"Jornalistas", por Vitor Sznejder

segunda-feira, dezembro 21, 2020 Sidney Puterman


Depoimentos valiosos. O autor, Vitor Abrão Sznejder, não tem invencionice. Convida para meia hora de papo profissionais que marcaram época no jornalismo brasileiro. Ricardo Boechat, Merval Pereira, Evandro Carlos de Andrade, Luiz Garcia, Mino Carta e Rodolfo Konder, além do americano Jonathan Beard. Uau. Que timaço, ehm? É jogar a camisa pro alto e eles que se resolvam. Pois é o que fazem. Os jornalistas enfileiram minudências, pontapés e confissões, sem nenhum medo do amanhã. Alguns descem a lenha de forma mais democrática, outros são mais reservados, mas todos revelam detalhes que você não vai encontrar por aí. O bom é que não tem encheção de línguiça. O autor, jornalista como seus entrevistados, rola a bola e faz as perguntas certas. O resultado é um registro precioso da carreira de cada um e que enriquece a memorabilia do jornalismo tupiniquim, numa excursão informal pela cozinha dos grandes da imprensa brasileira, como O Globo, o Jornal do Brasil, a Veja etc. E não só: avançando devagarinho, deslizando pela narrativa pessoal de cada um, quando se vê o tema foi longe e a gente está diante da história do Brasil. O que dizer do relato do Konder, que estava na cela ao lado quando a tigrada da ditadura suicidou o Vladimir Herzog? e nem era acaso, os dois eram colegas de redação e do Partidão, chegaram a trocar mensagens cifradas pouco antes da morte do Vlado - assassinato que até hoje repercute como símbolo do que houve de mais odioso no regime militar. Segundo Konder, um dos últimos a escutar os gritos de Herzog, o assassinato foi um erro técnico, bateram mais forte e no lugar errado. Vladimir teria dado com a cabeça na pia durante o enquadramento e os torturadores entraram em pânico ao ver o jornalista morto. Chamaram os demais presos para testemunhar uma simulação patética de suicídio. Na pressa de desmontar o cenário, no dia seguinte Konder foi transferido para o DOPS, onde não havia tortura, e de lá solto, para daí fugir do país (de novo). Mas, alto lá - volto depois ao Konder, porque quero falar da matéria-prima primordial dos entrevistados: jornais e jornalismo. Para melhor situar o leitor, ressalte-se que as entrevistas foram todas feitas entre os anos de 2000 e 2001. Alguém do contra poderia dizer - "então é tudo matéria velha". Velhíssima, caro leitor. E, por isso, saudavelmente descontaminada da burrice coletiva que vem dominando a indigente troca de ideias dos últimos 20 anos. Toca o barco. Sznejder abre com Evandro Carlos de Andrade, diretor de jornalismo da Globo à época, seu guru e primeiro contratante. Como a maioria de nós, Evandro teve seus tempos de foca. Seu primeiro emprego foi no Correio Radical, na Rua da Quitanda, que o próprio Evandro define como "um pequeno pasquim (...), um jornal ordinário, de polícia, chantagista, para tomar dinheiro de bicheiro". Ou seja, a boa e velha imprensa - Chateaubriand que o diga. Evandro não durou dois meses no jornaleco e logo estava no Diário Carioca, onde foi contemporâneo do Castelinho, do Armando Nogueira, do Maneco Muller, do Tinhorão, do Antonio Maria, do Paulo Mendes Campos e do Stanislau Ponte Preta - e, isso é Brasil, ainda teve como contínuo o Cartola, que no futuro brilharia como lavador de carros. Evandro revela uma alta dose de pragmatismo ao comentar sobre a corrupção ("é uma das condições humanas, e é a cobiça assegurada pelo conforto da censura que leva o homem a ceder à tentação do conforto ilegítimo") e lista Getúlio, JK e Castelo Branco como o "trio de ouro no exercício da política no Brasil". Vaticina que "quem fizer a análise, mais tarde (...), dará o devido crédito ao Fernando Henrique. Não é comum, em nenhum lugar do mundo, que o poder seja ocupado por alguém tão preparado como ele". Ressalto eu que há poucas semanas li o Carlos Alberto Sardenberg se referindo ao mesmo FH como "o melhor presidente que tivemos e que teremos". As opiniões são deles - não endosso, nem refuto, mas cito. Provocado por Sznejder, Andrade rechaça que ACM (garotada, vê quem foi esse cara aí no google, podem procurar também por "Toninho Malvadeza") pautasse o jornalismo da TV Globo. Se queixa ainda que a redação da Folha tivesse por determinação expressa "perseguir a Globo". Evandro faz uma apaixonada defesa da ilibada honestidade do jornalismo da Globo ("não temos interesse comercial nenhum a defender  - não queremos saber quem são nossos anunciantes, isto não nos interessa"). Ressalta, porém, que, quando entrou no jornal, em 1972, O Globo, o qual considerava o grande jornal do Rio, estava posicionado como "um jornal de apoio irrestrito ao regime". Concordo em parte - alinhado ao regime, sim, maior do Rio, não. Recorro aqui ao dito pelo próprio Evandro, nas conversas entre ele e Roberto Marinho, onde o tema dominante era a modernização do jornal ("ele queria me ouvir, saber o que eu achava que devia ser um jornal moderno, ágil", reclamou "eu não aguento mais levar tanto furo!", e aí "começamos (...) a mexer no jornal"). Tenho para mim que o jornal carioca reputado como o maior do Rio, no início dos anos 70, era o JB. Evandro é um dos que criticam o "Notícias do Planalto", do Mario Sergio Conti - tanto a checagem imperfeita das fontes, como o tratamento equivocado a alguns dos jornalistas citados no livro. Não é o único a desdenhar do Conti, como veremos mais à frente. Já o Boechat, certamente o mais popular dos entrevistados pelo livro, pela presença constante no rádio e na TV, e que nos deixou súbita e tragicamente, ano passado, fica aqui mais próximo dos seus admiradores. Não só pelas suas tiradas espirituosas (como ao se dizer mais monogâmico do que fiel: "Monogamia é um fato estatístico; a fidelidade é um fato afetivo, moral, ético. Sempre achei muito trabalhoso pular a cerca. O infiel tem que ter boa memória"), como pela sua auto-declarada função jornalística de "atirador de elite", o sujeito que peneira trocentas informações por dia, em busca das boas ("eu não sou propriamente workaholic, eu apenas sei que, se eu trabalhar menos, não consigo notícias"). Boechat, brasileiro nascido em Buenos Aires, que cresceu num berço de comunistas e que aos 14 anos estava no Partidão, ainda assim foi assessor de imprensa do Moreira Franco e pau-pra-toda-obra do Ibrahim Sued, dois personagens altamente identificados com a direita. Sznejder o provoca quanto ao caso do Dossiê Cayman, que Boechat assume ter sido o primeiro a divulgar na mídia (o propalado dossiê depois se revelou ter sido uma armação, com o objetivo de incriminar o PSDB num caso de desvio de sobras de campanha). O entrevistado não se deu por vencido: "Até hoje acredito que existe um dossiê sério, verdadeiro, como acredito piamente no fato de que o ministro Sérgio Motta e seus companheiros de São Paulo deram um destino qualquer à monumental sobra de dinheiro da campanha da primeira eleição do Fernando Henrique Cardoso. E não creio que esse destino tenha sido a ABBR". Pois é. Políticos não são muito chegados a uma caridade, à exceção da familiar. Já o Merval Pereira, eu nem imaginava, estudou pra advogado e começou estagiando no Diário de Notícias ("um pardieiro horroroso... na cantina os velhinhos molhavam o cream-craker no café, colarinhos puídos e gravatas besuntadas... eu olhava aquilo e pensava: meu futuro é isso aí! não vai dar certo..."). Isto foi antes de parar em O Globo, em 1968, onde, no primeiro dia, o chefe de redação, Leonídio Barros, foi logo lhe dizendo: "Merval e Leonídio são nomes de crioulos. Como nós somos brancos, eu me chamo Barros e você Pereira". O Pereira ressalta que "o Barros era mulatíssimo". Nomes à parte, Merval continuou com o pressentimento de que aquilo não ia dar em nada. Sua avaliação do jornal não era das melhores. "O prédio do Globo era outro pardieiro, uma redação velha em todos os sentidos. Havia apenas eu e mais duas pessoas com idades em torno de 18 e 19 anos e poucos jornalistas full-time: a maioria era de funcionários públicos que faziam bico aqui. O salário era muito baixo." Merval me endossa e confirma a posição dos jornais cariocas à época: "o Jornal do Brasil já era mais organizado profissionalmente, o Estadão também. O JB era o grande jornal da ocasião, o sonho de todo mundo". Obrigado aí, Merval. Fica assim o consagrado Evandro corrigido. Vitor provoca revelações curiosas do Merval, como o fato de que ele abandonou o jornal em 1973 para fazer um curso de gravura em metal em Londres. Dificil imaginar. Na volta para O Globo, outra surpresa: foi cobrir o Esporte, antes de seguir para Brasília como repórter credenciado, onde acabou premiado com o Prêmio Esso por uma série de reportagens sobre a sucessão do Geisel, que acabou virando livro. Diz Pereira que o livro é citado até hoje "tanto por estudiosos brasileiros, quanto por brasilianistas". Se alguém souber onde tem um exemplar à venda, tô no páreo. Por conta da sua função na gestão da empresa na época em que se deu a entrevista, fez questão de citar a importância da lucratividade no empreendimento jornalístico: "Estamos procurando um caminho que coloque o jornalista com visão de negócios, sem perder o foco jornalístico. Porque obviamente é uma besteira fazer um jornal que não vá dar lucro." Ilustra com um chiste do antigo editor do New York Times, Abe Rosenthal, que, numa festa, só escutava elogios ao New York Herald. Foram tantos, que Abe tirou um dólar do bolso e pediu a um dos celebradores do jornal para trazer um exemplar da banca mais próxima, ao que o sujeito respondeu: "Você sabe que o Herald não existe mais". Rosenthal devolveu, na bucha: "Então bom é o meu, que continua saindo todos os dias". Só posso concordar. O JB não sai mais - ainda que, com o nome vendido, vez por outra um pasquim financiado por políticos faça um relançamento eleitoreiro do título. Triste sina essa em que os maiorais voltam reencarnados como picaretas de esquina. Sznejder traz também as estórias do italiano Mino Carta, que não foram poucas. Além das passagens em Veja e Isto É, Carta é sócio e fundador da Carta Capital, em cuja redação paulistana se deu a entrevista. Mino veio parar no Brasil trazido pelo pai, em 1947, com medo da Terceira Guerra Mundial. No início dos anos 60 foi convidado para assumir o comando de um lançamento da jovem editora Abril, "Quatro Rodas". Mino explicou que não sabia dirigir, mas o convite de Victor Civita não deu margem à recusa. Civita também já tinha confidenciado a Mino que, em 1961, lançaria uma revista que se chamaria Veja, "para ser uma concorrente da Manchete". Não obstante os convites do pai, Mino é pouco condescendente com o filho, Roberto Civita, a quem rotula de "medíocre e arrogante". As críticas nem sempre são específicas. "O jornalismo brasileiro hoje [2000] é excepcionalmente ruim." Sznejder ainda tenta tirar um nome que ele aprove ("Mas você não citaria um bom jornalista da sua geração?"), só que Mino é irredutível: "Excelente foi o Cláudio Abramo, é da geração anterior". Mais à frente, elogia alguns nomes, entre eles Paulo Henrique Amorim e Elio Gaspari. Já o Mario Sergio Conti permanece pouco popular entre os entrevistados do Vitor. Seu livro "Notícias do Planalto" também ganha poucas estrelas: "O livro é jornalisticamente vulnerável e esteticamente discutível". Euzinho aqui faço coro e vou além: o tijolaço de Conti sustenta versões que não param em pé, como a tese de que o gordo bigodudo PC Farias foi morto pela jovem amante por "ciúmes" e que o passageiro ejetado para a morte de um avião da TAM era o responsável pelo próprio vôo solo (literalmente), ao ter pedido uma poltrona na janela. Difícil de engolir. Mino, desenxabido, se auto-elogia, citando alguém que teria dito que ele "era chato, mas nunca ficou com o rabo preso". Bem, eu cá tenho minhas dúvidas sobre a rotina do referido rabo no governo lulopetista. Como mencionado no post "À sombra do poder", livro escrito pelo ex-assessor de imprensa de Dilma Rousseff, parece que Mino se queixava de que sua simpatia ao governo não vinha sendo monetariamente bem recompensada. Voltando ao Rodolfo Konder, ele, assim que saiu do CPOR, passou em um concurso para a Petrobras (assunto do post da semana passada), no início dos anos 60. Na empresa, logo se meteu com o Partidão - não fosse ele filho de um antigo medalhão do partido, Valério Konder, que cumpriu cadeia com Graciliano Ramos e virou personagem em "Memórias do cárcere". Pois Rodolfo, ainda jovem, se tornou um dirigente sindical importante - tanto, que em 1963 integrou uma comitiva que foi de Duque da Caxias a Brasília confrontar o presidente João Goulart. Na sala do homem, trancou ("eu perdi a voz, varado de medo"), mas o colega Fernando Autran salvou a pátria e conseguiram o que foram negociar. No golpe de 64, Rodolfo foi à rádio Mayrink Veiga ameaçar, no ar, os golpistas: "Nem uma só gota de petróleo da Petrobras servirá aos tanques da reação". Tiro de chumbinho. Os militares pegaram as gotas todas e os tanques idem. Konder percebeu que a barra pesou e pediu asilo na embaixada do México. Meteram ele com 60 outros asilados, incluindo o famigerado cabo Anselmo. Konder foi pro México mofar numa espelunca até conseguir voltar, via Peru, Chile, Argentina e Uruguai, onde encontrou novamente o Jango, mais o Brizola e o Darcy Ribeiro. "Conseguimos organizar uma reunião de todos", lembra ele, "mas foi um fracasso total, ninguém se entendia". Retornou ao Brasil clandestino, e aos poucos voltou à legalidade, sem ser importunado. Foi para São Paulo, onde trabalhou na "Realidade", e depois na "Visão", quando se tornou colega do Herzog, que mencionei lá em cima. Pela revista, viajou o mundo - Paris, Nova York e Las Vegas - e, numa noite qualquer, foi acordado em casa pela tigrada: "O senhor está preso, faça o favor de me acompanhar". Hospedado às expensas governamentais no DOI-Codi, tomou choque, entrou na porrada e testemunhou o assassinato do Vlado. A morte do jornalista judeu acabou por aliviar a pressão nos demais presos. Foi transferido para o DOPS, onde foi fichado pelo Dulcídio Wanderley Boschilla, dublê de árbitro de futebol e funcionário do regime. Foi solto, fugiu para o Canadá e fez a vida lá fora. Na volta, o velho comunista acabou secretário de Cultura do Paulo Maluf, a quem elogia: "Maluf foi corretíssimo comigo (...). Eu defini a política cultural, suprapartidária, e ele aceitou. Me deu sempre apoio, o orçamento foi plenamente respeitado e era excelente: 120 milhões de dólares por ano". Espicaçado por Sznejder, se lamuria: "Eu digo sempre que não larguei o socialismo, ele é que me abandonou. Porque o socialismo morreu, lamento. Fui ao enterro, chorei lágrimas de esguicho. Mas aquilo que achávamos que era um sonho, era um pesadelo." Tendo contracenado com tantos personagens da história recente, ainda dá para incluir o covarde Pimenta Neves, jornalista que matou a ex-namorada com um tiro na nuca. Amigos, trocaram confidências às vésperas do assassinato. "Foi uma execução", reconhece. "Ele a baleou pelas costas e foi lá e deu um tiro na cabeça (...). Mas depois eu fiquei com pena. Ele se matou ao matá-la." Konder poderia ter economizado a pena: 20 anos após o crime, Pimenta Neves está solto. Passou uma meia dúzia de meses na cadeia. A tal Justiça brasileira. Me fez falta aqui o Alberto Dines (autor do prefácio), de quem o autor era amigo dileto e a quem eu admirava desde sua biografia de Stefan Zweig, "Morte no paraíso" (comentada aqui no blog). Estamos todos de certa forma ligados por nossos paradeiros terem se cruzado em Petrópolis, do que simultaneamente me orgulho e entristeço - pela maneira dolorosa como Stefan escolheu o paraíso para se despedir do mundo vil. Por tudo isso e muito mais, "Jornalistas" faz jus ao título. Oferece fragmentos consistentes de vidas relevantes. Sua capa despretensiosa promete pouco e surpreende pela riqueza que contém. Um pequeno grande livro. "Ah, Sidney, você vai me dizer que um livrinho de menos de 100 páginas é cheio de conteúdo relevante?" Bem, alto lá. Se o autor ficasse enfeitando o pavão, dava umas 250. Porque relevância é que nem veneno. Uma dose pequena mata. Pois com as noventa e nove páginas desse Jornalistas dá pro sujeito morrer feliz. Neste aqui a dose é boa.

Editora Mauad, 99 páginas

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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