"As benevolentes", por Jonathan Littell

terça-feira, março 07, 2023 Sidney Puterman


Fechei o livro, soltei um palavrão. Bestial. Um calhamaço antológico.

Vencedor do Prêmio Goncourt - a principal premiação literária da França -, a obra seguiu incensada mundo afora. O autor foi comparado a Tolstoi pelo Le Monde. Foi considerado pela crítica como um "novo Guerra e Paz". Videntes da crítica o profetizaram como "futuro clássico' da literatura". Sem contar os paralelos com Moby Dick e Psicopata americano. Por aí você vê.

Também me rendi. Um Apocalypse Now nazista. O texto é todo o tempo (e olhe que 900 páginas são um bocado de tempo) soberbo, visceral, inebriante. Mesmerizado, pasmei com as páginas finais. Terminei o livro e sentei para escrever minhas mariolas ainda sob o transe da leitura.

Sou fuçador. Fui catar matérias na mídia americana e francesa (as duas nacionalidades do escritor) quando da época de lançamento do livro, quinze anos atrás. Recortei dois deles e estampei aí em cima na ilustração, pra dar um molho. Mas quem vê o focinho, não vê o bicho inteiro.

Uma das matérias abre altaneira, pra logo em seguida descer o relho no lombo do autor e do livro. Esculhamba com os dois. Convoca gente de prestígio pra ajudar no linchamento. Sei não. A má vontade, escancarada, pode até ter sido isenta, mas achei over. Discordo dos bambambans.

Como já naquela época o autor havia vendido os direitos para publicação nos EUA por US$ 1 milhão de dólares, havia faturado os dois prêmios mais importantes da França e era o assunto do momento no circuito literário, alguém tinha que meter o pau. É muito dinheiro. Vá saber o que tem por trás.

Como eu não tenho nada a ver com isso, larguemos essa lenga-lenga e vamos direto ao conteúdo.

Ops, antes me deixe dizer o que ainda não disse. É uma uma ficção. Mas, às vezes, não parece. 

A estória é narrada em primeira pessoa pelo oficial nazista SS Maximilien Aue. Nascido na França, filho de mãe francesa e pai alemão, seguiu ainda rapazola para fazer os estudos em Berlim - onde se entusiasmou com a diarreia colossal do nazismo.

Uma vez lá, sob a influência viral da fanfarronice nacional-socialista, se achou. Daí para deixar para trás a casa e suas raízes francesas foi um pulo. E ainda houve alguns estímulos adicionais: antes da sua partida, seu pai alemão tinha sumido e a mãe deu o marido por morto. Pior: a mãe se casou novamente, e desta feita com um francês.

Maximilien passou a odiar o padrasto e, por tabela, a mãe. Sua ida, adolescente, para a Alemanha, era ajaezada com este pano de fundo.

Littell se esmera e compõe um personagem com distúrbios emocionais variados e um histórico familiar intrincado. Homossexual, carregou vida afora um grande trauma: o rompimento da relação incestuosa (que manteve ao longo de toda a infância) com sua irmã gêmea.

Nauseante, né? Não à toa, Maximilen Aue, um jovem tímido e pacato, era um sujeito perturbado.

Mas toda esta barafunda psicológica do narrador o leitor só descobre aos poucos. Esta e outras. Em não poucos casos, se assombrando - como na inquietante visita que ele fará à mãe, na costa mediterrânea. Mas não darei spoiler, muito invasivo. Injusto com o autor e com você que me lê.

Aceito pela SS, Aue ascende na hierarquia da corporação, derivando por alguns dos principais cenários da guerra nazista. Vadia e filosofa enquanto participa das ações em Kiev, na Crimeia, no front russo e na Marcha da Morte de Auschwitz. Eruditos, os personagens deitam cátedra sobre a ramificação ancestral dos idiomas eslavos.

Das atividades intelectuais e administrativas da retaguarda, Maxilimian acaba sendo lançado no olho do furacão, no Leste, onde dois milhões de soldados alemães estavam cercados pelo exército soviético. Uma certa falta de empatia com a panelinha do seu superior direto - com direito a um desafio para um duelo - o levara a ser indicado para morrer gloriosamente no cerco de Stalingrado.

Após ter levado um balaço na cabeça que lhe varejou o crânio, enquanto flanava nas margens do Volga, Aue é promovido a Sturmbahnführer - o equivalente ao nosso major - e, recuperado, e já em uma nova função, cabe a ele visitar in loco a complexa rede de extermínio da população judaica, visando prosaicamente a introdução de melhorias práticas no processo.

A maioria dos protagonistas do genocídio desfilam pela passarela, e alguns são assíduos interlocutores do convicto Aue. Entre eles, Himmler, Speer, Eichmann, Frank, Hoss e outros menos ilustres tricotam com o narrador, em reuniões de trabalho, caçadas e surubas.

Depois de zanzar pelas diversas instalações industriais de assassinato, quase como um ombudsman, Aue é encarregado da tarefa de auxiliar Speer, visando poupar do extermínio os prisioneiros ainda aptos. A intenção era que eles pudessem ser utilizados como força de trabalho no esforço de guerra - vã tentativa, como hoje sabemos; o nazismo era especializado em matar, não em salvar.

Em seguida, Aue parte com Adolf Eichmann para a Hungria. O personagem se tornou confidente de um dos mais execrados nazistas criminosos de guerra - uma fama conquistada por Eichmann a posteriori, graças à sua rocambolesca captura pelo Mossad em Buenos Aires, e pelo célebre livro de Hanna Arendt, "Eichmann e a banalidade do mal".

Durante muito tempo aclamada, hoje esta visão da "banalidade do mal" é controvertida e contestada. Mas a celeuma fez deste burocrata do transporte de judeus para o abatedouro uma figurinha carimbada no panteão das bestas-fera do nazismo.

Doravante, a narrativa testemunha o recuo das forças alemãs, em fuga diante do avanço russo. Cada trecho é uma epopeia - e são inúmeras, porque Littell vai acompanhando estrada a estrada cada etapa da derrocada alemã, cada gradativo apertar do torniquete.

Berlim é a referência de dissolução do aparato do Estado. O protagonista torna a ela diversas vezes durante a obra, e acompanhamos a deterioração da cidade, ainda que sob a ótica de um oficial da SS cercado de privilégios - e desfrutando do melhor possível em uma cidade sob bombardeio diário.

A fantasia está presente em inúmeras passagens e personagens, dando um quê de uma letárgica viagem psicodélica pelos intestinos da História. Vilões intangíveis e onipresentes como Mandelbrod e Lelland, servidos pelas suas amazonas Hilde, Helga e Hedwig, fazem uma miscelânea mezzo nórdica mezzo helênica, com uma parafernália protocolar que nos remete aos clássicos filmes de 007.

E o que dizer da dupla de inspetores, Clemens e Weser, que nos fazem lembrar de Dupond e Dupont, os tiras gêmeos das bandes desinées de Tintin? Aparecem do nada, como um relógio cuco, e retornam para sua casinhola, sempre a um triz de finalmente pegarem Aue.

Eles surgiram, de forma inesperada (como em todas as suas demais aparições), na mansão abandonada na fronteira suiça onde o protagonista se auto-exilou, numa bad trip despirocada (na verdade, não é o adjetivo mais adequado) e também numa estação de metrô semi-submersa e num zôo em chamas, com gorilas mortos a golpes de baioneta e rinocerontes estourados por obuses.

Em tempo: esta imersão na residência alpina do cunhado nobre e paralítico, o junker ascético Von Üxküll (que casou com a irmã gêmea de Aue, mas não tinha como comê-la), é o ponto de partida para uma travessia alucinada de três SS - dois oficiais e um motorista - pelas franjas do império nazista invadido pelos russos.

Aue, seu motorista Piontek e o sarcástico e hedonista anjo-da-guarda de Aue no livro, o então Standartenführer Thomas Hauser, seguem de carro e depois a pé por centenas de quilômetros, tentando voltar ao que restara da Alemanha ainda sob controle alemão.

Seu encontro com uma patrulha mirim sanguinária de volkssturm - uma versão mais infernal dos protagonistas infantis dos pickpockets londrinos de Charles Dickens ou dos capitães da areia de Jorge Amado - é mais uma das muitas licenças macabro-poéticas de Littell.

No retorno derradeiro à Berlim em ruínas, temos o primeiro encontro de Maximilian Aue com Adolf Hitler. O livro está acabando e eles estão, enfim, cara a cara - não fosse tão cara a cara, a intempestiva ação imaginada pelo autor não teria como acontecer. Mais não conto.

(Aue já havia estado no mesmo ambiente que o führer, uma palestra para centenas de oficiais, ainda com a guerra indefinida, mas o viu somente à distância.)

Como me comprometi em não dar spoilers, não posso avançar mais na descrição do encontro entre os dois. Pena. Mas a verdade é que a partir daí o livro entra em seu twist final, com os personagens sendo tragados pelos acontecimentos, onde a fantasia toma definitivamente o lugar da realidade. Meio que aquele sonho do capitão Rick Deckard em Blade Runner, só que sem a beleza kitsch do cavalo branco, substituída aqui por cadáveres, incêndios, vísceras e excrementos.

Parece que muita gente detonou. Valorizaram em excesso os cacoetes desta narrativa, filha da estética do terceiro milênio. É recheada de sexo grotesco e confissões execráveis. Se o personagem dava o rabo ou não (dava), se o pai do autor era judeu ou não (era), para mim é periférico. Importa que a substância caudalosa da obra de Jonathan Littell ocupa os espaços como um rio de lava.

Gente de peso concorda, o que me dá algum crédito. Ganhou os seis mais importantes prêmios literários da França - sendo que é apenas a segunda vez na história que uma mesma obra abocanhou os dois mais importantes, o Goncourt e o da Académie Française (que eu já mencionara acima).

A grita, contudo, tem sua razão de ser. "As benevolentes" não viaja bem com as velhas normas da escrita. Um jovem judeu que escreve se colocando no lugar do perpetrador nazista, um assassino cínico e gay, é um pouco demais para as gerações passadas, mesmo as boas.

Só convém não esquecer que a narrativa do ponto-de-vista das vítimas do Holocausto é o que temos aos borbotões. Sem sombra de dúvida, é fundamental que existam. São depoimentos que denunciam o genocídio e contribuem para que evitemos que ele se repita.

Mas o único lugar onde o olhar do assassino - mesmo o zé ruela pau-mandado - pode ter espaço é na literatura. É para isso que ela se presta. Na vida real, nenhum psicopata confessou a índole criminosa do regime, nem seu próprio interesse em se beneficiar do sistema. Os que foram presos negaram e se disseram apenas obedientes. Os fugitivos desapareceram. Hoje estão todos mortos.

Do nada surgiu um sujeito que chamou para si a narrativa de quem mata. Quem ajuda a girar a manivela da burocracia do Estado genocida. Que aperta o gatilho nas execuções raciais. Que bebe e se empanturra às custas dos chacinados. Que desfruta do seu status de oficial medalhado. Foram milhões deles e não havia um que se colocasse na pele do funcionário de carreira da SS nazista.

Jonathan Littell assumiu esse desafio. O establishment uivou contra a existência do autor. Mas o livro já estava escrito. Já tinha sido impresso, distribuído, lido e conquistado uma tonelada de prêmios.

Para mim, reitero, monumental. Fiquei tão embasbacado que fui fuçar na Wikipedia para conhecer mais o autor, de quem eu nunca ouvira falar ao longo desses anos todos, nem antes, nem depois do lançamento do livro. Tudo bem que aqui no Brasil a gente tem um contato muito superficial com a cena literária europeia/norte-americana (o tal Primeiro Mundo, vá lá), mas estranho um sujeito que escreve uma obra deste quilate nunca seja mencionado em nenhum caderno cultural tupiniquim.

Também não me pergunte como eu soube do livro. Certamente li alguma resenha há uns quinze anos atrás (não lembro se por conta da polêmica). Curioso, comprei a edição e larguei na estante.

Vocês hão de convir que não é todo dia que a gente acha um bom dia para iniciar uma ficção de quase 1.000 páginas sobre um assunto escabroso e narrado de forma repulsiva.

Bem, resolvi fazer isso dois meses atrás. Descobri que tinha perdido um tempão.

Editora Alfaguara, 907 páginas  |  1a edição, 2007 | Tradução André Telles |  Copyright 2006

Título original: "Les bienveillantes"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

2 comentários:

  1. Li ainda em 2007 e 2008 e fiquei impactado demais. Atualmente, morando perto de onde se passou a história (Galícia), estou revisitando com um audio livro, e aqui estou, pesquisando tudo sobre ele como se fosse a primeira vez.

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  2. De acordo, Saduh. "Impactado" é uma ótima definição para a maneira como o leitor se sente após a leitura desse baita livro do Littell...

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