"O cisne e o aviador", por Heliete Vaitsman

terça-feira, fevereiro 21, 2023 Sidney Puterman


Com o fim da Segunda Guerra Mundial, milhares de nazistas criminosos de guerra partiram em busca de um esconderijo seguro. Muitos se camuflaram na própria Alemanha, com uma nova identidade. Um grande número deles achou mais garantido seguir para o estrangeiro. A América do Sul foi o destino mais procurado, com uma predileção especial dos alemães pela Argentina.

Herberts Cukurs, piloto apelidado "O Carniceiro de Riga", escolheu o Brasil.

É em torno dele que Heliete Vaitsman constrói seu romance, uma narrativa curta e delicada sobre um hipotético envolvimento amoroso do ás nazista com uma jovem judia emigrada.

Ele, letão, casado e com três filhos, ex-aviador renomado, se tornou aqui empresário de atividades de lazer. Seu currículo, porém, trazia o assassinato, a soldo dos alemães, de milhares de judeus.

Ela, alemã, solteira, foi enviada pelo pai ao Brasil, momentos antes do pai ser preso e morto pelos nazistas. No Rio se empregou em casa de família, gente de posses e influência, como preceptora dos filhos. Casou com um deles - a contragosto dos pais do rapaz - e engravidou de gêmeas.

No posfácio, Vaitsman adverte: "As personagens femininas são fictícias, mas baseadas em mulheres que conheci, e se debatem entre questões que envolvem paixão, renúncia e identidade, sobre o pano de fundo da Segunda Guerra e da ideologicamente polarizada sociedade brasileira dos anos 50 e 60".

As personagens são interessantes, mas suas estórias demasiado fragmentadas. Restam lacunas e cabe ao leitor superar os vazios. É uma narrativa incompleta. Já os capítulos sobre o matador são fartos e detalhados. Ricos em datas, minúcias, consequências.

Acompanhamos o romance. Enquanto o criminoso real é expansivo e aventureiro, a protagonista fictícia é reservada. Ainda assim, sensual; uma faceta que, no texto, deriva do seu enfrentamento dos gatilhos emocionais, sem ceder à passionalidade. 

Confesso que o que mais mexeu comigo no livro de Vaitsman foram os personagens judeus do Estácio. Eles tentam construir suas histórias no Rio de Janeiro. Waldemar e Clara, Iosse e Rosa, quatro judeus emigrados do frio leste europeu para o abafado calor carioca, são reféns de um passado desgraçado, que nenhum deles logra transpor por completo.

Tarefa ingrata. Ainda que cada um deles seja bem ou mal-sucedido em na nova etapa, a vida anterior na Europa se manteve um fantasma presente. Meus avós Izrael e Cyrla, que se anteciparam ao Holocausto, poderiam personificar estes personagens. Também vieram morar numa cabeça-de-porco no Estácio. Pena que nem eles, nem ninguém na família soube me contar suas desventuras.

Divago. Voltemos ao livro. O texto de Heliete Vaitsman é bom. Não me dei muito bem com a forma com que ela escolheu para contar sua trama, mas prendeu minha atenção.

Sou reticente, entretanto, não só quanto à opção pela história romanceada como, principalmente, com a invenção da paixão de uma judia - que escapou de ter sido estuprada e assassinada na mesma cova dos seus seis milhões de irmãos - pelo carrasco perverso do povo da protagonista.

Me dobraria à ironia da realidade, fosse esta uma estória real. Mas criar uma ficção com este horizonte macabro-sexual não me desce bem.

Ao fim, me despertou o interesse em procurar (já achei e comprei) uma boa biografia do matador letão, o carniceiro de Riga, que vem sendo hoje reabilitado em seu país natal, a Latvia (que os portugueses rebatizaram sei lá porque como Letônia), como um herói injustiçado. 

Lá o Defunto* se tornou protagonista do musical "Sugar Herbert Sugar". No cartaz de divulgação, o aviador aparece glamurizado em sua roupa de piloto, no cokpit de uma aeronave.

Glorificação de um genocida? Deplorável. Pensando bem, cada país tem o nome que merece.

Editora Rocco, 173 páginas

*Defunto era o codinome com que os agentes israelenses do Mossad se referiam a Cukurs, durante a operação que planejava sua captura e culminou na sua morte, a marteladas, em Montevidéu. Espero encontrar mais detalhes em "O homem dos pedalinhos", que já está na minha estante.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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