália ainda estavam em gestação. Polônia e Ucrânia não existiam. A República Tcheca, a Eslováquia e a Eslovênia também não. Tudo isso era propriedade da vetusta Áustria. E a Áustria se traduzia pela sua realeza anciã. Os Habsburgo.

Ainda que não necessariamente fosse a proposta original do autor, na prática o seu "O príncipe vermelho" é isso: o triste fim dos últimos descendentes da monarquia austríaca. Mas o instigante é que este fim esteve umbilicalmente ligado à formação geopolítica do mundo moderno. E Snyder conta essa história - rocambolesca - como ninguém mais faria igual.

As primeiras dezenas de páginas trazem uma retrospectiva da ascensão e decadência da dinastia dos Habsburgo - a qual, nunca é demais falar, foi a mais importante de todas as coroas europeias, e da qual descende o imperador brasileiro Pedro II. Ele, a propósito, foi mais um fruto da política casamenteira, que caracterizou a política com a grife Habsburgo, no seu século final.

A visão do continente europeu oferecida pelo autor é a da perspectiva desta monarquia e do seu berço, a velha Áustria - o que já traz uma camada nova de interesse ao texto. Por meio dela testemunhamos a organização ciclópica da nova Alemanha de Bismarck e a erupção do nacionalismo italiano, insuflada pela secular inimiga dos austríacos, a França.

Uma bem-vinda overdose de geopolítica novecentista europeia. E que Snyder, com invulgar habilidade, manobra elegendo como protagonistas os derradeiros personagens do império Habsburgo. Partindo da celebração dos 500 anos de poder da dinastia, que foi comemorada com uma ópera em Viena (quase um baile da Ilha Fiscal), o autor nos expõe como a destreza diplomática do clã permitiu seu domínio e expansão através dos séculos.

E como o assim chamado Império Austro-Húngaro foi consequência da vitória prussiana sobre os austríacos, redesenhando o mapa da Europa Central e provocando um rearranjo político do velho império multinacional, que reunia italianos, poloneses, ucranianos, tchecos, eslovacos, eslovenos, sérvios, croatas, bósnios, romenos, muçulmanos, judeus, húngaros, alemães e até austríacos. 

O conhecimento deste cenário facilita, e muito, a compreensão da circunstância que inflamou o ódio e o inconformismo de Adolf Hitler. Austríaco da fronteira bávara, alemão racial, Hitler iniciou a construção do seu personagem em Viena, a capital multiétnica que o rejeitou e humilhou. Para entender Hitler, é preciso entender a Áustria.

Para entender a Áustria, é preciso entender os Habsburgo.

Timothy Snyder nos oferece a dinastia em seu momento final, a dissolução ao fim de cinco séculos de reinado. Além do octagenário Imperador Franz Josef (aqui aportuguesado como Francisco José), que reinou por mais de seis décadas, e que foi o último Habsburgo no trono, seu olhar pousa especialmente sobre seu sobrinho Stefan e dois de seus filhos, Albretch e Wilhem, especialmente este último - o príncipe vermelho que é o gancho do livro.

Engana-se quem pensa que o autor traçou um perfil épico do personagem. Longe disso. Raras vezes, a propósito, vi um biógrafo ser tão desdenhoso com seu biografado. Isto, porém, não sintetiza o perfil desenhado por Snyder. Seria muito pouco. Timothy enaltece e dá um inusual espaço na história do século XX a um aristocrata esquecido por todos. E a quem a posteridade só concedeu por homenagem uma pracinha inconclusa nos confins de Lviv, uma histórica cidade ucraniana, onde ninguém faz ideia de quem ele seja.

Wilhem von Habsburg batiza a praça com seu nome ucraniano - Vasyl Vyshyvanyi. Uma Ucrânia que é hoje um dos países-chave no equilíbrio do Leste Europeu (sob constante ameaça russa, foco da desavença atual entre Putin e Biden) e que ainda não completou oitenta anos; uma nação a que poucos se dedicaram tanto a tornar um país de fato e de direito, como Wilhem, aliás Vasyl, se dedicou.

Para entender como isso se deu é necessário entender o funcionamento da aristocracia Habsburgo e o momento que ela atravessava. O imperador já estava para passar o bastão há um bom par de décadas e o seu sucessor presumido era seu sobrinho Franz Ferdinand. Os demais componentes da família imperial precisavam cavar casamentos, para emprestar seu pedigree a outrem e ampliar, ou consolidar, esferas de poder e laços políticos.

Como já citado acima, outra não foi a intenção do casamento da princesa austríaca Leopoldina com o príncipe português Pedro, visando abertura de espaço comercial para o império austríaco nos portos brasileiros. Ao contrário do imaginado, Leopoldina foi fundamental não para a união da coroa dos Bragança à dos Habsburgo, e sim para a separação do Brasil de Portugal - o oposto do que a sua parentada em Viena poderia desejar.

Essa história já foi contada aqui, neste blog, inúmeras vezes, as mais recentes nos livros de Paulo Pedretti,  "D. Pedro" e "Leopoldina". Friso que Leopoldina é o nome de batismo de minha avó baiana, e Leopoldina foi também como batizei a minha filha carioca - que há sete anos vive em Paris, nessas reviravoltas da vida e da História.

Mas dizia eu dos Habsburgo do fim do século XIX. Stefan procurou seu espaço casando com uma princesa italiana e investindo na renovação do poderio marítimo do império através do Adriático, com uma ilha na Croácia e um pequeno feudo na Galícia polonesa. Seus filhos austríaco-italianos, Albretch e Wilhem, miraram para si mesmos constituir e reinar sobre duas novas nacionalidades, ambas geopoliticamente inexistentes: a polonesa e a ucraniana.

É contando a sedutora história de como os dois príncipes tentaram se tornar reis - em dois países que então não existiam - o assunto do livro. E para narrar a trajetória de cada um deles foi necessário se embrenhar pelo desmoronamento da dinastia austríaca e pelo pesado jogo diplomático e de espionagem das duas grandes guerras, envolvendo os maiores países do continente - com Wilhem vivendo como um dândi e como um aventureiro, como um escroque e como um espião, como um hedonista e como um libertador.

Sobretudo, a belíssima obra de Timothy Snyder nos permite a excursão por um panorama complexo do entreguerras e das forças que procuravam se impor no tabuleiro. Escrito com erudição e dissimulada ironia, este Príncipe Vermelho é uma rica introdução ao fim da Velha Europa e à construção do mundo como o conhecemos hoje.

Record, 405 páginas (1a edição) 2012 | Tradução Andrea Gottlieb | Copyright 2008

Título original: "The red prince: the secret lives of a Habsburg archduke"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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