"Os porões da contravenção", por Aloy Jupiara e Chico Otávio

quinta-feira, março 31, 2016 Sidney Puterman

O livro é correto e corajoso. O que não é pouco. É mais que bastante. Talvez a linha narrativa pudesse ter outro viés. Com mais tensão. Dando um timing policialesco ao texto, pois que o tema se presta. Elementos não faltavam: o livro é um destemido recorde de prontuários. Mas, se o hipotético emprego de ferramentas da narrativa ficcional tornaria o livro mais palpitante, a chance de dar errado não seria pequena. Por isso, imagino que a definição de como contar esta história tenha tomado algumas horas de discussão entre os autores. Talvez na palestra sobre o livro, à qual não fui(me credenciei, mas não foi possível ir), tenham falado disso. Não encontrei cobertura posterior. Já o livro conta a história de três dos principais bicheiros do Rio e expõe seu vínculo visceral com a ditadura militar. A tese dos autores é que não se pode dissociar a montagem da estrutura da contravenção com a do desmonte do edifício da repressão. Uma aproveitou as peças da outra: o castelo daquela foi feito com as pedras já sem serventia desta. O Capitão Guimarães, ex-oficial do Exército, é apresentado como a principal delas. O ex-militar, que se especializou no combate ao terrorismo e nas sessões de tortura contra os inimigos do regime, já havia se associado ao crime e à contravenção enquanto ainda operava nos quartéis. Ao ser posto para fora, por força de crimes baratos que nada tinham a ver com matança de subversivos, conquistou à bala seu lugar na máfia do bicho e ascendeu na hierarquia criminosa. Trouxe com ele gente PhD do DOI-CODI, capangas especializados no duro ofício de seguir, achacar, roubar, torturar e assassinar. Mas ele não foi o único a fazer a ponte do Exército para o bicho - os elos de Anísio, bicheiro de Nilópolis e patrono da Beija-Flor (que eu soube no livro que, mais jovem, era apaixonado pela Mangueira), com os matadores da ditadura a serviço da repressão eram também profundos; e, sobretudo, tinha ligação umbelical com a política da Baixada Fluminense, braço assistencialista e armado da Arena (os mais jovens que procurem sabem quem era essa tal de "Arena"). O terceiro capo retratado é Castor de Andrade, personagem carioca que entrou para o folclore da cidade (como Jorginho Guinle, os Gracie e outros nomes que acabaram virando controversas marcas do Rio). Castor era um simpático presidente do Bangu e da Mocidade Independente de Padre Miguel - posições que, como mostram Jupiara e Otávio, eram uma fachada conveniente para quem tinha por produto final o crime organizado. Nos entrementes, tem-se o Carnaval carioca como um capítulo desconfortável. Embora não seja segredo para ninguém, os autores deixam patente que o evento é massa de manobra na mão dos capos do crime - e o quanto de arranjo não houve nos resultados que sagraram as campeãs do desfile, desde o primeiro (e suspeito) título da Beija Flor de Nilópolis, nos anos 70, ainda sob a ditadura. Com o fim do domínio militar, o bicho migrou para o lado "oposto" e foi muito bem acolhido por um Brizola governador do Rio, a despeito de ser ele um ex-fugitivo, então anistiado, do regime que os meganhas do bicho encarnaram. É um exemplo bem acabado das contradições que não faltam na sociedade brasileira. Hoje, 31 de março de 2016, comemora-se nos quartéis o aniversário do Golpe que o Governo de então dizia não sê-lo; já o Governo de hoje chama de Golpe o que não o é. Me poupem.

Record, 266 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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