"Exodus", por Leon Uris

quinta-feira, março 28, 2024 Sidney Puterman


"Exodus" é um híbrido de livro de história e romance. Ora pende mais para um, ora para outro. O início, ficção pura, é bem característico dos best-sellers que dominaram o mercado editorial norte-americano dos anos 50 aos anos 70. Diálogos curtos e personagens cínicos.

Sob este aspecto, o livro é bom. Ainda que, à medida em que o enredo se desdobra, os componentes fictícios acabem sendo escanteados pela densa abordagem histórica.

E aí, quando o assunto é História, não espere isonomia salomônica. A abordagem do autor se dá sob o ponto-de-vista dos hebreus. Mas isso não condena a obra. Como repito sempre, não há autor imparcial. Todo mundo tem lado. Porém, se o conteúdo é honesto e valioso, tá valendo.

Aqui vale. "Exodus" se tornou um marco para o entendimento de um conflito até hoje em curso.

O título do livro remete ao nome de um dos navios que zanzavam abarrotados de sobreviventes judeus, pelo Mediterrâneo, ao fim da Segunda Guerra Mundial. Os passageiros eram refugiados europeus. Sem terra ou pátria, cada indivíduo embarcado era o último componente de uma família chacinada. Eram remanescentes do Holocausto, à deriva e sem destino legal.

Em 1947, o fim de cada uma destas embarcações era incerto e se resumia a quatro opções:

Na tentativa de furar o bloqueio inglês, os navios zarpavam da França e eram 1) abordados nas proximidades do porto, e dali obrigados a retornar e despejar os judeus de volta em terra firme, donde eram reconduzidos para campos de refugiados na Alemanha; 2) abordados já em alto mar, daí escoltados até o Chipre, onde os passageiros eram trancafiados em campos de refugiados na ilha; 3) bem-sucedidos em desembarcar sua carga humana em algum porto da Palestina, e aí era um salve-se quem puder, com os judeus perseguidos pela polícia inglesa; 4) afundados à sangue-frio pela Marinha Real Britânica.

Os passageiros do Exodus eram fugitivos de um campo de refugiados cipriota. Seu capitão tinha por missão desová-los clandestinamente na cidade de Haifa, na Palestina. A viagem foi pra lá de romanceada e ajudou a catapultar as vendas da obra, que virou quase uma franquia: o longa-metragem "Exodus", estrelado por Paul Newman, arrastou multidões aos cinemas.

(Em 2007 foi publicado "Exodus 1947", por Ruth Graber, um sólido trabalho de reportagem investigativa, em que os passageiros do emblemático navio foram entrevistados e seus destinos - bem como sua origem - foram revelados.)

Já o roteiro de Leon Uris, após utilizar os capítulos iniciais para criar uma atmosfera de thriller de ação, logo revela seu principal objetivo, que é uma longa linha do tempo. Uris narra a vida das comunidades judias nas franjas do Império russo, vítimas frequentes de animados pogroms. Com o surgimento do sionismo, a perseguição estimula a imigração dos idealistas para a Palestina, no fim do século XIX.

O escritor faz deste recorte a gênese da trama. Se valendo da epopeia ficcional de dois irmãos, Barak e Akiva (nés Jossi e Yakov), que vão cinematograficamente a pé da Rússia ao Oriente Médio, o autor detalha as costuras e pressões políticas de um mundo com interesses excludentes, no início da Guerra Fria.

Abre uma janela interessante sobre as relações sociais árabes na Palestina da época, e de como a chegada dos judeus desestabilizou a exploração que os efêndis tradicionalmente faziam dos felás - o povo primitivo e ignorante que habitava os pântanos da região.

Se valendo das aldeias que proporcionavam interação comunitária, o autor pontua ao longo de todo o livro o contraste entre o que apresenta como ímpeto modernizador e criativo do colono europeu (os judeus) e a passividade característica do nativo local (os felás).

Também expõe o choque de culturas, contrapondo a igualdade de homens e mulheres entre os judeus (onde as mulheres protagonizavam até ações militares) à submissão das mulheres árabes - nas costas de quem caía o serviço pesado das aldeias, na função de semi-escravas dos maridos.

Após um período de relativa tolerância entre árabes e judeus, no início do século XX, onde havia uma rivalidade latente, amenizada pelos ganhos pecuniários que a presença judaica trazia para a terra e o povo local, o mandato inglês da Palestina se torna o catalisador do livro, incendiando a história.

Antagonistas cuja existência histórica acabou diluída na sequência interminável de conflitos que caracteriza a região, os ingleses - que ocupavam a Palestina com seu exército - são expostos como o maior inimigo do êxodo judaico. Após um curto período em que toleram e contribuem para o estabelecimento dos judeus, os britânicos, por uma mescla de interesses econômicos e políticos, passam a impedir a chegada dos judeus, ao mesmo tempo em que municiam e protegem os árabes. 

Este enfrentamento não só abre o livro, como citei - com os judeus sobreviventes da Solução Final confinados em um campo de refugiados no Chipre, sob vigilância inglesa -, como vai tomar boa parte da narrativa. São os judeus em guerra declarada contra os ingleses, em enorme desvantagem militar e numérica, e tendo que simultaneamente neutralizar as dezenas de grupelhos árabes que executavam ataques de emboscada.

Todo o universo geopolítico e diplomático que marcou o período é esmiuçado na obra. O avanço cronológico das tratativas internacionais em busca de uma solução que contemplasse todas as partes interessadas é descrito em detalhes.

A baixa perspectiva de sucesso e a reviravolta política que resultaram na imprevista aprovação da ONU à criação do Estado de Israel é apresentada voto a voto. Para quem desconhece as filigranas da História - eu e a imensa maioria da torcida botafoguense -, a reprodução da Assembleia é uma oportunidade ímpar para aprender como as coisas se deram, em um passado nem tão remoto assim.

Ao fim, Uris retoma os personagens que lhe ajudaram a contar sua história. Ainda que celebrando a vitória parcial por terem construído um lugar para os judeus, as mortes no confronto constante com os árabes, em um contexto onde por algum tempo pareceu possível a coexistência em harmonia, impedem um final feliz.

Compreensível. Publicado há 65 anos, boa parte do texto parece ter sido extraído do jornal de hoje.

Editora Record, 713 páginas  |  10a edição, 2023  |  Copyright 1958 | Tradução Vera Pedroso


Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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