"O castelo na floresta", por Norman Mailer

sexta-feira, janeiro 07, 2022 Sidney Puterman


Um livro narrado por um funcionário de segundo escalão do diabo é, se bem escrito, instigante. Adianto que Mailer escreve bem e o tema do ajudante do capeta é a infância de Adolf Hitler.

Promissor.

O leitor, instigado mas precavido, diante do tema cavernoso teme uma compreensível sucessão de clichês. É pule de dez a ligação do genocida a cultos satânicos, pactos de sangue com a mão na caveira, dívidas assumidas com Lúcifer para quitação além-túmulo e muito mais. Porém, se há algo que Mailer não oferece são clichês. Sua perspectiva é todo o tempo original, de um sarcasmo velado.

Quer maior estranhamento do que observar os primeiros anos do futuro dizimador da Alemanha, Polônia, Rússia e seis milhões de judeus, na versão criancinha frágil, que cresceu numa bucólica casa de campo ao lado dos pais, irmãos, cavalos, cachorros, colméias?

O próprio autor (no caso, o assistente do demo) reflete sobre sua condição sui generis. Que legitimidade ele teria para se arrogar o direito de escrever - ainda que clandestinamente - sobre um período quase que absolutamente ignorado de uma maldita personalidade histórica?

"Embora eu não ficasse vinculado exclusivamente a Adolf Hitler por alguns anos, ele esteve sempre sob minha Supervisão", revela o escritor endiabrado. "Assim, estou em condições de escrever sobre seus primeiros anos com uma confiança que nenhum biógrafo convencional poderia nem pensar em ter", presume.

Eu, ehm. Que tipo de livro é este? Biografia, invenção, romance histórico, bruxaria?

"Com efeito, deve ser óbvio a esta altura que não há classificação clara para este livro", reconhece o assecla de Satanás. "Ele é mais que memórias e, com certeza, deve ser muito curioso como biografia, uma vez que é tão privilegiado quanto um romance."

Pois o Adolf criança reportado com o privilégio da intimidade por este biógrafo dos infernos é um guri normal, ou, se muito, com aquele teor de anormalidade absolutamente dentro da média. Um exemplar compatível com muitos fedelhos pé-no-saco que existem mundo afora. Mimado, medroso, implicante e porco. Aparentemente, o moleque nada tinha de excepcional.

Entretanto, como dizem, o diabo mora nos detalhes.

E nós vamos chegar neles, ainda que no compassado ritmo de Norman Mailer.

Sem nenhuma pressa para avançar pelo desenvolvimento do perturbado, Norman inicia sua narrativa voltando algumas décadas no tempo (para tal, ele faz algumas acrobacias criativas que vou deixar de lado aqui). Ele vai até as origens da confusa árvore genealógica dos Hitler, ops, Hiedler - ou, melhor dizendo ainda, dos Schicklgruber (para os que não sabem, estes são os nomes originais dos antepassados diretos de Adolf; Hitler era um nome que, ora veja, não existia) -, para nos bem situar.

E é numa barafunda sobre a suspeita alquimia sanguínea, incestuosa, dos ancestrais do futuro führer alemão, que Mailer dá o tom da história. E é sobre ela que me debruço.

Já de cara o autor afasta das suas considerações a nunca provada lenda de que o avô de Adolf era judeu. Não que ele possa afirmar veementemente que esta hipótese, tão aventada, não proceda. Ele apenas não aposta nela e dá suas razões; que, reconheço, são convincentes. A fofoca de que a avó de Hitler, uma camponesa sem instrução, já entrada em anos, teria servido como uma primeira experiência amorosa do filho do patrão, um judeu abastado - um tal Frankenberger - não convence Mailer, pois, segundo suas pesquisas, não havia judeus na região. Em 1496 os judeus foram expulsos de Graz e dos arredores e, três séculos e meio depois, ainda não tinham retornado.  

Mailer também não achou ninguém chamado Frankenberger nos livros-razões da cidade, nem no Israelitische Kultusgemeinde do Registro de Judeus local. O nome tantas vezes referido era inexistente. E, pior, além de não existir nenhum judeu com este nome, o autor suspeita que ela, a avó em questão, moça ou velha, jamais trabalhou para algum. 

(A origem da história talvez venha do fato de Anna ter passado os primeiros cinco anos pós-parto recebendo uma misteriosa ajuda mensal, que ela alegava vir do seu antigo senhor; mas parece que, na verdade, ela trabalhara para uma viúva e foi demitida por ter sido flagrada roubando a patroa.)

O que se sabe, de fato, é que Maria Anna tinha 42 anos, em 1837, quando deu à luz Alois Schicklgruber, registrado pelo tabelião local como "ilegítimo". Era um bastardo sem pai. Por cinco anos, a idosa mãe solteira morou com o filho pequeno em um quartinho na casa dos pais. Como este é meu foco aqui, vamos acompanhar em minúcias o desenrolar desta escrota linhagem.

Cinco anos depois, um primo seu, Johann Georg Hiedler, de 50 anos, casou-se com Maria Anna. Pobre e sistematicamente bêbado, Georg foi morar com a nova velha esposa e com o bastardo em um chiqueiro desativado. Plausível que se pense que o primo viesse a ser o pai do menino, que, com o casamento tardio, corrigiria a situação. Sintomaticamente, entretanto, logo em seguida ao enlace matrimonial a criança foi entregue aos cuidados do irmão dele, Johann Nepomuk Hiedler, para ser criado em sua casa humilde, mas abastada. Nepomuk era casado e tinha três filhas. O informalmente adotado Alois se tornou, então, seu filho varão.

Por que cargas d'água alguém casa com uma mãe solteira idosa, sua prima, uma senhora de 47 anos, e, ato contínuo, repassa o filho para o irmão - que já tem três crianças - criar, como pai? Conjectura Mailer que, à vera, o pai de Alois era sim um primo de Maria Anna, mas não Georg, e sim este Nepomuk, o pai das três garotas. E o misterioso dinheiro que Anna recebera por cinco anos viera desse primo, que não poderia aparecer, para não comprometer seu casamento feliz.

Feliz, é fato, mas frustrado por não ter um filho homem, Johann Nepomuk contratou o irmão beberrão para posar de marido e provável pai; com a paternidade do bastardo moralmente resolvida, o generoso pai de família trouxe Alois, seu filho biológico, para ser seu agregado.

Fosse como fosse, a mãe, Maria Anna, morreu cinco anos depois. O marido que supostamente seria o pai, Johann Georg, apesar de mais velho e sempre bêbado, duraria mais três anos.

Para não perdermos o fio da história, porém, o que importa é que o filho se revelou um garanhão mais incontido do que o pai (que, não confundam, aqui se passava por um reles tio). Das três irmãs "adotivas", Johanna, Walpurga e Josefa - na verdade, meio-irmãs -, o priápico Alois passou o cerol em todas (diria assim uma antiga expressão machista). Certa feita, Nepomuk encontrou o filho Alois, então com 13 anos, no celeiro com Walpurga, de 18. Consternado, baniu o filho e prendeu Walpurga por três longos anos, até arranjar um casamento para a desgraçada. Não sabia ele que, um ano antes, sua filha caçula, Josefa, já "brincara" no palheiro com o irmão.

Posto para fora, Alois só voltou à fazenda de Nepomuk nove anos depois. A meio-irmã Josefa tinha morrido e a outra, Johanna, sete anos mais velha que Alois e a única que até então não havia tido nada com ele, já estava casada há onze anos com o agricultor pobretão Johann Poelzl (haja johanns e johannas nessa terra). A primogênita de Nepomuk tinha parido seis filhos, mas só dois sobreviveram. Nesta visita derradeira de Alois, Johanna, fogosa, iria engravidar mais uma vez, desta feita do próprio (meio) irmão, o garanhão. Uma menina nasceria. 

Seu nome viria a ser Klara. Klara Poelzl. Seu pai, no entanto, não era aquele que lhe deu o sobrenome, e sim o maninho Alois. Que rolo (no futuro, pai e filha iriam se casar e Klara iria conceber o filho que é a razão de ser de toda esta lenga-lenga genealógica).

Alois foi avisado do nascimento da filha quando estava em Viena (um bilhete sintético, com três palavras, "Sie ist hier", ou seja, "ela está aqui"), o que não o sensibilizou. Uma carreira esperava por ele na capital austríaca. Depois de ser auxiliar em uma loja de botas para oficiais, conseguiu uma vaga na Finanzwache Respizient, a Guarda das Finanças, chegando em poucos anos ao mais alto nível no corpo dos baixos escalões da Alfândega. Promoções consecutivas o levaram ao posto de coletor da alfândega até atingir o invejado cargo de inspetor pleno, assinando "Funcionário do Posto de Alfândega Imperial de Primeira Classe".

Bom funcionário. Vou ignorar aqui as muitas páginas dedicadas às estrepolias sexuais do inspetor.

O que importa é que ele tinha claro que um bom casamento aumentaria suas chances de permanecer ascendendo na carreira. Com isto em vista, Alois casou-se com a viúva Anna Glassl-Hoerer, já cinquentona - enquanto ele ainda tinha trinta e seis -, oriunda de uma família de posses. O contrato conjugal trouxe um dote polpudo para o ambicioso inspetor pleno.

Lembremos que estávamos no conservador século XIX. O fato de Alois ser filho bastardo (o casamento da mãe não incluíra o seu reconhecimento) era, à época, um forte entrave, não só social, como profissional. Novas promoções poderiam ser obstadas por seu passado pouco lisonjeiro. Alois então retornou a Spital após dezessete anos de ausência, para ver se conseguiria por no papel a história que lhe foi sempre insinuada.

Não sei se esclarecendo, ou se confundindo mais, o tio seria declarado como pai do filho da mãe solteira, mas não percam de vista que o pai na verdade era o irmão do tio (ou seja, tio também). 

Pois este, o "tio" Johann Nepomuk Hiedler, ainda que a contragosto, conseguiu duas testemunhas, que juraram ao padre que Alois era filho de Georg (uma das testemunhas, Roemeder, genro de Nepomuk, tinha cinco anos quando a mãe de Alois morreu). Fizeram um "x" na certidão e confirmaram que também o falecido havia repetidas vezes afirmado ser pai do garoto Alois - que, assim ungido pelos locais, deixou de ser Schicklgruber.

O padre, que escutou das testemunhas analfabetas o relato de que Johann Georg Hiedler era o pai do menino, errou na grafia e pôs Johann Georg Hitler na certidão. Ninguém corrigiu, até porque ninguém sabia ler, à exceção do requerente, que até gostou. O senhor inspetor agora chamava-se legalmente Alois Hitler.

Poderia eu encerrar por aqui esta longuíssima digressão. Já sabemos as origens antropológicas do futuro ditador alemão e também porque cargas dágua seu pai nasceu Schicklgruber, virou Hiedler e em seguida Hitler em apenas uma geração.

Mas, interrompendo por aqui, eu estaria privando os leitores interessados nesta árvore genealógica aquela que fosse talvez a mais interessante, e importante, revelação. Me acompanhe mais um pouco e me diga que não.

Pouco depois de ter tudo resolvido na paróquia, Alois se dirigiu à casa do tio. À janela, viu uma senhora entrada em anos, que outra não era que Johanna, a irmã mais velha que ele fecundara dezessete anos atrás. Ao lado dela uma jovem adolescente, de 16 anos e "os olhos mais azuis que ele já vira", no dizer do autor. Alois sentiu algo se manifestar abaixo do próprio umbigo, diante de tanta formosura. Seu embevecimento com a "sobrinha" foi interrompido pela irmã, falando à filha:

"Este é seu tio Alois", introduziu ela, complementando: "Ele é um homem maravilhoso". Em seguida, após elogiar o pomposo uniforme do irmão, mostrou a filha a ele: "Esta é Klara". Alois enviou um olhar guloso à menina.

Pouco mais de uma hora depois, Alois foi até o cunhado, o fazendeiro Poelzl, ainda um mal-sucedido agricultor de olhos cinzas, e contou a ele que sua esposa, Anna, andava doente e precisando de uma moça que lhe ajudasse nas tarefas domésticas. O que ele acharia de de dar esta oportunidade à Klara?

A quantia proposta era vultosa e, para alívio do fazendeiro, não dependia de colheita. Seria um bom dinheiro mensal e uma boca a menos na choupana. A sugestão foi aceita e uma semana depois Klara Poelzl partia definitivamente para a casa do "tio" Alois. 

"Casa" é forma de expressão: a moradia de Alois e Anna em Braunau era composta de três quartos na melhor hospedaria da cidade. Klara foi morar em um quarto no sótão, ao lado das demais criadas do hotel. Alois gostava muito mais das hospedarias do que da ideia de morar em uma residência particular. A razão era seu apetite voraz: a oferta de criadas era variada e havia sempre alguma delas disponível para uma faxina a sós. 

Movido por este ímpeto, o respeitado inspetor não perdoou uma faxineira de dezenove anos, chamada Franziska "Fanni" Matzelberger, e, no depoimento da própria, a engravidou. O conhecimento do fato foi suficiente para que a sempre ciumenta (inclusive de Klara) Anna Glassl pedisse uma separação legal (o divórcio não era possível entre católicos), alegando, além de incompatibilidade, "aversão absoluta" pelo marido. Estava na lei austríaca. 

Com a união com Anna Glassl dissolvida, Fanni ocupou o lugar da ex-patroa. Inclusive nos ciúmes, exigindo que Klara deixasse a companhia do casal. Pior que, até então, apesar da desconfiança de Fanni, não havia acontecido nada de indecoroso entre tio e sobrinha. Ainda.

"Ouvi dizer que os poloneses dizem", começou certa feita Fanni, "que um pai nunca deve fazer amor com sua filha ou ela perderá todo o respeito por ele". Dois segredos jogados de uma só vez na cara. O frio Alois fez troça. Mas, diante da pressão, aquiesceu. Klara foi enviada para um emprego em Viena, arranjado pelo tio, na casa de uma senhora idosa. Melhor ceder agora, com a mesa posta, e deixar para comer a sobremesa mais tarde. Haveria tempo.

O seu filho com Fanni foi batizado de Alois. Como permanecia casado com Anna Glassl, não poderia dar ao filho o próprio novo nome. Então o menino nasceu Alois Maltzelberger. Pouco depois, Glassl morreria (suicídio, aventou-se) e Alois pôde casar-se com Franziska, dando enfim ao moleque o nome de Alois Hitler. Ele tinha quarenta e seis anos e ela vinte e dois; e estava grávida do segundo filho. 

Nasceu uma menina, Angela Hitler. Que viria a ser mãe da sobrinha assassinada por cornear o tio ao transar com o motorista... ops, não quero confundir ninguém mais, além do que já está confuso. Vamos deixar esse spoiler para mais à frente, ou para outro livro.

Fanni não se recuperou bem da segunda gravidez. O marido, sempre fornicando com enfermeiras, criadas, cozinheiras, não ajudava em nada o seu mau -humor, que não raro descambava para a histeria. O médico veio visitá-la em um dia em que estava pior, e diagnosticou tuberculose. Klara veio de Viena tomar conta dos filhos de Fanni com Alois. Fanni, doente, foi para uma vila na floresta de Lachenwald ("Gargalhada-no-bosque"), de onde nunca mais voltou. Nada mais separava o duas vezes viúvo Alois Hitler da sua jovem filha, ops, sobrinha, Klara Poelzl.

Agora babá, faxineira, cozinheira e amante do pai. Em breve, mãe. De cinco hitlerzinhos. Só um chegou aos cinco anos, porém. Adolf. O quarto da prole. Mas me apressei. Voltemos à primeira gravidez.

O problema é que Klara ficou grávida enquanto era uma jovem solteira trabalhando na casa do tiozão. Alois já havia percebido que a troca de Anna por Fanni e de Fanni por Klara havia sido vantajosa. Estava decidido a formalizar um terceiro casamento. O problema é que, de acordo com a lei, Klara era sua prima de segundo grau - e a Igreja não autorizou a união. Depois de recorrer, em vão, ao padre e ao bispo, Herr Hitler teve que recorrer à corte papal, que autorizou o matrimônio. Na cerimônia, a única coisa chata era o barrigão.

Gustav Hitler foi o primogênito do casal. Morreu aos dois anos e meio. Depois dele veio Ida Hitler. Morreu com um ano e três meses. Em seguida veio Otto Hitler. Morreu com três semanas. Klara se sentia amaldiçoada. Tinha certeza que o pecado de casar com o próprio tio (que ela nem de longe soube um dia ser seu próprio pai) é que havia provocado a alta mortandade da sua amada prole. 

Depois de um período de desinteresse sexual mútuo, Klara engravidou pela quarta vez. Em 20 de abril de 1889, enquanto aqui no Brasil a abolição dos escravos não completara um ano, e os militares e iluministas estavam tramando a deposição do Imperador Pedro II, nasceu Adolf Hitler. A coisa mais linda, querida e fofinha do mundo, aos olhos da sua mãe Klara. 

Bem, a partir daqui, Norman literalmente viaja. Na duvidosa qualidade de assessor do diabo ele é transferido para Moscou, onde vai participar das núpcias e da coroação de Niki, o futuro czar Nicolau. Lá, descreve a paixão do príncipe e a tragédia na grande festa popular realizada para celebrar a passagem de bastão. Outorgo a ele um relato sucinto da própria missão:

"Não fui um ator principal nos tumultos que acabei de descrever", reconhece. O chefe, a quem ele chama de Maestro, "declarara que eu não estava suficientemente familiarizado com Moscou para comandar os demônios locais", e, pior, "não fora considerado impiedoso o bastante para liderar as ações em campo. Isso alfinetou minha vaidade".

Mas a temporada russa não fôra um desperdício para a causa, pois, como ele diz, o "conhecimento revelou-se útil nos anos seguintes. Os Romanov não pereceram numa imundície sangrenta de ossos quebrados naquele dia, mas certamente sofreram estragos depois do desastre".

Ainda que estilisticamente saboroso, o viés moscovita enche mais linguiça que qualquer outra coisa. E, depois, o conteúdo perde tônus. O biógrafo torna para a família Hitler, agora acompanhando a enfadonha aposentadoria do velho Alois, a crescente rebeldia do jovem Alois, a tediosa bondade de Klara, a sensual gabolice de Angela, o constante fedor de Adolf e a morte prematura do seu irmão caçula, Edmund.

E dá-lhe abelha, cavalo, cachorro, confraria de caipirões e a santa Klara tentando cuidar de todos.

O cada vez mais ranzinza Alois ainda faz uma ou outra digressão, como quando admoestou a esposa ("O bom sangue alemão entende que as bênçãos não vêm de Deus, e sim do trabalho duro"), para em seguida afundar em questionamentos íntimos: "Por que elogiar o sangue alemão? Por que não o austríaco? Ele tinha um imperador que podia conviver com os problemas enormes e, com frequência, idiotas de manter tchecos, húngaros, italianos, poloneses, judeus e  sérvios, além dos ciganos, vivendo em paz dentro de um único império Habsburgo."

O velho foi além, com um ponto de vista que seria diametralmente oposto ao do filho belicoso, três décadas depois. Os alemães, refletiu, "estavam sempre em querelas. Sem Bismarck, não seriam nada. Principados insignificantes. O rei Ludwig I e o rei louco Ludwig II, ambos bávaros malucos. E os prussianos eram piores. Tinham um soquete enfiado no rabo. Porque então falar no bom sangue alemão?"

Adolf não veria mérito algum no Imperador Franz Josef, pelo contrário. E, mais, consideraria todo esse povo que vivia sob o guarda-chuva do império austríaco uma gentalha. Todos os eslavos uma sub-raça e todos os judeus sub-humanos. E, não só, a degeneração austríaca e a judiaria internacional eram as responsáveis pela ruína alemã, e...

Mas o Hitler adulto não é o tema deste livro.

Não que ele não tenha sido relativamente rascunhado. Klara o paparicava e Leo Raubal, marido de Angela, caçoava dele. Fazia bullying. A mãe aceitava de bom grado a inapetência do filho pelo trabalho. Mailer entrega que "Adolf raramente saía de casa. Não via nenhuma maneira lucrativa de entrar para as fileiras dos empregados. Aliás, não tinha vontade de trabalhar para os outros. Além disso, sentia-se um pouco tísico - o suficiente para manter Klara em estado de terror interior". 

Imagino que ela pensasse na morte precoce de Gustav, Ida, Otto e Edmund. Dos cinco paridos, só lhe restara seu doce Adolf. O marido da enteada era implicante. Que mal havia em não trabalhar?

"Adolf disse a ela que um dia seria considerado um grande pintor, um grande arquiteto, ou, possivelmente, ambos", segreda o autor, que explica como o filho convencia a mãe a financiar seu ócio com a pensão do pai morto, o velho inspetor Alois. "Ficando em casa, ele poderia ampliar ainda mais a educação."

O cunhado Leo Raubal via diferente. Adolf não gostava das observações atrevidas de Raubal.

"Camarada, você precisa começar a ganhar a vida", dizia, na lata, o cunhado. "Você se sente deprimido ao pensar que todos os seus parentes em Spital pensam que você é um inútil. Sabemos que isso não é verdade, mas você tem de desistir de sua ocupação atual, que consiste em não fazer nada".

A mãe, porém, o defendia: "Adolf não é um vadio. Ele realmente fica em casa, mas trabalha muito quando desenha", enfatizava. E não ficava só nisso. "Ele não desperdiça seu tempo. Não há garotas más que ele goste de ver. Nenhuma garota com que eu tenha que me preocupar."

Sobre esta questão, diz o autor - maldosamente - que ela "teria feito melhor se se preocupasse com os casos amorosos que ainda viriam com homens e meninos".

Opa, que conversa esquisita. Eu, com o consentimento dos meus três leitores, fico por aqui, pois meu escopo nesta história era sobretudo esclarecer a controvertida origem familiar do genocida. Por ora, dane-se o resto. Ainda que esta versão, que pacientemente detalhei, em duas dúzias de parágrafos, não seja necessariamente a mais provável, é, decerto, crível o suficiente para ser considerada uma boa hipótese de trabalho.

Só mesmo o diabo para prever que aquela infância monótona e insignificante do guri austríaco, cujo pai era seu próprio avô, viria a ordenar o assassinato perverso de uma parcela gigantesca da humanidade.

Este assassino em massa, führer do Estado alemão, foi um dos protagonistas da história do século XX. Confesso que ter um criminoso no papel principal não me agrada nem um pouco, mas o fato é que boa parte da história foi escrita com a caligrafia dos matadores.

Ao longo das próximas semanas, deste ano que recém iniciamos, vou falar de alguns livros que li e que relatam o mundo no período que veio antes, durante e logo depois da Segunda Guerra Mundial. Países, culturas, líderes, personagens periféricos e circunstâncias. São conteúdos indicados por jornalistas, intelectuais, historiadores, onde cada uma das obras dá sua contribuição para um melhor entendimento do todo.

Além dos grandes especialistas (e mesmo alguns romancistas talentosos, como Mailer), vou tentar resgatar também algumas visões alternativas e abordagens relativamente desconhecidas. Sem nenhum compromisso maior com a cronologia, ainda assim vou me esforçar para manter uma linha do tempo organizada, o que vai colaborar para uma compreensão mais abrangente do evento.

Muitos outros livros fundamentais eu comentei ao longo dos últimos onze anos. Ao fim da série, ou mesmo no meio dela, farei referência a eles.

Se alguém acaso ainda se pergunta porque tamanho interesse em um conflito que terminou há mais de sete décadas, a razão é simples: tudo o que temos e tudo o que somos é resultado desta grande guerra. O tempo enevoa, mas não apaga. Para o bem ou para o mal, a circunstância geopolítica dentro da qual nascemos e vivemos é decorrente da vitória aliada sobre a Alemanha, de 1939 a 1945. Como veremos, muita coisa determinante aconteceu antes, e muita coisa aconteceu depois.

Mas a grande partida foi disputada nestes seis anos - e o campo foi o Leste Europeu, o norte africano, algumas ilhas isoladas no Pacífico e o próprio coração da Europa. O combustível foram sessenta milhões de vidas.

Tenhamos plena consciência disso ou não, somos todos filhos desta guerra (lembrando que nossa eventual ignorância dos fatos não anula sua origem, nem nos protege dos seus desdobramentos).

O livro sobre o qual acabamos de tecer alguns comentários expõe a ascendência familiar e especula sobre a infância de Adolf Hitler. Fosse outro personagem, este exercício poderia soar descabido ou pretensioso. Mas sobre este tutelado do inferno toda especulação inteligente é valiosa.

Companhia das Letras, 429 páginas (1a edição) 2007 | Tradução Pedro Maia Soares | Copyright 2007

Título original: "The castle in the forest"

Sidney Puterman

Some say he’s half man half fish, others say he’s more of a seventy/thirty split. Either way he’s a fishy bastard.

0 comentários: