"Palestina", por Joe Sacco

domingo, abril 07, 2024 Sidney Puterman



Muito antes da Palestina se tornar a popstar do debate eletrônico, no tempo em que ela era apenas mais um lugar esquecido, superpopuloso e conflagrado do planeta, o jornalista norte-americano Joe Sacco esteve lá e fez uma série de reportagens sobre a região.

Isso foi há mais trinta anos, no início do anos 90. Estávamos no longínquo século passado. Como não havia rede social para estimular e domesticar a opinião coletiva, ninguém queria saber de Palestina. Mas Joe, um repórter por natureza, via a questão de forma diferente. Um povo oprimido, mantido sob violência em condições insalubres, era um banquete para um jornalista apaixonado por conflitos.

Ainda mais para um do tipo que desenhava suas reportagens - e as publicava em forma de HQ. A série de tiras virou livros. Vieram os prêmios e o reconhecimento internacional.

Justo. Porque não pense você que, por se tratar de HQ, Sacco faz um jornalismo "menor". Ledo engano. Ao contrário, seu traço potencializa o conteúdo. A Palestina retratada é tensa, pobre, suja - e os quadrinhos cheios de volume do autor nos arremessam no ambiente irrespirável dos seus habitantes. Proporciona uma substância que uma foto raramente poderia atingir.

E haja substância. O momento histórico do recorte, visto em perspectiva, era ímpar. O Acordo de Oslo ainda não havia sido assinado entre os líderes Yitzhak Rabin e Yasser Arafat. À época, a promoção de um acordo era um ansiado passo rumo à paz. Seu provável acerto pontificava na capa dos jornais, ao mesmo tempo que era solenemente ignorado pelo público. Na América do Sul se jogava a última rodada das eliminatórias e o Brasil faria um jogo decisivo contra o Uruguai, no Maracanã, para obter (ou não) a classificação para a Copa do Mundo de 1994.

Romário emitiu nosso bilhete para o Mundial nos Estados Unidos (que venceríamos) e Clinton mediou o acordo, onde Israel entregou parte da Cisjordânia para controle palestino, reconhecendo a OLP de Arafat como legítimo governante do território, ao mesmo tempo que a OLP, em nome da Palestina, reconhecia o direito de existência do Estado de Israel.

Era para ser o início de um processo de harmonia compulsória. Mas, a despeito das expectativas, não funcionou. Os palestinos estavam divididos em muitas correntes e disputavam poder com a OLP. Um judeu reacionário assassinou Rabin em um evento público. Os avanços derreteram. Paz nunca foi um produto disponível nas prateleiras daquela estreita faixa de terra no Oriente Médio.

Pouco antes disso, o jornalista passou algumas semanas visitando a Cisjordânia e a Faixa de Gaza. Esteve também em Tel Aviv. Os dois cadernos do "Palestina" de Joe Sacco dos quais falamos aqui são resultado de entrevistas e viagens in loco realizadas antes do acordo.

E o que vemos na obra é que, meio século após o estabelecimento do Estado de Israel e após várias guerras árabe-israelenses, a Palestina prosseguiu um barril de pólvora. Pois é. E, como você sabe, continua sendo até agora, em 2024: o grupo político que governa a Faixa de Gaza - o Hamas - fez um ataque-surpresa a comunidades israelenses fronteiriças (ataque cuja finalidade era o terror, sem objetivo militar) e mataram a sangue-frio 1.200 pessoas, nas ruas e em suas próprias residências. Degolaram homens e estupraram as mulheres. Sequestraram mais de 250 pessoas.

Até o momento em que escrevo esse post, mais da metade dos reféns permanece em poder dos palestinos. Como resposta, Israel bombardeou e invadiu a Faixa de Gaza. Apesar de já terem morrido mais de trinta mil palestinos (segundo o próprio Hamas, que não é uma fonte confiável), os terroristas se recusam a devolver os reféns. O front se estende e não há previsão de trégua.

Por distorção deliberada dos fatos, desde o início da guerra, em 7 de outubro do ano passado, a reação de Israel é maliciosamente chamada de "genocídio" pela oposição midiática. Ops, genocídio? Vale frisar que, contraditoriamente à tese, a região ostenta a mais alta taxa de natalidade do planeta. 

Ou seja: quem souber matemática, que faça as contas.

Perceba que o subtítulo do primeiro livro, "Uma nação ocupada" - ainda que a Palestina não fosse, nem nunca tivesse sido, uma nação - revela de que lado está o autor. E daí?

Nada contra. Ter lado é válido. Já mentir, distorcer, caluniar - não é. E Joe não faz nada disso.

Segundo ele comenta na introdução, os quadrinhos foram publicados anteriormente e somente depois organizados em dois livros. Talvez as tiras tenham sido produzidas em momentos diferentes. O primeiro livro é mais impressionista, e enfatiza o impacto provocado no autor pela realidade local. Investe mais no choque de culturas - um gringo imerso numa comunidade palestina sob ocupação.

Já o segundo livro - cujo subtítulo é apenas "Na Faixa de Gaza" - é mais dissertativo, com uma massa de texto no mínimo três vezes maior. Traz mais depoimentos locais e se debruça metodicamente sobre cada uma das facetas de um povo dominado, mas insubmisso. 

O cartunista foi muito bem aceito pela população, que logo identificou no maltês-norte-americano um defensor. Foi recebido nos lares com a tradicional hospitalidade árabe. As pessoas se abriram. Revelaram seus pensamentos, contaram suas estórias. O autor fez por merecer a confiança e produziu um libelo em nome do povo palestino.

Mas o jornalista evita qualquer laivo de pieguice e também a manipulação emocional que depoimentos exageradamente passionais poderiam provocar. Mesmo que em prol do povo ocupado, ele é ininterruptamente crítico. O que reputo como o principal ponto do seu trabalho. Defender uma convicção e concomitantemente expor suas contradições é uma virtude e tanto.

Vale abrir um parênteses. Infelizmente, esta riqueza interpretativa é cada vez mais rara no novo mercado do antagonismo compulsivo. A ideologia é agora uma ferramenta político-eleitoral e a disseminação do conhecimento se tornou um subproduto torto da ideologia. Pena.

Voltemos ao trabalho do maltês. Se impactante na prosa, ele é contundente na estética.

O traço de Joe Sacco visa o desconforto. Os personagens são vistos de forma angulada, de baixo para cima, ou em closes demasiados, nos deixando muito próximos das suas fisionomias grosseiras e dos seus narizes volumosos. Em muitas páginas o texto fica na quina dos quadrados, e temos que torcer o rosto (ou o livro) para lermos o conteúdo.

A massa de letrinhas é grande. Pontos básicos da história dos judeus e dos palestinos são repisados, de forma sumária. No primeiro livro, de uma frase bíblica onde Moisés delimita as fronteiras do Estado de Israel, Sacco pula para o mandato inglês da Palestina após a Primeira Guerra Mundial.

O autor oferece seu ponto-de-vista por meio da sua interpretação das figuras públicas e dos personagens que cria. Na época do mandato, os ingleses são esnobes que decidem o destino alheio em seus gabinetes aquecidos. Na atualidade, os judeus são retratados como jovens bem-nascidos com preocupações supérfluas. Os palestinos são os que sofrem.

Este sofrimento é dissecado em minúcias no segundo livro. Sacco investe centenas de quadrinhos na reprodução de lares e intermináveis chás, em reuniões de homens que relatam a opressão israelense, a reação palestina, as prisões e espancamentos, as péssimas condições de vida nas cidades palestinas.

Expõe como a juventude, desde a sua mais tenra idade - os moleques são cooptados com treze anos para participar das facções -, é preparada para o confronto contra as forças de ocupação. A morte destes meninos é a consequência natural do embate desproporcional. Os caixões são carregados pela multidão, envoltos em bandeiras e embalados por cantos de ódio, gerando combustível para a causa e aliciando novos garotos, que em breve desfilarão como novos cadáveres em velhos caixões.

Ao não aceitar que o governante judeu governe a terra - conquistada em um combate reativo às ameaças e ao terror islâmico -, o enfrentamento é constante e o sofrimento da população idem. Não havia solução à vista na narrativa de Joe Sacco. Também não há agora, trinta anos depois.

A pena detalhista de Joe nos acerta com o ângulo de visão dos habitantes. É um povo que vive sob o estigma do preconceito, manietado por seus próprios dogmas. O jornalista, entretanto, é tímido na denúncia de como a catástrofe palestina é massa de manobra na mão dos vizinhos árabes .

São todos também inimigos dos judeus, mas que recusam ajuda aos palestinos, de cuja desgraça se aproveitam. Nem Sacco denunciou antes, nem a mídia planetária denuncia agora.

O quadrinista conta o que quer, da forma que vê. Eu entendo as partes, só que vejo o todo de forma diferente. Mas não tenho como não me render à virulência dos seus quadrinhos e à essência honesta das suas convicções. Ler Joe Sacco é um pedágio obrigatório para entender a questão palestina.

Já no fim do segundo livro, ele reproduz em uma sequência de frames sua conversa casual com um palestino idoso, sentado à rua, em Jenin. O que ele disse, em 1992, ecoa em 2024.

"Isso nunca vai acabar. Eles querem esta terra. Nós queremos essa terra. Nunca haverá paz."

Conrad Livros, 246 páginas  |  3a edição, 2004  |  Copyright 1999 | Tradução Cris Siqueira
Título Original: "Palestine: A Nation Occupied - In The Gaza Strip"

P.S.: Para evitar que seu interesse na leitura seja desestimulado, pule o prefácio verborrágico e ginasiano assinado por José Arbex, no primeiro livro. Raso e prolixo, parece mais uma redação do Enem. Vá direto para os quadrinhos. Já o prefácio do segundo livro, do filho de palestinos Edward Said, é excelente.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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