"Churchill, Hitler e a guerra desnecessária", por Patrick Buchanan
Atenção: não se deixe enganar pelo próximo parágrafo.
"Numa análise que reforça a declaração de Winston Churchill - a Segunda Guerra Mundial teria sido 'desnecessária' -, Patrick J. Buchanan nos traz detalhes inéditos de um contexto histórico nebuloso mesmo para os mais gabaritados estudiosos."
Se você digitar o título do livro no Google, você verá incontáveis entradas com a reprodução exata do texto acima. É a resenha oficial, republicada pelas plataformas especializadas na venda de livros - da Travessa ao sebo eletrônico Estante Virtual -, pela mídia tradicional e até, pasme, por... resenhistas.
E não pense que esse vício se restringe aos textos em português. Mesmo em inglês, a colinha é repetida. Amazon, Goodreads, Penguin, Books on tape e centenas de outros oferecem o mesmo antipasti, mais fornido do que o servido na nossa língua, mas sempre igual:
"Were World Wars I and II—which can now be seen as a thirty-year paroxysm of slaughter and destruction—inevitable? Were they necessary wars? Were the bloodiest and most devastating conflicts ever suffered by mankind fated by forces beyond men’s control? Or were they products of calamitous failures of judgment?"
Após os auto-questionamentos, vêm os auto-elogios. Os mesmos, com as mesmas vírgulas.
"In this monumental and provocative history, Patrick Buchanan makes the case that, if not for the blunders of British statesmen—Winston Churchill first among them—the horrors of two world wars and the Holocaust might have been avoided and the British Empire might never have collapsed into ruins. Half a century of murderous oppression of scores of millions under the iron boot of Communist tyranny might never have happened, and Europe’s central role in world affairs might have been sustained for many generations."
Se fosse só este desserviço, seria ruim, mas paciência. Não à toa cada vez menos pessoas têm sido alcançadas por endereços não-comerciais (que não turbinam a visualização). Quem gera receita tem prioridade. Quem não faz tilintar a caixa registradora da ferramenta não tem lugar na fila do pão.
É o jogo jogado. O Google está aí para ganhar dinheiro. Faz parte. Voltemos ao tal parágrafo.
O verdadeiro problema no textinho padrão da abertura (afora o livro) é o seu conteúdo - pra lá de tendencioso. Ele conta uma estorinha fake. Aquela que chamamos hoje de "narrativa".
Vamos por partes. Primeiro, ele parafraseia Winston Churchill, um nome célebre, que, ao ser citado, transfere credibilidade automática à síntese. O que é uma trairagem: o resumo se vale do próprio Churchill para legitimar um livro cujo objetivo é... detonar Winston Churchill.
Segundo, descontextualiza a fala - o "desnecessária" a que se refere o inglês não tem o mesmo significado insinuado pelo título. Churchill a julgou desnecessária porque ela não poderia ser vencida por quem a provocou; já o título dá a entender que a guerra foi um capricho do Império Britânico (pois, para o autor, o poder global era um monopólio compartilhado por ingleses e americanos).
Terceiro, o livro não traz nenhum detalhe "inédito". Ele simplesmente requenta dezenas de citações, enfileiradas e embaralhadas às suas próprias opiniões. Uma lista sem eira nem beira.
Quarto, a Segunda Guerra Mundial não está em um "contexto histórico nebuloso". É um evento relativamente recente, extremamente bem pesquisado e registrado, com fontes múltiplas e com análises bem fundamentadas. Não há nada de nebuloso sobre as particularidades da WWII e seus personagens; absolutamente tudo sobre ela já foi alvo de escrutínio.
Isto posto e organizado, vamos à palavra-chave, a tal guerra "desnecessária"... Ora, amigos, qual guerra é necessária? Guerras são catástrofes assassinas deliberadamente provocadas. Mais difícil seria afirmar que alguma guerra é ou foi algum dia "necessária".
Em última análise, todas as guerras, presentes, passadas e futuras são desnecessárias. Ou alguém acha necessária a Guerra da Ucrânia, que completou um ano agora? Ou a Guerra da Síria, que já está há doze anos em curso? Ou a Guerra do Paraguai, que chacinou um país? Ou a... não, nenhuma guerra é necessária. Todas elas são tragédias, provocadas por um agressor, e se tornam guerras quando o agressor encontra resistência.
Circunstanciando, na Segunda Guerra Mundial, tema do livro (voltarei a ele), a Áustria aceitou a ocupação do país pelos alemães; não houve guerra. A Tchecoslováquia capitulou frente aos alemães sem disparar um tiro; não houve guerra. Já a Polônia reagiu e tentou, em vão, enfrentar os alemães invasores; houve guerra. O país dos polacos foi destroçado e ocupado.
Então, guerra é como briga; se um não quer, dois não brigam. Nem guerreiam.
Ou seja, fácil para a gente concluir que o título do livro é um golpe retórico. Uma pegadinha. Antes fosse apenas isso, um título maroto, capicioso; mas o pior de tudo é que o livro, em si, é um golpe.
Um golpe que certamente tem muito mais a ver com o autor do que com o tema propriamente dito. Patrick Buchanan é um político norte-americano, que concorreu à presidência dos Estados Unidos por três vezes - em 1992, em 1996 e no ano 2000. Teve três milhões de votos na primeira eleição e "meros" (para quem já teve seis vezes mais) meio milhão de votos na última.
Em oito anos, o valor do candidato para o eleitorado americano se reduziu a um sexto do que era.
Apresentador de TV, editor, polemista e escritor ligado à direita profunda - é rotulado como paleoconservador no verbete da Wikipedia -, Buchanan é contra os imigrantes, o multiculturalismo, a globalização e o envolvimento militar dos Estados Unidos em conflitos mundo afora.
Pronto. Chegamos à razão da existência do livro. Na sua plataforma eleitoral, Buchanan defende que os EUA não devem participar em guerras alheias. Para fundamentar seu ponto-de-vista, ele revisita as duas guerras mundiais, ambas definidas pela presença americana. Fantasia ele que o Ocidente "perdeu" o mundo ali - e que Churchill foi o maior culpado.
O cavalo de batalha do autor são as garantias dadas pela Inglaterra à Polônia, comprometendo-se a declarar guerra à Alemanha, caso a Alemanha invadisse a Polônia. As longas quatrocentas e tantas páginas do livro argumentam que foi a garantia inglesa que incitou Hitler a iniciar a guerra. Que isso resultou na vitória da União Soviética e que tudo começara pelos erros de Churchill.
Entende-se a escolha de Churchill para o linchamento - quanto maior fosse o seu alvo, maior seria a repercussão da sua propaganda marqueteira. Não estava de todo errado. Talvez nem eu mesmo fosse ler este livro se ele não tivesse feito o seu marketing polemista como fez.
Googlando, vemos que os títulos de Buchanan sempre tendem para o sensacionalismo. Compreensível. Como político, ele vive da visibilidade. Antes, em 2006, ele lançou um "A invasão do Terceiro Mundo e a conquista da América". Devia estar reclamando dos colombianos manobrando carros, mexicanos fazendo hamburguers e brasileiros cortando grama.
Outro era chamado "A grande traição: como a soberania americana e a justiça social estão sendo sacrificados aos deuses da globalização". Auto-explicativo. Sem comentários.
Diante disso, já tendo sido bem caracterizado o autor, os próximos parágrafos são dispensáveis. Ninguém tem interesse em perder tempo com um texto maliciosamente tendencioso - uma pseudohistória. Mas, como ele me irritou, eu vou escrever assim mesmo. Leia se for curioso.
Buchanan não tem nada de amador. A organização do seu livro é profissional e, creio, deve ter demandado um grande time de pesquisadores, que investiram em uma extensa garimpagem de citações que, tiradas ou não de contexto, se prestassem a criar a narrativa que lhe convinha.
O livro forja uma peça de acusação a Churchill. Os capítulos se dedicam à composição de um cenário onde as pretensões territoriais da Alemanha não deveriam ter sido combatidas, pois, segundo a tese do autor, foi o combate à Alemanha que permitiu o avanço comunista.
Mostra como os alemães foram injustiçados com o Tratado de Versalhes e como uma série de tratados nos anos 20 e 30 poderiam ter sido respeitados (ou evitados, dependendo de como sua existência favorecesse a tese do autor), contribuindo para que a Segunda Guerra não acontecesse.
Hitler faria um favor ao mundo sufocando o stalinismo na nascente e se contentaria em reinar sobre as terras do Leste, matando russos, eslavos e judeus, enquanto o Ocidente, incólume, seguiria feliz.
Este é o grotesco storytelling do ex-candidato. Eu poderia deixar por isso mesmo. Mas sou implicante.
Quem quiser que siga comigo ao texto do livro. Advirto que é desnecessário. Nada do que vou dizer daqui para a frente contradirá o que eu já disse. Vou apenas dar vazão à minha indignação com a colossal cara de pau de Patrick Buchanan, dando exemplos em série das suas patuscadas.
Reflitamos. O que ele quer dizer aqui? Que, como a Áustria não fez a guerra - ao aceitar passivamente a invasão -, caberia aos países que deveriam protegê-la terem ido até lá e lutado contra a Alemanha. E o fariam de que forma? Resistindo ao agressor pelas armas, ou seja, fazendo a guerra. Mas, como diz o título do livro, esta guerra não seria desnecessária? Porque foram estes mesmos países citados, França e Inglaterra, que declararam guerra à Alemanha, no ano seguinte, quando esta invadiu a Polônia. Onde está a "guerra desnecessária" que ele tanto sataniza, então?
Ele, tolo, nega de cara a própria "sacada" em que o livro se baseia. Ôco, desdenha do seu leitor.
Fato é que Buchanan criou um livro baseado em floreios de retórica. Se vale do jogo de palavras para negar o fluxo dos fatos históricos. Ora, sem muita enrolação, isso enquadra o autor no grupo dos "negacionistas". Simples assim. Chamamos negacionistas os que negam eventos de domínio público e incontroverso, tipo a Terra ser redonda, a ida do homem à lua, a política nazista de extermínio, a segurança da vacina no combate ao vírus, etc.
Negacionistas, por definição, negam o inegável.
O carro-chefe de Patrick J. Buchanan é negar que a Alemanha tenha provocado as duas guerras mundiais. Na sua narrativa paralela, estas guerras foram culpa dos ingleses e dos norte-americanos. Acima de tudo, de uma pessoa em particular, sintomaticamente filha de pai inglês e mãe americana: Winston Churchill.
Para provar sua tese, Buchanan investe em uma cronologia. Defende que muitos anos antes os ingleses já se preparavam para levar a guerra à Alemanha. Na sua visão maniqueísta e bizarramente distorcida, os britânicos quereriam o mundo só para si.
O autor arrola toneladas de citações (muitas delas de outros negacionistas, mas também de autores sérios, mas descontextualizadas) para dar estofo à sua tese. Volta e meia ele tempera seus disparates com fundamentações corretas, como quando recorre ao historiador inglês John Keegan, que teria chamado de desnecessária a Primeira Guerra Mundial.
"A Primeira Guerra Mundial foi um conflito desnecessário. Desnecessário porque o curso dos acontecimentos que levou a sua eclosão poderia ter sido desviado em qualquer ponto, durante as cinco semanas que precederam o primeiro embate de armas, caso a prudência ou a boa vontade comum tivessem encontrado eco".
Perfeito. Mas aqui falamos da Primeira Guerra Mundial, evento que teve uma deflagração atípica, sem paralelo com a Segunda Guerra Mundial, vinte e cinco anos depois. Antes de mais nada, o início da WWI é difícil de explicar, e, mesmo bem explicado, mais difícil ainda de entender.
Tentemos, grosso modo. No popular, um zé ninguém porra louca deu um tiro num figurão idoso lá nos confins da Europa e semanas depois o mundo estava em guerra porque um cuspiu no outro que cuspiu no outro que foi tomar satisfação e aí tomou uma porrada. Foi isso.
Só pararam quando vinte milhões de pessoas tinham morrido. Aí acharam melhor parar mesmo.
Já a Segunda Guerra Mundial (WWII) é facinha de entender. Hitler foi invadindo os países ao redor da Alemanha, anexou a Áustria, foi avisado pra parar com isso, continuou invadindo e pegou um naco da Tchecoslováquia, o pessoal continuou avisando, ele pegou o resto da Tchecoslováquia e o pessoal disse "chega", mas Hitler c (*) e andou pro mimimi e invadiu a Polônia - aí a França e a Inglaterra, muito a contragosto, não tiveram jeito senão declarar guerra ao invasor.
Este é o ponto do autor. A anunciada reação anglo-francesa que, a seu ver, provocou a WWII.
Dito isto, voltemos para a Primeira Guerra. Tenho que voltar, para acompanhar a rota estroboscópica do autor. Em resumo, ali Buchanan já escolhe Churchill para principal personagem maléfico da parada. Mesmo que Churchill não passasse de um jovem, recém guindado ao posto de responsável pela Marinha inglesa, e ainda que não tivesse prestígio ou idade para ir além das próprias pernas (mesmo voluntarioso), o autor carrega nas tintas, enfatizando o quanto Churchill era belicoso e se revelara entusiasmado com a perspectiva da guerra (qualquer uma).
Ele pinta Churchill como o pérfido das decisões erradas e a Alemanha como inofensiva às potências do Ocidente. Tudo o que ela queria era vender sua produção de chucrute em paz. Já Churchill, o preposto do diabo, queria sangue.
Mais uma vez, é uma cortina de fumaça para o leitor mais bobinho. Porque ao descrever os fatos da WWI, é impossível não mencionar, ainda que contra a vontade e entre parágrafos que minimizam a ação alemã, que a Alemanha exigiu que a Áustria declarasse guerra à Croácia.
E fez isso mesmo com os croatas de joelhos aceitando todos os pontos do ultimatum austríaco redigido pelos alemães, um ultimatum escrito para não ser mesmo aceito, tão insultuoso era - mas os croatas aceitaram, para evitar a guerra pretendida pelos germânicos, o que não adiantou nada.
O autor segue mesclando meias-verdades e mentiras deslavadas para compor seu teatro, numa salada maluca de citações, temperada com descarada má-fé. Vez por outra, ele se trai, esquece a fundamentação histórica que tenta manipular e assume o histerismo:
"Como afirmou Emerson, se for bater num rei, é melhor matá-lo", afirma. "Em Paris, os Aliados açoitaram a Alemanha e privaram-na de seus territórios, indústrias, população, colônias, dinheiro - e honra, ao forçá-la a assinar a 'Mentira da Culpa pela Guerra'. Todavia, não a mataram. Ela continuou viva, unida, mais populosa e potencialmente mais poderosa do que a França, e seu povo agora estava dominado por um sentimento ardente de traição".
A Alemanha de Buchanan oscila de inocente a ultrajada. Pobre Alemanha, pobre Hitler.
Sua retórica investe em certas constantes. São elas a simplificação, a personificação e a vilanização. Interpretar a história como um combate entre mocinho e bandido - onde o autor escolhe quem é quem - é o óleo da engrenagem da montanha-russa buchaniana.
Fiel a este roteiro, ele impregna a estratégia diplomática dos países de um voluntarismo humano. Assim, a França pode ser rancorosa, a Alemanha ressentida e a Inglaterra insensível.
Resta ao leitor inteligente ficar p...
Uma atitude recorrente de Buchanan é dar aos tratados (quando lhe interessa, que fique bem claro) um peso absoluto, e não o que eles na verdade constituem, lances de xadrez no tabuleiro da geopolítica internacional. O avanço ou recuo das peças se dá de acordo com as conveniências do momento e as projeções do futuro.
Ao criticar os ingleses por não fazerem este ou aquele tratado, o que teria "evitado a guerra", ele cria uma imagem monolítica sobre acordos que via de regra existem para ser quebrados.
A certa altura, ele chama a União Soviética de "inimiga mortal" da Alemanha - isso, em 1936. Como se fosse uma HQ. Só que, apenas três anos depois, os dois países assinam o tratado Ribbentrop-Molotov, que promove a paz entre as duas potências e esquarteja a Polônia, que acaba dividida entre as signatárias do tratado de paz.
Ops, quem é mesmo inimigo mortal de quem?
O bufão do autor tenta sê-lo de Churchill, o personagem com o qual astutamente antagoniza e a quem utilizou para vender seu peixe. Para dar estofo à sua tese, da veleidade de Churchill quanto a Hitler, à Alemanha e ao nazismo, Buchanan reproduz uma série de passagens elogiosas ou contemporizadoras escritas na década de 30 pelo inglês.
Ora, o artifício é extremamente desleal. Desde a ascensão de Hitler ao poder, Churchill o combateu, interna e externamente. Não obstante, pelo seu peso e simbolismo político, o que escrevia se subordinava a um viés diplomático. Mas o autor, de forma desonesta, deliberadamente ignora o contexto em que Churchill se referiu ao Estado nazista e procura inverter a situação.
Para não sermos ofensivos, poderíamos chamar o estratagema de deslealdade intelectual.
Divido com você que me lê a estratégia peculiar de Buchanan. Ele critica pesadamente o acordo de Munique e a apoteótica reação à paz obtida por Neville Chamberlain, assinada por Adolf Hitler. A Tchecoslováquia foi servida em sacrifício em nome de uma paz ambígua. Enquanto o mundo inteiro comemorava o feito de Chamberlain, Winston Churchill discursava na Câmara dos Comuns britânica.
"Tudo acabou. Arruinada, abandonada, a Tchecoslováquia mergulha na escuridão. Todo o equilíbrio da Europa se desfez. Esse é apenas o começo do ajuste de contas. É o primeiro gole, o primeiro sorvo de uma bebida amarga que nos será servida por anos a fio, a não ser que, com a suprema recuperação da saúde moral e do vigor marcial, nos ergamos de novo."
Na interpretação do autor, porém, Churchill não conseguia "controlar sua reverência e sua inveja pela audácia e a bravura de Hitler", porque no dia anterior Churchill falara que "Devemos aprender a extrair da desgraça os meios da força futura. Não pode faltar em nossas lideranças alguma coisa do espirito daquele cabo austríaco que, quando tudo se achava e ruínas à sua volta e a Alemanha parecia mergulhada no caos eterno, não hesitou em marchar firme contra todas as nações vitoriosas e acabou virando a mesa, de modo decisivo a seu favor".
Venhamos e convenhamos - o que Winston fez foi se valer do exemplo do inimigo para espicaçar seus próprios compatriotas, exortando a que não tivessem um desempenho inferior ao demonstrado pelo cabo austríaco. O desprezo da nominação - não pelo nome, não pelo título de chanceler alemão ou de führer -, chamando Hitler pejorativamente de "cabo austríaco", já deixa patente que, se havia alguma coisa que Churchill não sentia em relação ao cabo era inveja e reverência.
Mas, convicto da sua capacidade de manipular o leitor e a História, o autor não se vexa.
Sua análise da invasão da Tchecoslováquia pelos nazistas é risível, de tão tendenciosa. Diz Buchanan que, após o Anschluss, o presidente tcheco, Eduard Benes, disseminou um boato de que a Alemanha invadiria a Tchecoslováquia, para justificar seus próprios preparativos de defesa. E que, diante da disseminação mundial do "boato", Hitler se sentiu humilhado e, ultrajado, resolveu invadir o país.
Como se estivéssemos assistindo uma peça de vaudeville.
Chamei a argumentação de Buchanan de "risível", porque o próprio autor cita, na página 184, que, diante do boato, Hitler "convocou seus generais e vociferou: 'É minha vontade inabalável varrer a Tchecoslováquia do mapa". Em seguida, prossegue Buchanan, "Hitler pediu a Pasta Verde, o plano para a invasão da Tchecoslováquia".
É uma piada pronta, né? A ideia da Alemanha invadir a Tchecoslováquia era um boato plantado pelos tchecos, aí Hitler, irritado com o boato, pede a pasta já preparada com os planos da invasão... E o mais bizarro é que o próprio Buchanan é quem nos relata a circunstância.
O apogeu da grande tese do autor é o seu capítulo nove, intitulado "Erro crasso fatal". Por trinta páginas ele disserta sobre o que considera o grande equívoco do governo inglês.
Aqui vemos como é difícil traçar uma crítica assertiva ao raciocínio de Buchanan, devido à sua reiterada incoerência. Entre citações e alegações, ele ziguezagueia. Vai cada hora em uma direção. Mas lá pela metade do livro, como eu disse, no tal capítulo nove, chegamos no ponto fulcral da tese do autor (que eu já mencionei trocentos parágrafos atrás).
Foi a garantia dada à Polônia por Neville Chamberlain, no Parlamento inglês, em 31/3/1939.
"Devo informar a esta casa, agora, que diante de qualquer ação que ameace, claramente, a independência da Polônia, e se for considerado vital, pelo governo polonês, resistir com suas forças nacionais, o governo de Sua Majestade se sentiria obrigado, de imediato, a oferecer todo o apoio que pode ao governo polonês."
Para Buchanan, o estopim da guerra foi aceso aí. Depois de Hitler ter retomado o Sahr, anexado a Áustria, ocupado os Sudetos e invadido a Tchecoslováquia - ações que se sucederam às negativas veementes do próprio Hitler de que não as cometeria -, o autor norte-americano considera que foi o "próximo limite" que desencadeou a guerra.
Buchanan se vale da sua extensa equipe de pesquisadores para listar citações, como esta, de Ernest May, desconhecido autor de "Strange Victory", publicado em 2000:
"Um governo que seis meses antes tinha resistido a guerrear por um país distante, possuidor de instituições democráticas, forças militares bem armadas e fortificações resistentes, agora prometia, aparentemente sem nenhuma reserva, ir à guerra por uma ditadura cujas forças armadas eram precárias e cujas fronteiras estavam desprotegidas."
Comento: sim, justamente por não tê-lo feito seis meses, foi necessário fazê-lo então.
"A reviravolta de Chamberlain foi tão brusca e inesperada que tornou a guerra inevitável", teria dito Liddel Hart, historiador e estrategista militar. Buchanan maliciosamente pesca essa frase, mas omite que Hart era um defensor de uma atitude ofensiva da Inglaterra. Ainda assim, a reviravolta foi provocada pelo agressor, não por quem reagiu à agressão.
Entre muitos outros que teriam depreciado a importância da Polônia, o autor pinça uma frase dita cinquenta anos depois pelo diplomata inglês Roy Denman: "A garantia de guerra dada à Polônia foi a incumbência mais irresponsável jamais aceita por um governo britânico. Pôs a decisão sobre a paz na Europa nas mãos de uma ditadura militar inconsequente, intransigente e gabola".
Que inversão estapafúrdia. Denman decreta que a Segunda Guerra Mundial foi provocada pela Polônia. Mas o cansativamente longo texto do autor (que provoca esta cansativamente longa contra-argumentação) tem outras pérolas de igual formosura.
"Atônito e ferido pela garantia britânica de guerra dada à Polônia, Hitler tomou-a como um desafio direto a si próprio e à Alemanha, e deu uma virada completa".
"A declaração anglo-polonesa não apenas forçou a mão de Hitler, como também o levou a perder a cabeça".
"A garantia de guerra dada à Polônia pela Inglaterra foi o ato mais cínico de toda a história inglesa".
"Em poucas horas ele ordenou planos para a operação Case White, a Pasta Branca, invasão à Polônia".
(Olha as pastinhas coloridas de novo aí).
"Chamberlain receberia a guerra que jamais desejou, e Churchill acolheria a guerra que tentara provocar".
Buchanan destaca e critica uma declaração de Chamberlain, que afirmava que "a verdadeira questão era que, se a Alemanha mostrasse sinais de que pretendia prosseguir com sua marcha de dominação do mundo, devemos tomar providências para detê-la".
O autor enumera: "Chamberlain fez aqui três suposições. A primeira foi que qualquer tentativa futura da Alemanha de reclamar populações e províncias perdidas seria uma 'marcha pela dominação mundial'. A segunda foi que era obrigação da Inglaterra deter Hitler na Europa central e oriental, onde nenhum exército britânico jamais lutara antes. A terceira foi que a Inglaterra tinha capacidade de derrubar o valentão".
Bem, a posteridade mostrou que 1) era; 2) foi; 3) tinha.
Querendo mostrar o quão equivocados estavam aqueles que viam em Hitler uma ameaça aos EUA, Buchanan diz que "historiadores procuram em vão nos arquivos nazis pelos planos de envio de exércitos ao Canadá ou América Latina, a fim de atacar os Estados Unidos".
Para comentar esta afirmação, basta considerarmos que Adolf Hitler iniciou as atividades bélicas do seu Reich de mil anos em setembro de 1939 - e em novembro de 1941 já estava se estrepando nos arredores de Moscou. Se começou a ver os seus planos ruírem tão cedo e tão perto de casa, não faz sentido para um estudioso sério tratar a ausência de planos para lutar do outro lado do Atlântico como um indicativo de desinteresse militar.
Acho que chegamos ao limite da paciência, né? Toda esta baboseira já basta para super ilustrar o ponto de Buchanan. Sua ladainha de que a Inglaterra não deveria ter se comprometido a declarar guerra à Alemanha, caso a Polônia fosse invadida pelos alemães, só faria algum sentido, ao menos retórico, caso não soubéssemos que Hitler não cessaria sua escalada de anexações e ocupações. Mas estamos todos carecas de saber - eu, pelo menos, estou - que nada o deteria. Estava não só tudo previamente alardeado em Mein Kampf, como vinha sendo o norte da sua performance agressiva desde que subira ao poder.
Então é uma falácia acreditar que algo teria provocado Hitler a fazer a guerra. Hitler era obstinado por ela e acreditava que somente por meio da guerra, da subjugação dos povos inferiores (os não-alemães) e da expropriação do território de outros países a Alemanha ocuparia seu lugar de direito no planeta.
De preferência, desalojando o Império Britânico de lá.
Então, chamar a guerra de "desnecessária" é uma firula homérica, haja visto que não fazer a guerra simplesmente não era uma opção. A guerra foi trazida pelo regime nazista de Adolf Hitler. Aos países fracos restou sucumbir. Às potências cabia resistir.
Foi o que fez Churchill. Ele ecoou no Parlamento a garantia dada por Chamberlain: "A preservação e a integridade da Polônia devem ser vistas como uma causa concernente ao mundo inteiro".
Winston Spencer Churchill, que passara os últimos anos fora do governo, e que fora sempre uma voz incômoda e dissonante contra Hitler, via - enfim - o Império Britânico se manifestar de forma coerente com o que ele cria fosse a única postura possível.
Enquanto Chamberlain e outros pacifistas seguiam tolerantes com os avanços sistemáticos do cabo austríaco, Churchill alertava que Hitler não se satisfaria antes de ter a Europa no bolso do colete; em vão. Embora os sinais dados pelo regime nazista fossem claros, o Estado inglês contemporizava, temeroso de envolver o país em uma nova guerra.
Já o odiado Churchill percebia que a guerra era inevitável, pois nada deteria a máquina alemã, cada vez mais potente e ameaçadora. Sorte do planeta que, quando tudo parecia perdido, os ingleses puderam recorrer ao carismático e obstinado frasista, que, de posse da língua inglesa e da sua coragem inabalável, foi durante mais de um ano o único obstáculo ao avanço dos boches.
Mas há sempre quem queira reescrever a história e disseminá-la entre os rasos. Era o objetivo (frustrado) de Patrick Buchanan. Ele abre o capítulo 14, "O homem do século", para fazer aquilo que ele acreditava daria a máxima repercussão ao livro: o ataque insolente à Winston Churchill.
E o mais hilário é a demonização de Churchill em paralelo à uma quase beatificação de Hitler.
"Na fatídica última semana de agosto de 1939, enquanto Hitler buscava, desesperadamente, uma forma de manter a Inglaterra fora de sua guerra contra a Polônia..."
Deploro a quantidade de papel gasto com a repetição obsessiva de uma sandice que não resiste a um olhar minucioso sobre a personalidade de Adolf Hitler, o que ele escreveu em Mein Kampf e as decisões tomadas em seus doze anos à frente do governo alemão.
O comportamento belicoso e traiçoeiro de Hitler não era uma hipótese, fôra comprovado por suas atitudes. Suas convicções teóricas sobre a supremacia ariana (leia-se alemã) vinham sendo postas em prática na forma de lei e de ações de governo. Seu apetite insaciável pelo território de outras nações e seu desrespeito pela soberania alheia já estava flagrante pelo que fizera nos dezoito meses anteriores à invasão da Polônia.
Dizer que a Inglaterra traçou uma linha na areia ao se comprometer com a Polônia está correto. Dizer que esta linha não deveria ter sido traçada, porque as pretensões de Hitler se esgotariam ali ou que jamais ameaçariam as demais nações europeias - subtentendendo-se aí França e Inglaterra - é ingênuo ou desonesto.
Não fosse a Polônia, em setembro de 1939, teria sido a Bélgica, em maio de 1940. O hiato em que a guerra mundial pudesse ser considerada "desnecessária" repousa em um espaço de oito meses.
É em cima desta tolice que o calhamaço de Buchanan se desenrola, certamente ao custo de muitos funcionários contratados para arregimentar obras e depoimentos que dessem sustentação ao seu raciocínio - que lhe convinha politicamente, na defesa do distanciamento dos Estados Unidos das circunstâncias globais.
Nada diferente do que defendeu Donald Trump, no seu único mandato. Isolacionismo. Não-participação do maior país do mundo no contexto geopolítico global - o que por si só já é uma contradição. O mais forte dos países se omitir em um cenário já é uma participação em favor daqueles que julgam inconveniente ou indesejada a sua participação.
O isolacionismo de Trump, ou de Buchanan, ou de Roosevelt, caso ele tivesse se omitido (e ninguém pode afirmar o que aconteceria sem Pearl Harbour), é uma adesão a uma determinada corrente.
Nessa toada, o político americano alinhavou sua narrativa. Vista em detalhes, é inconsistente e incongruente, tendenciosa e contraditória. Mas nem todo mundo repara nos detalhes.
Assim, entre sofismas, contradições e interpretações criativas, Buchanan, o autor, segue na mídia dando entrevistas e se pavoneando. Ele aparenta convicção absoluta da ignorância do telespectador e do leitor. São tantas as sandices, que é difícil (além de dispensável) selecioná-las e organizá-las.
Joguei boas horas de relógio fora, lendo as besteiras do former advisor de Ronald Reagan e muito tempo mais transcrevendo-as e refutando-as. Mas alguém tem que catar o lixo e jogá-lo fora. Se você me leu até aqui, parabéns. Você é teimoso como eu e não engole uma estorinha qualquer.
É, no mínimo, alguém mais difícil de enganar.
Editora Nova Fronteira, 423 páginas | 1 edição, 2009 | Tradução Vania Cury | Copyright 2008
Título original: "Churchill, Hitler and 'the Unnecessary War. How Britain lost its Empire and the West lost the World"
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