"A armadilha", por Bertille Bayart e Emmanuel Egloff
Não sei você. Eu sempre fiquei curioso quando o nome de Carlos Ghosn aparecia na imprensa. Era apresentado como o brasileiro que presidia simultaneamente três das maiores montadoras de automóveis do mundo, a francesa Renault e as japonesas Nissan e Mitsubishi.
Eu estranhava, porque não temos tradição na exportação de CEOs. Nem técnicos de futebol exportamos para o Paraguai. Mesmo os nossos "maiores" líderes, os presidentes da República (o atual e o anterior), são rasos e monoglotas, o que já dá uma pista. Por isso me intrigava o caminho que ele teria percorrido para chegar lá. E também ninguém mencionava seu retrospecto por aqui.
Lendo o livro, passei a saber o que a mídia não sabe ou sequer procurou saber (nossa imprensa é ufanista). O fato é que a vinda da família Bichara para o Brasil teve certas nuances sombrias. O pai, o libanês George Bichara, que negociava com diamantes na África, certa feita matou um padre por lá e acabou condenado. Achou prudente se escafeder com a esposa para a América do Sul.
Foi aqui que Carlos Ghosn Bichara nasceu, em Porto Velho, Rondônia, nos anos 50. Veio para o Rio de Janeiro aos dois anos, por conta de uma doença, e aos seis anos se mudou de vez para Beirute, onde cresceu. Fez carreira nas francesas Michelin e Renault. Tem cidadania libanesa, brasileira e francesa.
Este é Carlos Ghosn, filho de libaneses, criado no Líbano. O tema do livro? Bem, mais ou menos.
Para entender melhor a que se propõe a obra, é importante saber quem são seus autores. Bertille Bayard é jornalista do tradiconal Le Figaro, onde cobre, como redatora-chefe, repórter e cronista, o cotidiano empresarial. Já Emmanuel Egloff é especializado em jornalismo econômico - passou pelo Le Revenu e pelo Le Journal des Finances - e cobre a indústria automobilística para o Le Figaro.
Então o que que eles nos entregam - e, aparentemente, com razoável competência - é a história da união da Renault com a Nissan, o contexto econômico e político dessa aliança e, como pano de fundo, a ascensão e queda do seu grande executor: o franco-brasileiro-libanês Ghosn Bichara.
O livro investe no detalhamento societário da Renault e da Nissan, no seu corpo de funcionários e nos intrincados pormenores da aliança. Fala pouco dos produtos - carros. Fala até bastante de Carlos Ghosn. Mas não, como disse ele não é o protagonista do livro. Este privilégio cabe às empresas.
E não só: o governo francês, a justiça japonesa e duas dezenas de coadjuvantes também ocupam o palco. Sem falar nas empresas criadas ao redor das duas, da associação com a Mitsubishi e do constante namoro com outras montadoras. O que não falta nesta estória é personagem.
Dito isso, tenho que alertar o leitor brasileiro que, como eu, queria saber mais sobre Carlos Ghosn, que ele terá que se contentar com menos do que esperava de um livro cuja capa é uma foto em close do pretenso protagonista. Tem bastante Ghosn, mas o que tem mesmo é Renault e Nissan.
Isso não impediria o livro de ser bom. Na verdade, ele não é, mas não por isso. O texto é sem sabor. É quase uma ata corrida, uma verborragia sem fim sobre as idas e vindas da montadora francesa, a participação societária do governo, a disputa interna de poder, os complexos micro-detalhes de uma guerra de bastidores travada entre Europa e Ásia.
Talvez seja interessante para o seu público-alvo, os franceses. A Renault mexe com o nacionalismo do povo, é entranhada na miscelânea capitalista com background socialista que é o Estado francês - uma zorra esnobe que eu não entendo, e imagino que nem eles. E também muitas das passagens para mim mal explicadas talvez sejam cristalinas para quem acompanha o noticiário local.
O que certamente não é o meu caso.
Em resumo, "A armadilha" é um livro sobre o relacionamento entre duas empresas deficitárias, a Renault e a Nissan, salvas da falência por um libanês que nasceu no Brasil. O salvador da pátria ganhou status de lenda no Japão (virou personagem de mangá), mas meteu os pés pelas mãos e acabou sendo preso pelo governo japonês, acusado de ganhos indevidos à frente da Nissan.
Em resumo, foi assim: depois de 18 anos de carreira na Michelin, Ghosn foi contratado para a Renault em 1996. Um arrojado cost killer, sua performance fez com que em três anos a gigante francesa passasse de paquiderme negativado (eufemismo brasileiro hehe) a superavitária investidora.
Confiante no talento do libanês nascido em Porto Velho, em 1999 a Renault investiu todas as suas fichas na compra de uma gorda participação societária na Nissan (R$ 5 bilhões de euros por 36,8% da empresa), gigante japonesa que vinha chafurdando na crise há alguns anos. Seus carros eram ótimos, mas eram vendidos abaixo do custo de produção. Não à toa, a empresa apresentava um buraco de US$ 20 bilhões de dólares em dívidas.
Assim, coube a Ghosn uma tarefa que antes parecia impossível: recuperar duas montadoras faraônicas de um aparentemente inevitável caminho rumo à bancarrota. Já tinha sido bem sucedido com a francesa, que, por sua vez, apostava que ele poderia fazer o mesmo com a japonesa.
Quando os planos da Renault de adquirir parte do capital societário da Nissan vieram à público, o presidente da Volkswagen, Ferdinand Piëch, pilheriou: "Não é cruzando duas mulas que se faz um cavalo de corrida".
Não só ele fez troça. Bob Lutz, da General Motors, não deixou por menos: "É o mesmo que por R$ 5 bilhões em um navio de carga e afundá-lo". Jacques Nasser, presidente da Ford, também deu uma debochada: "Não iremos desperdiçar dinheiro ganho com sofrimento no pagamento de dívidas contraídas na negligência".
Os tiros vinham de todos os lados. Até os japoneses, desesperados por uma boia de salvação, eram reticentes quanto às virtudes do candidato a salvador. "Temos dificuldade de entender como uma empresa que não sabe fabricar carros pode nos comprar", teria dito um executivo da Nissan.
A união era desigual. Ambas as montadoras vendiam 2,5 milhões de carros por ano, mas havia um abismo entre elas. A Renault injetaria o dinheiro para estabilizar a queda da endividada, e se beneficiaria dos avanços de engenharia já obtidos pela Nissan, notadamente na área da propulsão elétrica.
A confiança de Louis Schweitzer - o presidente da Renault que passaria a batuta a Ghosn - nos poderes de seu predileto se comprovou justificada. O brasileiro-libanês era um sujeito sem pudor para cortar cabeças. O enfant terrible fechou 5 fábricas no Japão, cortou 21 mil empregos (14% do total de funcionários da Nissan), reduziu as compras em 20%, fechou 10% das concessões e se desvencilhou da participação societária em 1.390 empresas - manteve na carteira apenas as quatro que eram consideradas imprescindíveis para a montadora.
Após o impacto e a inevitável apreensão, o que se viu foi que o libanês fez a mágica acontecer. De novo. Em poucos anos, sob o comando de Carlos Ghosn, a Aliança entre as duas produziu um império planetário: 450 mil empregados, 122 instalações industriais e 10,6 milhões de automóveis vendidos em mais de 200 países. Ghosn era uma estrela no Japão.
Em 2006, embalado pelo sucesso estrondoso, a Business Week chamava Ghosn de "rock star da indústria automobilística". Já a The Economist recorria aos números para classificá-lo: "O homem que vale 10 bilhões de dólares". Era o único caso na história de um mesmo cara ser o CEO de duas empresas listadas na Forbes 500.
"Foi no Japão que Ghosn se tornou Luís XIV", disse em off um antigo funcionário da Renault.
Sob suas rédeas, a Aliança se tornou a maior vendedora de carros do mundo no biênio 2017/18.
Bonito. Porém... sempre tem um porém. Como sói acontecer na vida real, nem tudo eram flores. Se os franceses reclamavam que Ghosn privilegiava a Nissan, os japoneses reclamavam que se sentiam subordinados à Renault. A RNBV, com sede na Holanda, foi criada com o intuito de ser uma espécie de holding controladora das duas empresas, aparando as arestas e abafando os ruídos.
Na prática, um único sujeito presidindo por quase duas décadas duas empresas bilionárias, que dividiam setores e projetos e estavam fisicamente separadas por um continente e meio, não tinha como resultar numa situação normal. Elas estavam entranhadas, emaranhadas, e só uma pessoa sabia onde estava cada nó. A parceria se tornou um caldeirão de insatisfações mútuas.
Durante todo o tempo, o ponto de equilíbrio da relação entre as duas sócias estava em Carlos Ghosn. Mas, sem que os franceses soubessem, a partir de um determinado momento a batata do libanês começou a assar. Confiante em seu poder ilimitado, ele tinha montado uma engrenagem paralela que trafegava impunemente milhões de dólares para cá e para lá, muitas vezes com amigos seus envolvidos. Outras vezes, com parentes próximos envolvidos.
E muitas outras com ele mesmo envolvido.
Muito peixe graúdo já não tolerava mais essa desfaçatez do gênio. Sem que ninguém pressentisse, sob o nariz dos franceses e do confiante Ghosn, a Nissan denunciou seu próprio CEO à justiça japonesa e ele, que cruzava o planeta em um jato particular, com quarto de dormir exclusivo, foi preso e algemado quando desembarcava em Tóquio para mais uma singela semana de trabalho.
Foi trancafiado sem processo e sem uma acusação pública - apenas rumores. Durante dias, semanas e meses Carlos Ghosn foi mantido incomunicável. Tecnicamente, era uma prisão preventiva continuamente renovada. O acusado não tinha o direito de falar com a própria família.
Os autores oscilam entre reverenciar Ghosn (o que fazem com recato), evidenciar a cupidez dos seus mal-feitos (o que fazem com gosto) e questionar se a Nissan, ao prender Ghosn, não estava na verdade dando um golpe na Renault.
Quanto a esta suspeita, eles são bastante enfáticos e enfileiram um bom rol de argumentos. Tudo leva a crer, pela forma com que conduzem a narrativa, que a Nissan se aproveitou de deslizes do seu CEO, o desvio aqui e acolá de milhões de dólares (muitas vezes, frise-se), para criar uma situação que invertesse a dependência estratégica à qual a empresa se via acorrentada na relação com a Renault.
Parece que deu certo. Com Ghosn fora do circuito, a montadora francesa teve que renegociar longamente com a sua sócia japonesa. Cedeu em pontos nos quais por mais de uma década a Nissan se sentia espoliada. A ausência do brazuca do Líbano foi determinante para isso.
O custo imposto pelo ataque da Nissan à Aliança foi enorme. A prisão de Carlos Ghosn impactou o valor das ações do grupo. O prejuízo foi de quinze bilhões de dólares. Equivalente a 75% da dívida de anos atrás. Mas foi uma perda especulativa. Os japoneses lucraram ao se livrar do controle turbinado dos franceses, ao derrubarem Carlos Ghosn. A conta de chegada lhes foi favorável.
Mal comparando, é como matar o pistoleiro depois que ele fez o serviço sujo.
A queda de braço entre as duas foi parcialmente resolvida durante uma visita do primeiro-ministro francês Emmanuel Macron ao Japão. Tinha feijão embaixo desse yakisoba. Carlos Ghosn, com quem Macron sempre andou às turras, estava preso. Apesar dos apelos da família do detido, Macron se recusou a intervir diretamente no caso. As duas montadoras rumaram felizes para um acerto.
O livro mal menciona o que acontecia à época com o detido, então em prisão domiciliar. Também só no posfácio abre dois parágrafos para a fuga de Ghosn, escondido em uma mala, e audaciosamente transportado dentro dela, de Tóquio a Beirute. Uma escapada cinematográfica.
Mas não se engane: o libanês nascido no Brasil, Carlos Ghosn Bichara, que está na capa e na abertura do livro "A armadilha", era apenas o queijo. O livro é sobre os ratos.
Editora Gryphus, 336 páginas | 1a edição, 2020 | tradução Teresa Dias Carneiro
Título original: "Le piège"
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