"O ar que me falta", por Luiz Schwarcz

terça-feira, março 28, 2023 Sidney Puterman


Noves fora o resultado literário, é sempre marcante quando alguém abre mão da vaidade e derrama publicamente, e por escrito, seus traumas, decepções e segredos. Nada provoca mais empatia do que as nuances cruas da vida de cada um de nós.

"Tua vida daria um livro!", diz-se sobre a vida de muita gente. Na verdade, a vida de quase todo mundo daria um livro, dependendo de quem a conte. 

Filho de um judeu húngaro, que escapou da morte nas câmaras de gás ao ter sido empurrado do trem pelo próprio pai, Luiz Schwarcz tem suas próprias histórias para contar.

Fundador e dono da Companhia das Letras, uma das maiores editoras do país, ele compartilha com os leitores uma narrativa catártica, minimalista, onde fala das origens familiares, da sua infância de filho e neto único e dos seus recorrentes desequilíbrios emocionais.

Não nego que iniciei o livro com um certo preconceito. Por conta de um viés deformado (confesso), eu intimamente meio que esperava que o editor de tantas sumidades, ao se auto-editar, devesse se mostrar tão genial quanto as maiores estrelas do seu catálogo.

Era implicância de escritor frustrado. Como não sou escritor, querendo tê-lo sido, tendo a desdenhar de quem não o seja e tente ser. Como se eu dissesse - "isso não é para nós!". Não é para mim e eu realmente não sou. Mas o caso de Schwarcz, o homem da vogal solitária, é totalmente outro.

Ele não é o escritor que queria ser - admite, sem pudor e com coragem. Notável, para uma figura com seu status no mercado editorial. Conta inclusive de um romance que escreveu, mas que "ficou muito ruim": "Tinha ideias em demasia e nenhuma consistência como ficção", reconhece. "As três editoras da Companhia das Letras foram honestas e me ajudaram a enterrar aquela aventura fajuta".

Sorte do patrão que tem funcionárias desse naipe.

Seguiu engavetando romances inacabados vida afora. "Quando eu disse que tentava fazer um romance sobre meu pai", rememora, um colega editor retrucou: "Você deveria escrever um livro de não ficção". Schwarcz refletiu. "Fiquei com sua opinião na cabeça, por anos".

Acabou por aceitar o conselho. "É curioso como esses romances frustrados que fazem parte da minha vida entram agora nas minhas memórias", assente. "Parece que esses textos todos, já condenados ao lixo, foram escritos para entrar aqui, neste livro de memórias. Servem para que eu me defina pelo que não publiquei. E para que eu hoje ironize os pobres personagens que certo dia pensei ter criado".

Se Luiz Schwarcz não é o tal escritor, sabe bem demais o que fazer com as palavras.

Um jornalista aposentado que conheci numa sessão de fisioterapia foi quem me falou do livro de Schwarcz. Fê-lo com reverência. Eu fiz pouco. Até porque o ex-jornalista se dizia bipolar e eu tenho pouca paciência com bipolares auto-declarados. Schwarcz também se auto-declara bipolar.

Então fiz muxôxo da indicação, mas comprei no dia seguinte. Para ler e poder falar mal. Até porque a conversa tinha começado comigo criticando um livro recente da mulher do editor, a sempre competente Lilia Schwarcz. Mas eu não gostei do seu livro sobre a gripe espanhola. Achei a pesquisa burocrática. O que dá no mesmo que dizer preguiçosa. Falei mal.

Tudo isso para admitir que comecei a ler "O ar que me falta" com uma certa dose de má-vontade. Que não perdurou. As reminiscências sobre o pai e o avô, judeus húngaros - o primeiro que escapou e o segundo que morreu em um campo de concentração (pasme, ele morreu no campo, mas depois que a guerra terminou) -, me amoleceram. Não resisto a esta saga.

Além do mais, Luiz tem uma narrativa semelhante de fuga também pelo lado materno: a mãe e o seu outro avô, também judeus, lograram fugir da Croácia, após muitos percalços. Os ecos da minha confusa história perdida sempre se embaralham com a história sabida de outros personagens.

São muitas as camadas descritivas do seu pai, Andras, o André. Alto, bonito, generoso, corajoso, benquisto - a idealização do pai vem misturada com as manias, os tiques, a subordinação ao sogro, aos problemas com a mulher, a necessidade anunciada da exclusividade afetiva de André e Luiz. Relacionamentos pai-e-filho sempre me atingem, pelo abismo que havia entre meu pai judeu e eu.

Mas já é hora de nos reportarmos à chave das memórias de Luiz Schwarcz - o subtítulo, esse agente revelador. "História de uma curta infância e de uma longa depressão".

Adianto que a infância em questão é tida por ele como "curta" porque o autor se considerava depositário de muitas responsabilidades advindas do pai, da mãe e dos avós. Já a depressão, e todos os seus desdobramentos, são a Moby Dick da sua biografia concisa.

Parênteses. Do momento em que comprei o livro ao instante em que fui lê-lo, passou-se mais de um ano. Ao longo desse período, alguém que eu amo foi diagnosticado com depressão. A minha reticência anterior - um certo desprezo pelo que sempre considerei uma fraqueza mental, como se eu fosse uma fortaleza (estou longe de sê-la) -, se transformou em ávido interesse.

As frases de Luiz ecoam em minha mente e tento encontrar seu sentido. Faço paralelos.

"Quem tem depressão vive apenas em função do momento. O julgamento é sempre absoluto e no presente. Estamos deprimidos ou não?"

Pergunta curiosa de se fazer a si mesmo.

"Nos momentos em que minha depressão aparecia como temor infantil ou imersão no sono vespertino da juventude, eu provavelmente tinha poucos pensamentos depressivos claros", confessa. "Era mais medo e melancolia. Décadas depois, quando a doença receber um diagnóstico definitivo, a situação será muito diferente. Vários enredos e motivos estarão associados ao que senti no período mais grave da depressão."

Desde cedo, porém, ao ficar clara a existência da doença, buscou por médicos e tratamentos.

"O começo da psicoterapia foi muito bom, mas depois fui transferido para a terapia de grupo, na qual eu me sentia completamente intimidado pela tristeza alheia e nada falava. Foi quando a convocação para a seleção de futebol ocorreu. Não tive dúvidas, larguei o psicodrama e fui cuidar de evitar que as bolas chegassem às redes."

Não tenho como mensurar todo o significado deste "larguei o psicodrama". Para mim, fica parecendo com um "deixei de frescura", mas talvez não seja. Na impossibilidade de saber pelo próprio autor (naturalmente, não nos conhecemos), gostaria de saber como outros leitores interpretaram.

Sei o que acho, entretanto, daquilo que acontece à minha órbita. Dos altos e baixos, da sociabilidade à introversão, do riso eventual à tristeza frequente. Nestas horas, dormir é o refúgio mais à mão.

"Depois do silêncio e do medo da infância, a melancolia e a vontade de me alienar por meio do sono foram os sinais mais claros de que eu sofria ou viria sofrer de depressão."

Schwarcz narra os seus primeiros anos como vítima passiva da doença - e como, com a passagem dos anos, ela passou a transbordar em irritação e agressividade. Descreve os móveis destruídos e as pessoas atacadas. Sua longa peregrinação pelos profissionais errados. Seu encontro com os raros profissionais certos. De como eles se tornaram controle e cura. Mesmo que passageira.

Tratada, sim; mas presente. O fantasma da doença não foi soterrado no passado.

"Hoje a depressão volta sem enredo específico, como uma reação química pura. Na maioria das vezes, inexplicavelmente, a velha senhora chega sorrateira. E tira minha respiração."

O ar que me falta.

Espírita que sou, não quero misturar minhas convicções espíritas com uma narrativa secular. Não faço proselitismo, nem uso a teoria religiosa para justificar as ocorrências mundanas. Mas é impossível não pensar no que creio, quando Schwarcz faz do mal uma entidade. Não só a "velha senhora" chega, como ela tem intenções. É "humana". Chega sorrateira.

Para falar de si mesmo, conta que a avó tentou se matar, quando o avô confessou sua atração pela secretária. "Tomou remédios a mais e foi hospitalizada", diz, para completar: "Não creio que tenha sido de fato uma tentativa séria de suicídio, e sim um ato de desespero, para chamar atenção". 

Luiz faria a mesma coisa, aos quarenta e três anos de idade, "numa crise mais aguda", por motivos que ele denomina "mais complexos". Reflete que se sentia em uma depressão bem mais séria, mas ressalva que "tenho certeza hoje de que não queria me matar, que me sentia completamente perdido, sobretudo pelo uso de remédios inadequados à minha condição de bipolar".

Remédios para a cabeça sempre me deixam apreensivo. Penso eu, que não sei nada.

É importante ressalvar que costuro aqui de forma aleatória os trechos em que Luiz é mais explícito sobre seus sintomas e reflexões. Ele revela que é colecionador e eu colecionei suas referências. Tento não tirá-las do contexto, inevitavelmente já tirando-as. 

Algumas vezes meu critério foi mais pessoal que literário. Sua narrativa me atinge diretamente. 

Mas, se o curto (pena!) livro de Luiz Schwarcz me provocou a emoção, o prazer e a importância da leitura foram, para mim, muito além.

Embora não sejamos contemporâneos - ele chegou um pouco antes -, cresci sob uma pequena parte das influências culturais que o cercavam (ainda que no meu caso, bem mais superficiais e sem um traço sequer da sofisticada erudição que o rondava).

Ilustram (metaforicamente, frise-se) o livreto cenas como a versão soul de "My Way" (cantada por um tal Brook Brenton que eu desconhecia, googlei e gostei), filmes esquisitos como "Stroszek", do ímpar Werner Herzog, que ele assistiu com a avó em uma garagem em San Francisco, e o "haus freund", um ménage-à-trois à moda húngara (algo como dois sujeitos ensanduichando uma cigana).

Legal.

Li com enorme carinho que seu pai, Andras/André, teve aulas de português com Paulo Ronái, intelectual húngaro radicado no Brasil, que me cativou na infância, com sua memorável tradução de "Os meninos da Rua Paulo", de Férenc Molnar.

Mais divertido e inusitado foi saber que, em 1946, no pós-guerra, seu pai, André, foi figurante em Roma, cidade aberta, de Rosselini - que havia recorrido aos refugiados judeus que viviam em abrigos governamentais miseráveis para serem personagens do neorrealismo italiano.

Nem tão divertido, mas ainda mais inusitado, foi saber que o pai saiu de Roma para morar na própria Cinecittá - e que, como figurante, envergou nas filmagens o uniforme nazista. Dura ironia.

Já a mãe e os avós passaram por campos de concentração na Itália. Teriam sido campos de retenção, mas não de extermínio. Tal "atenuante" vem sendo contestada, ressalta o autor. De todo modo, evidencia a interminável quantidade de espectros narrativos da extinção dos judeus da Europa.

Eu comprei o livrinho por curiosidade e fui me surpreendendo à medida que o texto avançava. Seja pelos fatos históricos, seja pela vida de Luiz ou mesmo pelo mal - a depressão - em si.

É bacana uma editora onde o editor também escreve.

Companhia das Letras, 199 páginas | Copyright 2021 | 1a reimpressão da 1a edição

P.S.: Ilustro o post com a sobreposição do livro (o Luiz íntimo) na matéria (o Luiz público). Imagens.

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

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