"A jogada do século", por Michael Lewis

segunda-feira, abril 11, 2016 Sidney Puterman

Eram tempos difíceis. Talvez você não consiga imaginar. Ciro Gomes vociferava na primeira página. Congresso em convulsão. A economia desabava. Certamente você percebeu, acima, na manchete daquela segunda-feira: perdas para 353 fundos. Naquele 27 de junho de 2007, estávamos no auge da crise. Até onde toda aquela confusão iria nos levar? Lula, então presidente, se jactava, dizendo que os sujeitos de olho azul, no Primeiro Mundo, estavam falindo. Nós, os moreninhos, íamos de vento em popa. Os espertos éramos nós. A tsunami do mercado financeiro americano era aqui uma insignificante "marolinha". Mas já sabemos como tudo terminou nestas plagas. Nada bem. Estatais quebradas, desemprego, inflação, povo nas ruas, crise política e crise no judiciário, recessão. Não nos EUA. A crise, lá, foi contornada. Mas, à época, não faltavam previsões apocalípticas. O que Michael Lewis conta em seu livro é como o grande castelo de areia dos fundos de hedge foi erguido, como desabou e quem ganhou dinheiro com ele. É leitura boa. Mas povoada de alienígenas de nomes estranhos. Credit default swap. Taxa teaser. Loan-to-value. Venda de tranches a descoberto. CDO sintética. LEAP. ISDA. ABS. Hipoteca subprime do mezanino. RMBS, HEL, HELOC, ALT-A. Esquema Ponzi. TABX. TARP. Se você não era familiarizado com a terminologia do universo financeiro, vai ficar. E vai entender como a engenharia de concessão de hipotecas para indivíduos que não tinham condições de arcar com os juros crescentes (principalmente os submetidos à tal taxa teaser) se transformou na bolha que implodiu o sistema bancário dos Estados Unidos. Uma montanha-russa financeira que, à primeira vista, soa patética: devedores insolventes refinanciando o empréstimo anterior empenhando como garantia um imóvel que ainda não possuíam (e não possuiriam jamais). Quem amarrava estas transações espúrias eram as pequenas financeiras, que, por sua vez, meses após produzirem-nas, se livravam dos empréstimos (e da obrigação de cobrar de volta o valor financiado) os empacotando às centenas em carteiras fechadas (com diferentes níveis de probabilidade de quitação) e as vendiam a grandes instituições. Estas reempacotavam estas carteiras mescladas a outras carteiras de outros pequenos empacotadores e produziam, com esta massa de dívida indistinta e anônima, títulos para investimento lastreados na futura quitação destes mesmos empréstimos subprime, que, pasmem, eram qualificados de forma homogênea pelas agências de classificação. Como assim? Milhares de papéis diferentes eram lacrados numa caixa e vendidos por atacado como se fossem todos iguais? Parecia seguro - ou ninguém pensava sobre isso, ou mesmo sequer dava atenção a quem dizia pensar sobre isso e apontava as fissuras. Assim, como a crença era de que estes superpacotes de empréstimos subprime estatisticamente não diferiam das taxas médias de pagamento de outros empréstimos, papéis podres eram produzidos e vendidos no mercado pelo mesmo preço dos bons, construindo arranha-céus sobre terreno pantanoso. A ciranda era retro-alimentada com o jogo especulativo proporcionado pelas seguradoras, que aceitavam sorridentes os seguros contra não-pagamento e bancavam a confiabilidade destes papéis acolhendo apostas contra eles, as tais CDOs sintéticas (uma das alienígenas das quais falei) e multiplicando o seu risco. Neste cassino descerebrado, com alavancagem na estratosfera, o croupier, impassível, distribuía cacifes de bilhões de dólares como se fossem prosaicas fichas de galalite num carteado beneficente. O valor das apostas se tornou tão desmensurado, sobre uma base tão frágil (fragilizando-a ainda mais), que o cataclisma total não era um "se", mas um "quando". Lógico que ele, o cataclisma, se apresentou, performático, em todo o seu esplendor. Parece óbvio agora, e devia parecer óbvio então, mas, por mais inacreditável que pareça, os operadores corriam como coelhos anabolizados em todas as direções da cordilheira, sem que ninguém olhasse para que lado ficava o precipício. O que Michael Lewis narra com sua verve precisa e irônica é como alguns sujeitos do mercado, situados em pontos diferentes dele, foram capazes de enxergar antes dos outros 99,9% o absurdo desastre que estava sendo montado e, confiantes no próprio diagnóstico, apostaram no desmoronamento dos castelos. Aconteceu. O "probleminha" é que o que veio abaixo não foram os castelos na montanha. Foram os castelos, a montanha e tudo o mais que havia sobre a terra. Cóf, cóf. Dizem que o filme baseado no livro é muito bom. Assistirei estirado no sofá. Mas não creio que vá superar o brega e alucinante chapéu mexicano que Lewis nos oferece. O livro é uma longa e bem-humorada palestra sobre finanças, para quem tem paciência de fazer amizade com os alienígenas que mencionei no início. Eles balbuciam um idioma cifrado, falam cuspindo e deixam claro o quanto você é burro. Mas, se você tiver uma boa autoestima e não se importar com essa agressão covarde ao seu intelecto, é diversão garantida. Pelo menos para quem não perdeu seu rico dinheirinho nessa arapuca.

Editora Best Business, 314 páginas

obs.: Em tempo: nossa burrice está em boa companhia. O Alan Greenspan, com a mão aberta na foto publicada pelo Jornal do Commercio naquela segunda-feira de nove anos atrás, também não tinha entendido nada. E olha que era ele o responsável pela economia americana.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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